quinta-feira, 26 de maio de 2022

Lisboa e o Tejo c. 1520 (panorama e encenação)

Sobre a iluminura do códice manuscrito de Duarte Galvão, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques (...)

Uma outra pintura, estudada e reiteradamente referida nos trabalhos de José Manuel Garcia – o frontispício de um dos exemplares manuscritos e iluminados da Crónica de D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão (c. 1520) – apresenta uma vista da cidade de Lisboa em fundo, encontrando-se em primeiro plano o porto repleto de navios de vela e remos.

Crónica de Dom Afonso Henriques, Duarte Galvão.
A Casa Senhorial

O investigador chama a atenção para o facto de figurarem as armas da casa de Áustria [de facto as armas do Sacro Império Romano-Germânico sobre o fundo das cores de Aragão] no toldo da popa de uma fusta ou galé [e de outra embarcação do mesmo género, as armas de Castela/Leão], pelo que provavelmente aludiria também à entrada de D. Leonor nesta cidade. (1)

No entanto, o cortejo desta imagem com os elementos visuais descritos na crónica de [Gaspar] Correia, não apresentando uma correspondência directa, sugere que possa a mesma configurar uma representação áulica convencional, artística, sem o objetivo de retratar um acontecimento específico de forma documental.

A crónica de Correia é a única fonte conhecida para este evento sumptuoso, dando uma panorâmica viva e algo detalhada de como os monarcas fizeram a travessia do Tejo com um riquíssimo cortejo – segundo o autor, de mais de seiscentas velas – que incluía embarcações de entidades públicas e privadas, entre barcas e batéis, caravelas, fustas e a galé real (...)

As nuvens de fumo provocadas por disparos de artilharia a bordo encontram-se retratadas numa sugestiva miniatura iluminada, na moldura (sul) de um dos monumentais frontispícios da Leitura Nova onde, num pequeno medalhão de cerca de oito a dez centímetros de diâmetro, o pintor inscreve uma cena marítima com três navios de alto bordo representando naus ou galeões, dois ou três navios de remo e vela configurando fustas ou galés, e ainda um conjunto de embarcações mais pequenas, possivelmente batéis e barcas, dos quais seis à vela e pelo menos três com remos e sem mastros (...)

Leitura Nova, Além Douro vol. iv (detalhe do frontispício)
ANTT e Hemeroteca Digital de Lisboa

Apesar de esta imagem correr frequentemente como ilustração da partida de D. Beatriz para Sabóia, uns meses mais tarde, parece mais aceitável que represente antes uma chegada festiva do que uma largada, sendo nela identificáveis diversos pormenores relatados por Correia. Não obstante, há que ter em conta que grande parte dos elementos áulicos presentes nestas festas eram comuns a muitas outras ocorridas na época, nomeadamente o aparato visual – símbolos heráldicos, têxteis preciosos, decorações ricas em que sobressai o carmesim e o ouro – associados ao indispensável estrondo da artilharia (...) (2)


(1) Isabel Monteiro, Recebimento Real, 1518: eventos festivos & música
(2) Idem

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Santa Catarina do Monte Sinai (4 de 4): o navio

Leitura adicional:
História de Lisboa - Tempos Fortes
Crónica de el-Rei D. Afonso Henriques por Duarte Galvão
Chronica do muito alto, e muito esclarecido Principe D. Affonso Henriques...
OS NAVIOS DO MAR OCEANO
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