quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Gil Vicente e outros (os tipos nas folhas volantes)

Quanto às figuritas, ideadas evidentemente para representação de tipos da vida real, nos trajes da época, algumas, e exactamente as mais antigas, vieram com certeza de Espanha (Salamanca, Burgos, Toledo, Medina dei Campo, Sevilha, salvo erro), facto que está em harmonia com outros capítulos da Historia das Artes e com a Historia da Tipografia na Península.

Auto de Inês Pereira
07/vii. Escudeiro (1), Inês Pereira (2), Lianor Vaz (3), Mãe (4)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Outras, feitas cá, e que não passaram a fronteira, imitam pelo menos, modelos inventados no pais vizinho. Nas oficinas de impressores de Lisboa, como o activíssimo francês Germain Gaillard que imprimia para ambos os países de 1519 a 1560 (e para o tempo e o género de que estou a tratar, era preeminente) encontravam-se e influenciaram-se mutuamente desenhadores e gravadores de ambas as nações.

As mais antigas e mais influentes que conheço, datam ainda do século xv, e foram desenhadas e talhadas de propósito como ilustração de certos textos de grande arte, e poesia elevada, a clássica de então, como a obra-prima do marquês de Santillana, chamada Dialogo de Bias contra Fortuna, as Trecientas de Juan de Mena, as Coplas de Jorge Manrique Recuerde, el alma dormida, a sátira anónima de Mingo Revulgo. E representando lá figuras simbólicas de alto coturno passaram, no primeiro e segundo quartel do século xvi, a representar cá tipos cómicos e familiares, de soco, ou pantufos.

Eu podia documentar isso, reproduzindo um dos Sete Sábios da Grécia — o Bias, do Dialogo — vestido de opa, e de chapeu-coroa na cabeça, virado de perfil para uma dama de cabelos soltos, tendo uma melena agarrável a cair na testa, e que representa a Fortuna, em atitude de lhe expor, de indicador estendido, um teorema complicado. E esse mesmo figura como profeta Arribato em frente do popular e pastoril Mingo Revidgo, símbolo do povo, espécie de Zé-Povinho do século xv.

E em terceiro lugar transformou-se no Eneas, de certa idade, de Elissa Dido (1536). No Romance de Toledo, do deshonesto Luis Hurtado de Toledo, é o expositor das belezas da cidade pátria, pessoa séria ainda (1552). Imitado quanto à posição e no traje, mas aburguesado, de roupão e boné, o filósofo-profeta e conselheiro desce, no nosso Auto da Bela Menina, e nos do Chiado que se conservam entre os Reservados de Lisboa, a ser pai de familia que endoutrina ou admoesta a filha.

Desse mesmo modo evolucionam outros modelos. E como os tipos que caracterizam o auto dos sucessores de Gil Vicente, são relativamente poucos, os principaes reaparecem frequentes vezes, estragando-se com o muito uso, mas tornam depois a surgir, repetidos em miragem (au miroir), como o famoso pelicano da portada dos Lusíadas.

É o que aconteceu ao tipo 1 do Namorado; mas também à criadinha; e ao cavaleiro de barbas em Autos diversos dos nossos. O escudeiro namorado, de pé são e inteiro numa poesia à morte da princesa Dª Maria (1548), assim como na Pratica de Compadres do Chiado, e também no nosso Auto de D. Fernando, aparece com pé quebrado, e a flor deteriorada no Auto do Bela Menina e no dos Enanos. E depois torna a aparecer, p. ex., no Auto da Natural Invenção (refeito), completo e escorreito, mas visto au miroir.

Auto de Dom Fernando
15/xv. Zagal (13); 1; D. Fernando (14); 8, 10
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Nos nossos dezanove autos (positivamente só em doze, porque os n° I-VI e o n° XII tem, em lugar de figurinhas avulsas, scenas inteiras, compostas ad hoc), o que, à razão de quatro por auto, seriam quarenta e oito, conto apenas dezaseis modelos diversos, empregados em regra com tino, mas algumas vezes à toa.

Em geral são os Autos religiosos e os de assunto cavalheiresco que ostentam como gravura um quadro composto ad hoc. Curioso, e único no seu género, é o que ilustra uma das poesias feitas à morte da filha de D. João iii (Dona Maria, esposa de Felipe ii, e mâe do desventurado príncipe D. Carlos). Ela está estendida numa cama de baldaquim, sobre estrado, o filhinho no braço direito em atitude de o passar à aia ajoelhada. No fundo está o medico. Fora da porta, a Morte. A poesia escrita pelo semiportuguês Jorge de Montemor (glosa de dez das Coplas de Jorge Manrique), é dedicada a outro português ilustre, um dos Silvas, regedores da Justiça. Pertence a uma serie de poesias luso-castelhanos sobre o mesmo assunto.

