Retrato de Raul Brandão e de sua esposa, D. Angelina Brandão, Columbano, 1928. MNAC |
Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e da fortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro dAlmeída.
Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: — O sê Manuel cá para baixo paro mar! — Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bile, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos ! — e foi hontem ... A quarenta braças lança-se o ancorote.
Gaya, Grupo de pescadores, c. 1900. Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias |
Na noite cerrada uma luzinha á proa; do mar profundo — chape que chape — só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve. — Iça! iça! — e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia.
Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar.
A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as redes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete.
Porto, Barco de pesca, c. 1900. Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias |
Mais barcos vão aparecendo, vela a vela : o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o "bemdito", tanta foi a pesca. — Quantas dúzias? — Um cento! dois centos! — Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes.
Ás vezes o peixe miúdo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres.
Pescadores na Cantareira c. 1900. Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias |
Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastefam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o inverno que vem próximo.
O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada — vento sul, camaroeiro içado — com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas: — Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver! — E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.
O que sei de bello, de grande ou de útil, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura, que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro.
Porto, Foz do Douro, Pescador concertando redes de pesca, c. 1900. Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias |
Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacável de agosto. Os pássaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!. . . Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco — é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? E pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!. . . Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados.
Nenhuma figura torva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte.
Bateira da Afurada. Arquivo Municipal do Porto |
Quasi todos os meus amigos — o Nel, que não tornei a ver... — são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos — que já não existem — acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo.
Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na agua viva que a maré traz da barra... E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar. (1)
Cantareira, Foz do Douro — 1918 (1)
(1) Raul Brandão, Um coração e uma vontade: memórias, Coimbra, Atlântida, 1959
Leitura relacionada:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias
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