segunda-feira, 20 de junho de 2022

Na Cantareira com Raul Brandão em abril de 1920

A Foz é para mim a Corguinha, o Castelo e o Monte com o rio da vila a atravessá-lo, e a rua da Cerca até ao Farol. O que está para lá não existe... Só me interessa a vila de pescadores e marítimos que cresceu naturalmente como um ser, adaptando-se pouco e pouco à vida do mar largo.

Panorama da Foz do Douro,
vendo-se o Castelo de São João da Foz, a Estação Salva-vidas e parte da Rua do Passeio Alegre.
Archivo Pittoresco (33 e 39), 1865 cf. Porto Desaparecido

E ainda essa Foz se reduz cada vez mais na minha alma a um cantinho — a meia dúzia de casas e de tipos que conheci em pequeno, e que retenho na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me entranho na morte.

O mundo que não existe é o meu verdadeiro mundo. Esta vila adormecida estava a cem léguas do Porto e da vida. Ali moravam alguns pescadores e marítimos, o António Luís, a Poveira, as senhoras Ferreiras, a D. Ana da Botica e as Capazorias.

E, na Foz e na pensativa Leça, uma gente desaparecida com os navios de vela, os embarcadiços que iam ao Brasil em longas viagens de três meses. As casas, limpas como o convés de um navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras.

A Cantareira, Cesário Augusto Pinto, 1848.
Arquivo Municipal do Porto

Todas tinham um grande óculo de engonços, para ver o iate ou a barca que partia, ou para procurar ansiosamente, lá no fundo, o navio que trazia a bordo o marido ou o filho ausente, e um mastro no quintal para lhes acenar pela derradeira vez.

Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés, até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo.

Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo, apertavam-se os corações no peito, e à luz da candeia rezavam horas esquecidas «pelos que andam sobre as águas do mar». Conheço ainda, tão bem como ontem, todos os cantos da casa de minha avó: as escadas com um cabo de navio a servir de corrimão, a sala da frente com dois painéis escuros nas paredes, Jesus crucificado e S. João Baptista, e o estrado onde ela e a tia Iria, todo o dia sentadas, trabalhavam nas almofadas de bilros.

Areal do Cabedelo Barra do Douro S João da Foz etc., Teodoro de Sousa Maldonado, 1789,
cf. Descripção topografica, e historica da Cidade do Porto..., Agostinho Rebello da Costa
Biblioteca Nacional de Portugal

A renda de bilros é uma indústria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido — as da Foz, as de Leça e as de Vila do Conde — que passavam a vida à espera dos homens, enquanto as mãos ágeis iam tecendo ternura e espuma do mar...

Nesta sala abriam-se duas portas, uma para os quartos interiores, e outra para o corredor onde os rapazes dormiam num armário com beliches. Ao lado da casa, que subia em socalcos pelo monte, subia também uma escada de pedra em patamares até lá acima.

Do quintal, mais alto que os telhados, via-se o mundo. Era dali, saltando o muro, que eu partia para excursões maravilhosas através do pinheiral do Lage... Costumes muito simples, muito outros. Uma pescada custava seis vinténs, e minha avó gemia da carestia da vida, falando com saudade «do tempo do arroz de quinze».

Perspectiva da entrada da barra da cidade do Porto, Manuel Marques de Aguilar, 1791.
Arquivo Municipal do Porto

Tinham-se calado as marteladas nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, onde os calafates, os ferreiros e os carpinteiros de machado, erguiam outrora, entre clarões de forja e cheiro a pinho descascado, as carcassas dos palhabotes, das barcas e dos iates, — mas eu ainda conheci alguns tipos curiosos de capitães aposentados, no americano que se inaugurara e que levava a gente ao Porto numa hora, alumiado à noite por uma luzinha de petróleo, e com reforço de mulas em Massarelos.

Nesses carros andava sempre a mesma meia dúzia de pessoas para baixo e para cima, e o serviço era dirigido com ferocidade por um major de pêra pintada com esmero, que mantinha a disciplina numa gaiola do Ouro.

Vista da entrada da barra da cidade do Porto , Manuel Marques de Aguilar, 1791.
 Arquivo Municipal do Porto

Ora, entre as pessoas que faziam comigo a travessia, quando a Aninhas do Jeremias me levava pela mão ao colégio, nunca mais esquecerei o capitão Bernardes, um do Carvalho que chegou a almirante, o tio Bento, o irascível capitão Sena de quem se contava com terror que fora apanhado no mar alto por uma trovoada — as faíscas como chuva — levando os porões carregados de pólvora, o alegre capitão Serrabulho, casado com uma mulher fantasmática: homem prodigioso, com uma grande barriga sacudida de risadas: — Acaba- se aqui o mundo com uma ceia de peixe! — e que fez andar num corrupio até à morte a Foz do Douro e a Baía, e entre todos eles, principalmente, o capitão Celestino, que tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja. (1)


(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB

Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão

Sem comentários: