Retrato da Duquesa de Sabóia, Beatriz de Portugal (1504-1538), por um pintor piemontês (detalhe). Google Arts & Culture |
Além da comitiva, D. Beatriz levava uma grande casa, com oficiais próprios, com destaque para o mordomo-mor, João Lopes de Sequeira, e o bispo de Targa como capelão-mor, moços de capela, guardas-damas, porteiros de maça, moços de estribeira, reposteiros, cozinheiros e homens de ofício, seis charamelas, três violas de arco, uma cítara, oito trombetas e seis tambores.
No que respeita ao elemento feminino, entre as damas que a acompanhavam encontrava-se D. Leonor da Silva, que ia como camareira-mor, D. Mécia, filha de D. Dinis, irmão do duque de Bragança, D. Maria de Noronha, Inês de Melo, Francisca de Lacerda, e várias outras, além da sua ama Inês Álvares e sua filha Francisca, moças de câmara e guarda-roupa.
Retábulo de Santa Auta, painel central, Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, c. 1520-1525. Wikipédia |
Muita gente, que era também preciso alimentar, e por isso seguiam também muitas provisões, que iam do pão às aves e à caça, incluindo 10 arrobas de açúcar que o rei mandou entregar, a 20 de Julho, a Martinho Vaz, guarda-reposte da duquesa.
Tudo estava finalmente a postos para uma partida que o rei desejava se efectuasse a 25 de Julho, dia de Santiago. Mas a jovem duquesa adoeceu de febres, de que só se restabeleceu cerca de 2 semanas mais tarde. Domingo, dia 4 de Agosto, saíram do paço da Ribeira, pelas quatro horas da tarde, o rei D. Manuel, a rainha D. Leonor, o príncipe D. João, os infantes e infantas, vestidos de gala, o rei à flamenga, o príncipe D. João à portuguesa, outros à saboiana.
A duquesa-infanta seguia numa liteira com a rainha D. Leonor, a infanta D. Isabel numa mula, com guarnição e andilhas de chaparia de ouro.
Garcia de Resende descreve de forma minuciosa e visual esta jornada que levou a família real e corte pela cidade, cheia de povo, da Tanoaria à Rua Nova, "que estava mui formosa cousa, toda armada de mui rica tapeçaria" e daí até à Sé, onde fizeram as suas orações.
Rua Nova dos Mercadores, aut. desc., século XVI. Society of Antiquaries of London |
Encaminharam-se em seguida para as casas da rainha velha D. Leonor, de quem a infanta D. Beatriz se despediu. Depois, pela Ribeira, a comitiva régia regressou ao paço onde, na grande sala ornada de ricas tapeçarias de ouro, dossel, alcatifas, cadeiras e almofadas de brocado, teve lugar um serão com música e dança.
Rua Nova dos Mercadores, aut. desc., século XVI. Society of Antiquaries of London |
Terminava o baile, já alta a noite; agora, pela mão de Gil Vicente, a Providência, "em figura de Princesa, com esfera e ceptro na mão", enviada por Deus a Júpiter, urgia com este nobre rei, senhor dos elementos, a que fizesse "cortes com solenidade": nelas devia ordenar que ventos, sol, lua e mares fossem propícios à viagem que havia de levar a “alta infante portuguesa, /duquesa pera Sabóia”.
Convocado foi também Marte, deus da guerra, que assegurava perante o rei dos deuses a tranquilidade da viagem. Num outro plano, inserindo-se num imaginário marinho, descrevia depois Gil Vicente o cortejo em que cónegos da Sé e vereadores da Câmara, estudantes e bacharéis, frades e ouvidores, juízes e regateiras, enfim, simbolicamente todo o reino, se transformariam num séquito de homens-peixes para acompanhar a partida da duquesa.
Numa encenação carregada de referências mitológicas e astrológicas, talvez sublinhadas por algumas das tapeçarias que cobriam as paredes do grande aposento não faltava o "toque" burlesco e satírico que não atingia, no entanto, as personagens de sangue real: os infantes acompanhavam a duquesa, mas em natural majestade, e o príncipe herdeiro seria conduzido por cavalos-marinhos, num andor de ouro; a sua aparência era a de "um Alexandre Segundo".