Os que mais vezes se repetem, são naturalmente os que representam o namorado, noivo, ou pretendente da peça, e a dama, sua amada e amante.

Auto das capelas
16/xvi Auto das capelas. 13, 8, 1, 6
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Eis como Ele aparece. De capa curta (que ora parece ter capuz, ora não) em que está embuçado, com o gesto tradicional; espadim; ramito de flores na mão que esconde; pluma na gorra; de porte arrogante; olhando de perfil para a direita (para a esquerda apenas, na reprodução restaurada e tardia au miroir). E eis o que é: o escudeiro tiranete, da Inês Pereira, de que os autores quinhentistas trocejavam tanto; o galante, da Farça Penada; o António Pacheco, do Auto de D. Fernando; o cavalheiresco D. Luis; o pretendente de Dª Belicia, irmã de D. André; André Velez, homem nobre das Capelas; o Fidalgo de França, da Bela Menina; o noivo, no auto das Regateiras (e fora desta publicação, o Namorado do Auto terceiro do Chiado); e novamente e tardiamente o D. Rodrigo Manrique, numa Glosa de Recuerde el alma, dedicada a Dª Leonor, rainha de França em 1557) e reimpressa em 1602 por António Alvares, um dos tipógrafos principaes do período que decorre de 1580 a 1640, conforme já expliquei.

Auto da bela menina
11/xi. 1, criada (10), pai (11) bela menina
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Pois bem, esse escudeiro-cavaleiro, conheço-o também de numerosas obras castelhanas, impressas parte realmente em Espanha, parte em Lisboa. Vi-o, p. ex., na Tebaida, 1546 (Salvá, Catálogo, 1436. Impressa em Sevilha em casa de André de Burgos que parece passou para Portugal (Évora), chamado pelo Cardeal-Infante), no Espejo de enamorados (s. 1. n. a.), e numa Glosa de Pedro de Aguilar, dedicada ao Regedor das Justiças de Portugal, Jorge da Silva, a qual julgo ter saido da imprensa de Germão Galharde. E além do tipo que tem flor ao peito, ha outro quasi igual, mas sem flor; e mais um de cavaleiro de certa idade, de barbas, ambos imitações e variantes do primitivo.

Não me importo agora com ele, porque não figura nos nossos autos.

Neles ha contudo outro modelo diverso de verdadeiro cavaleiro, com ares de cortesão, embora sem espadim, de pernas cruzadas e corpo en-face, capa aberta de sorte que se ve o gibão, gorro chato sem pluma. Queira o leitor olhar para o Auto de D. Fernando e D. André, em que a presença de dois homens da mesma categoria social exigia dois desenhos diferençados. Fora desta publicação já o vi em dois dos Autos do Chiado, e na Glosa já citada de Pedro de Aguilar.

Auto de Dom André
18/xviii. 14, 3, 10 (au miroir) dama (15)

Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Do pai de certa idade, conselheiro nato da sua família, já falei (n° xi).

De dois tipos de soldados, um (que também faz as vezes de capataz de pastores) tem vara longa na mão (7, no auto xiv e xvii, vilão no Auto de Vicente Anes Joeira, no dos Enanos, e no dos Ladrões, é pastor numa edição das Trovas de Crisfal, de 1639); outro virado de costas (8) pega na espada (auto n° x, xiii, xv, xvi, xix).

Auto dos enanos
17/xvii. 13, 7, 1, 2

Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Os ratinhos e zagaes, simples ou parvos, aparecem também sob dois aspectos diversos: um de capuz, encostado ao bordão ou cajado, procede das Trovas de Crisfal (1536) e da Egloga iii de Bernardim Ribeiro, em que representa Amador (9, nos autos x, xiii, xiv); outro, em cabelo, com um naco de pão na direita (13, em xv, xvi, xvii) procede do pastor Silvestre, e esse deriva directamente das Coplas de Bias que já mencionei. É o povo ingénuo e inocente, o qual simboliza, toscamente, não posso negá-lo.

Auto de Vicente Anes Joeira
14/xiv. 9, 6; beata regateira (12), 2
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Um turco aparece naturalmente no Auto de D. Luis (mal classificado todavia como Bras-Lourenço, que é cristão).

Auto de Dom Luis e dos turcos
19/xix. I, 2, 3; turco (16)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Um mendigo descalço, no Auto das Regateiras.

Auto das regateiras
08/viii. Mendigo (5), grupo de duas damas (6), 1, 4
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Agora o sexo feminino. Ela, menina em cabelo (2) segundo a praxe da idade-media, recatada, braços e pés envolvidos no vestido amplo e modesto, atado com um cinto-cordão, que ela segura com a esquerda, a direita apertada significativamente sobre o peito, tem o nome ora de Inês Pereira (vii); ora de Dona Clara (xix), Dona Paula (xvii), Florença (x), Bela Menina (xi); mas também é a filha pobre, mas fermosa e mimosa, da Regateira (vii); e incorrectamente a moça dos Dois escudeiros ladrões (ix). Mas antes disso fora Elissa Dido!

