domingo, 5 de junho de 2022

Na Cantareira com Maria Angelina e Raul Brandão

A seguir ao mosso casamento, após a permamência: de um ano e pouco mais em Guimarães, Raul Brandão pediu a suà transferência de Infantaria 20, para o Quartel General do Porto, pas-sando a residir na Cantaroira — Foz do Douro — onde seus pais, que então viviam em Matosinhos, possuiam uma casa admiràvelmente situada, donde se gozava a vista, maravilhosa do rio Douro, do céu azul, da terra e do mar.

Retrato de Angelina e Raul Brandão no ano do seu casamento, 1897.
João Pedro de Andrade, Raul Brandão, A Obra e o Homem, Arcádia, 1963

As ondas majestosas, ao dobrarem-se em largos rolos de espuma branca, vinham desenrolar-se junto da praia como uma, renda finíssima e transparente, deixava ver a água esmeralda desse mar infinito que banha toda a nossa linda Costa portuguesa quando se mantinha numa doce amenidade, fazia lembrar esses lindos lagos dos Pirinéus, que uma vez vistos, jamais desaparepei dos nossos olhos encantados.

Porto, Cantareira, Foz do Douro, ed. Almeida & Sá Suc.
Delcampe

Raul Brandão concebia a minha alma duma sensibilidate como só os poetas são capazes de idealizar; por, isso foi o meu amparo durante a vida e porque  muito nos amárvamos e nos estimávamos tínhamos um só degejo e uma só vontade: — vivermos para Deus e um para o outro.

Instalados na Cantareira, nada nos faltava, louvado Deus: saúde, felicidade e a alegria dos dezanove anos.

Porto, Foz do Douro, Cantareira, ed. Alberto Ferreira.
Delcampe

As flores que cuitivavamos no pequeno jardim e uma grande e deliciosa bica de água que caía abundantemente num tanque de pedra, sob uma pérgola com rosas lindas e perfumadas, era o nosso encanto...

Faltava-nos, porém, um barquinho que depressa adquirimos, para nos recrearmos nas horas vagas, pondo-o a flutuar nas águas buliçosas do rio e, umas vezes à remo, outras, quando o vento era favorável, içando a vela, o barquintio «Deus te guie» — singrava voloz rio acima, levan-do-nos muito longe, embalados pelo murmúrio da água que tinha reverberações faiscantes e, atravessando a cidade, corria entre margens de campos e vinhas, como é toda a região do Douro, à beira rio.

Porto, Foz, Cantareira, ed. Emilio Biel.
Delcampe

Raul Brandão ao leme, sorria encantado com a paisagem embora desde crianga muito sua conhecida e, eu não podia conter a minha admiração pelo doce e maravilhoso espectáculo que a natureza nos oferecia.

Quantas vezes transpúnhamos também o rio chegando à Outra Banda, deixávamos o barquinho em descanso no areal, seguindo para Lavadores, banhando-nos na frescura da luz e no afago do sol, através dessa duna doirada — o Cabedelo — regressando à tardinha à Cantareira, envoltos na nostalgia dos poentes que à beira-mar, como em parte, alguma, são encantadores nas suas cores de desfalecimento e saudade !

Sob um caramanchão revestido de hera, junto duma forte grade de ferro servindo de parapeito sobre um pano de muralha, que ascendia do pequeno jardim ao pomarzinho florido, assistimos ao surpreendente e empolgante espectáculo astral que só por acaso se repete na vida: — O belo e extraordinário fenómeno do eclipse total do sol, em 28 de Maio de 1900 !

Eclipse total do sol em 28 de Maio de 1900.
v. Estação Chronográphica

À uma hora, e um quarto da tarde, porque a luz brilliante do astro solar não nos permitisse fixá-lo directamente através de vidros prèviamente fumados, notámos um grande circulo formado em roda do sol e, em volta deste circulo, uma fita como o arco-iris com umas poucas de cores — mais o alaranjado...

O sol está um pouco toldado por uma nuvem transparente. Vêem-se ligeiras nuvens no céu. E, para o mar, nuvens esfarrapadas. A luz é amarelenta, linda, e para o fim com tons de oiro.

Arrefece... é quase um tuar; mais lívido. Não é bem livido, há tintas de oiro esbatido, líquido — uma alvorada. Vê-se uma estrela enorme no meio do céu, outra mais pequenina junto ao sol.

Eu, sem palavras que pudessem exprimir a minha admiração ante visão tão sobrenatural; só ousava exclamar: «que lindo ! que lindo !» «Sente-se um abalo profundo, não é verdade? É o homem cm frente de Deus...» diz-me Raut Brandão, comovido.

No chão à sombra parece ter relevo: os discos do sol tornam-se em milhares de crescentes. O vento que era nortada — acalma com o eclipse, tal como sucede sempre com a vinda da noite.

Os animais domésticos, um cão, um gato, nada sentiram. Absolutamente sossegados. Os pintaihos que esgaravatavam na terrà do quintal, aninharam-se em volta da mãe que abria as asas para os agasalhar. Um silêncio comavido... imenso...

O «disco» da lua tapa o sol, mas a luz dir-se-ia que foge por baixo dele. A claridade que ficou, era ainda bastante: parecia um lusco-fusco levemente doirado.

O espectáculo é prodigioso mas dura apenas uns segundos. Um raio de luz clara, um feixe de luz, e eis que de novo o sol volta, na sua majestade; os passarinhos, um fio de nervos, vibram no espaço azul entoando cânticos maviosissimos, comio.se nete despontasse a luz matutina, vida das suas frenéticas vidas. E a vida humana, paralizada momentâneamente ante este espectáculo maravilhoso, retoma a sua actividade.

Porto, Desembarque de peixe na Cantareira, ed. Arnaldo Soares.
Delcampe

Nas águas do rio, todo oiro e prata, frescor palpitação, os barquinhos que a essa hora de lusco-fusco nelas flutuavam, deixaram-se levar pela corrente até à Barra, na inconsciência dos barqueiros que se entregam à sua emoção e discutem com calor a beleza extraordinária deste fenómeno astral.

Foz do Douro, Cantareira, ed. desc.
Delcampe

Em terra, o rodar pesado dos carros eléctricos, as sirenes dos automóveis que passavam na estrada sem interrupção — porque o trânsito esteve paralizado — as gargalhadas das crianças que batem palmas com entusiasmo louquinhas de alegria, a voz fresca das raparigas que lavam roupa num tanque à beira-rio, enchem o espago atordoadamente, chamando à realidade da vida os contemplativos, depois do profundo silêncio que lhes veño da emoção — e de Deus. (1)


(1) Maria Angelina Brandão, Um coração e uma vontade: memórias, Coimbra, Atlântida, 1959

Leitura relacionada:
A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB

Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão

Sobre o eclipse de 28 de maio de 1900:
Occidente n° 769, 10 de maio de 1900

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