Tal como várias outras criações do seu autor, além da construção alegórica, a tragicomédia Cortes de Júpiter evidenciava a plena integração da música na dramaturgia vicentina; quase no desfecho da peça, o "Romance" "Niña era la infanta" foi cantado "por planetas e sinos [sic] a quatro vozes".
Lisboa, Chafariz d’El-Rey, óleo sobre madeira de carvalho, 93 x 163 cm, autor desconhecido (Colecção Berardo), c. 1570. Lisboa, cidade africana |
O aparato dos festejos que se seguiram até à partida da frota foi extraordinário.
No dia seguinte ao serão no paço, 2ª feira, dia 5 de Agosto, toda a família real, "com grandíssimo estado", acompanhada pelo duque de Bragança e a mais alta nobreza do reino, embaixadores, oficiais e toda a casa da infanta e de muitos músicos e instrumentos, atravessando a sala grande, situada no piso de cima do paço, desceram pela grande varanda e vieram ter a um cais, "que estava dentro de água, tudo armado de mui rica tapeçaria, e o cais alcatifado".
Retrato do rei D. Manuel I, detalhe do vitral do coro da igreja do Mosteiro da Batalha, 1514-1518. Google Arts & Culture |
Embarcaram num grande batel ornado de bandeiras e estandartes de damasco carmesim e branco, as cores heráldicas do rei.
Em redor deste batel, e seguindo-o, todas as outras naus, galés, galeões e caravelas que compunham a armada ornamentados cada um com suas cores, soando a música das charamelas, trombetas e tambores; muitos outros navios, caravelas e batéis da cidade de Lisboa, embandeirados e enramados, seguiam também a nau onde se deslocava a família real.
Lisboa c. 1500–1510, Crónica de Dom Afonso Henriques, Duarte Galvão. Wikipédia |
O povo de Lisboa apinhava-se nas janelas, a pé e a cavalo na Ribeira para assistir à partida da infanta-duquesa, que grossa artilharia assinalava, atroando os ares.
A nau Santa Catarina do Monte Sinai, ostentando bandeiras e velas de pano branco com as cruzes de Cristo, recebeu a comitiva através de uma grande ponte feita sobre barcas, armada de tapeçaria, onde todos cearam e estiveram até à noite.
Retiraram-se então os reis e o príncipe D. João, que regressaram ao paço; a infanta D. Isabel, os infantes, o conde de Vila Nova, os embaixadores e demais comitiva que seguiria em breve com D. Beatriz dormiram a bordo da nau, que é descrita quer no seu aparato exterior, quer nos seus luxuosos interiores, aposentos, câmaras – as da infanta "pintadas de ouro e forradas de brocados" – escadas, despensas, cozinhas e ornamentos.
Santos Mártires Veríssimo, Máxima e Júlia, Desembarque em Lisboa, Garcia Fernandes. Museu Carlos Machado |
A organização espacial dos aposentos destinados à infanta e suas damas e serviçais, descrita por Resende, recorda irresistivelmente os aposentos do paço da Ribeira: no andar de cima, as salas e câmaras da infanta, ornamentadas de tapeçarias de ouro, almofadas de brocado, veludos e alcatifas, e debaixo, com acesso através de escada, "o [aposentamento] das suas damas e mulheres, mais guardado que um encerrado mosteiro".
No dia seguinte teve lugar um serão a bordo da nau, com a presença dos reis, infantes e membros da corte e séquito da infanta. A partida aproximava-se; o dia seguinte, quarta-feira, 7 de Agosto, foi, segundo o cronista, um dia de lágrimas e saudade, em que as despedidas se faziam já definitivas.
Beatriz de Portugal (1504-1538). Google Arts & Culture |
No dia 8, pela manhã, a nau Santa Catarina do Monte Sinai largou, e com ela todas as embarcações que compunham a armada que seguia para Nice, seguidas de uma multidão de barcos que da cidade queriam acompanhar a saída da infanta [...] (1)
(1) Ana Isabel Buescu, A infanta beatriz de portugal e o seu casamento na casa de Sabóia (1504-1521)
Informaçao relacionada:
Richard Barker, Showing the flag in 1521: wafting Beatriz to Savoy
Richard Barker, Sources for Lusitanian shipbuilding
Royal Museums Greenwich
Santa Catarina do Monte Sinai (military wikia)
Master of Seas
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