Auto dos dois ladrões
09/ix. 1, 2, guerreiro de vara na mão (7), guerreiro de costas viradas (8)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Onde ha mais de uma, a segunda aparece de braços cruzados, mas num gesto menos simétrico do que hoje usam em Portugal as senhoras, de vida quasi de freiras. É a Dª Belicia do Auto de D. André e já fora a Maria de doce memoria, de Crisfal (1536), a donzela das Coplas de Pedro de Aguilar, e Ana, irmã da Rainha Dido. Em Portugal também é a Freira dos Ditos de Joana da Gama, sentenciosos, de 1550 ou 1575 (v. Innocêncio da Silva, x, 140).

A mãe, viuva, velhinha de costas curvadas (4), está envolvida numa manta-veu cumprida (nos autos vii e viii). Outro modelo (12) originariamente de beata, segundo a minha ideia, mostra-a com um grande rosário nas mãos (xiv).

De touca, recatada na atitude e no traje (3), representa uma vez a hilariante Leonor Vaz de Gil Vicente (vii), e outra vez a irmã, já madura mas ainda pretendida de D. André (xviii).

Mais simples, de avental e vestido curto, com um embrulho debaixo do braço, temos a criada (10), moça (xii) e donzela (xv).

Auto da farsa penada
13/xiii. 9, I, 8, 10
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

O grupo de duas senhoras, de vestes roçagantes, olho ao ceo e uma mão erguida, cuja origem ainda não cheguei a apurar, representa a figura alegórica da Verdade, acompanhada da Justiça, no Auto da Festa, mas veio a figurar mãe e filha (6) no Auto das Regateiras, e no de Vicente Anes Joeira (refeito).

Auto de Vicente Anes Joeira (refeito)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

A fortaleza de ameias, que se vê, sem motivo, no Auto de Florença, já a vi em Dos cartas de refranes castelhanas, e alhures.

Auto de Florença
10/x. Pastor (9), I, 2, fortaleza
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Não tive ocasião de estudar a scena, tosquíssimamente feita, que precede o Duque de Florença, mas suponho provêm de uma novela de cavalarias. A caravela que enfeita o Auto de D. André, por realmente terminar com um embarque, é a do Naufrágio de Sepúlveda (1554), de Marco Paulo (1502) e da Estoria de Vespasiano (1496).

Eis em resumo, ou num quadro, as figuras numeradas dos Autos profanos:

07 Auto de Inês Pereira. Escudeiro (1), Inês Pereira (2), Lianor Vaz (3), Mãe (4).
08 Auto das regateiras. Mendigo (5), grupo de duas damas (6), 1, 4.
09 Auto dos dois ladrões. 1, 2, guerreiro de vara na mão (7), guerreiro de costas viradas (8).
10
Auto de Florença. Pastor (9), I, 2, fortaleza.
11 Auto da bela menina. 1, criada (10), pai (11).
12. Scena cavalheiresca.
13 Auto da farsa penada. 9, 1, 8, 10.
14 Auto de Vicente Anes Joeira. 9, 6; beata regateira (12), 2.
15 Auto de Dom Fernando. Zagal (13); 1; D. Fernando (14); 8, 10.
16 Auto das capelas. 13, 8, 1, 6.
17 Auto dos enanos. 13, 7, 1, 2.
18 Auto de Dom André. 14, 3, 10 (au miroir) dama (15).
19 Auto de Dom Luis e dos turcos. I, 2, 3; turco (16).


Temos, portanto, onze vezes a figura primeira; sete vezes a segunda; cinco vezes a oitava; quatro vezes a decima; três vezes a nona; e outras três vezes a decima-terceira; duas vezes a 6ª, a 7ª, a 5ª, a 4ª e a 3ª; uma só vez a 11ª, 12ª, 15ª, 16ª e a 5ª. (1)


(1) Carolina Michëlis de Vasconcelos, Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina, Madrid Sucesores de Hernando, 1922

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Embrechados (3 de 5)

Mais informação:
Carolina Michëlis de Vasconcelos, Notas Vicentinas, preliminares de uma edição critica das Obras de Gil Vicente, 1912
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1562)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)
Uma proposta crítico-discursivo-filológica de análise da censura: emendas inquisitoriais na edição de 1586 da Compilação de todas as obras de Gil Vicente
Gil Vicente, Teatro 1502-1536
Gil Vicente, o autor e a obra
Denise Rocha, Xilogravura do Auto de Inês Pereira (1523) de Gil Vicente
Conde de Sabugosa, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911

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