Apresentado no Salão do Grémio Artístico de Lisboa em 1897, e na
Exposição Universal de Paris em 1900. O quadro, foi pintado em 1896, e
comprado em Dezembro, por 280 000 reis por José Relvas. O mesmo
perdeu-se no naufrágio do "Saint-André" em 1901. As medidas originais
eram 400 x 650 mm.
À passagem do comboio (segunda versão), José Malhoa, c. 1905. Provocando
Hoje conhece-se apenas por uma reprodução do
quadro gravada (xilogravura) por Charles Baude para o "Le Monde
Illustré" (Litogravura s/ papel seda, CMP, Invº n.º 86.154, 350 X 450
mm), e por uma gravura de A. P. Marinho, reproduzida no catálogo da 7ª
Exposição do Grémio Artístico de 1897.
Reproduzido em "Branco e Negro" de 1897, p. 102. Malhoa fará depois uma segunda versão que levou a
Paris em 1905 e ao Rio em 1906." (1)
En voyant passer le train / À passagem do combóio, 1896, 40x65.
Inicialmente apresentado na 7ª Exposição do Grémio Artístico, 1897, já
sem preço de catálogo – sinal de haver sido vendido, ainda com o verniz a
secar, a José Relvas. O mesmo que o haveria de emprestar e perder
agora.
"À passagem do comboio – é uma animada scena, tão
frequente, a que o pincel de Malhôa apanhou em flagrante toda a vida e
intensa expressão d’alegria expontanea. O comboio foge rapidamente e o
rapazio, que correu ás barreiras a vel-o passar, ainda não acabou a
esfuziada de gritos e risos; teem todos o gesto animado das grandes
ocasiões, um lança a perna sobre o ripado, agita-os um extremecimento de
vida, só a rapariguinha que traz ao collo a irmã pequenina, conserva
attitude socegada de quem, tendo um dever a cumprir, não pode deixar-se
arrebatar por enthusiasmos." – assim o descrevera Ribeiro Arthur aquando
da apresentação, em 1897.
Malhoa fará uma segunda versão de À
passagem do combóio, c.1905. Aparentemente menos interessante, e onde
enfia o barrete ao cachopo deitado sobre a cerca. Levá-lo-á ao Brasil em
1906, ali será vendido a "Baldº Carq.ja Fuentes" [Baldomero Carqueja Fuentes], por "1:900$000
(…) em moeda brazileira".
É, muito possivelmente, este, não datado, e
que entretanto terá vindo mais recentemente repatriado. Assim, a correr, é esta a história possível das seis obras que Malhoa levou à Exposição Universal de Paris, 1900.
Depois, na volta, o barco que as trazia afundou-se. Perderam-se cinco
das obras de Malhoa e mais uma série de outras de outros Artistas
nacionais. Foi grande a perda - como se pode calcular! A esta exposição
internacional havia ido do melhor que então por cá era produzido. (2)
"Este quadro, assim descrito, ou é coisa completamente desconhecida ou,
entre tudo o que hoje sabemos, só poderá ser À passagem do combóio,
1896. O que é muito provável, se olharmos bem para o que dele resta.
À passagem do comboio, José Malhoa, 1896.
En voyant passer le train, gravura de Charles Baude, segundo o quadro perdido de Malhoa. Provocando
A assim ser, estaríamos apenas perante uma parte dos irmãos e não
«todos os filhos em forma» – o que se afigura perfeitamente natural. Por
essa data, 1895/6, os três mais velhos, Saúl, Aida e Maximino – que,
aliás, quase nunca aparecem nesta saga familiar a tinta d’óleo –
teriam todos mais de quatorze anos e, por essa altura e naquela vida,
era idade onde já se não andava na gandaia… a labuta à séria
ocupá-los-ia.
Deste modo, o retrato da «extremosa mãe, com todos
os filhos em forma, quando entre as oito e as nove (…) lhes ministrava o
repasto do almoço» resumir-se-á, provavelmente, aos mais novitos, aos
que já com algumas obrigações familiares – cuidar dos animais e da
criação, levar e trazer o gado do pasto, ir às pinhas ou aos gravetos… –
ainda tinham vida livre de garotada.
O cenário não é estranho na obra
figueiroense de Malhoa – já o havíamos divisado em Os ouriços, 1894, e
podemos vê-lo n’ A Sesta (a dos ceifeiros), 1895, e n’ As Cócegas, a de
1894 e nas de1904, por exemplo.
O "amigo António", com oito ou
nove anos, esparramado sobre o varal da vedação; o Noé, já com doze ou
treze, de barrete e calças rotas nos joelhos; o Venâncio, agora com seis
anitos, empoleirado na trave, "ainda não acabou a esfuziada de gritos e
risos"; a Preciosa, com nove ou dez anos enfezados, subiu à pedra para
ganhar altura e segura uma das cestas do almoço já tragado – certamente
veio com a Mãe trazer a bucha aos catraios que andavam com as ovelhas no
restolho deixado da ceifa – a mãe Tereza trouxe, além da outra cesta, o
mais pequenito ao colo (não sabemos se o Adelino ou o Zé…).
Esta
é uma narração perfeitamente possível deste quadro. E, a acreditar no
que nos conta António, bem provável de ser real.
En voyant passer le train, d'aprés Malhoa, Charles Baude. Galerie Napoléon
A outra, a frenética de
Ribeiro Arthur, também – basta a sugestão dos paus de fio e
imaginar o cavalete de Malhoa dentro duma carruagem em movimento… o
título, bem engendrado por Malhoa, inspirado nas muitas viagens entre
Lisboa e o Paialvo, faz o resto. (3)
Assomava a primavera de 1849. — N'esse tempo, em Portugal, havia primavera. — Deixou bem gratas recordações áquelles, que são hoje açoitados, em abril e maio, com as granisadas aspérrimas de dezembro!
Os dias da estação vernal chegavam-nos sorridentes, azues, e illuminados. As roseiras nos jardins, o pomar na horta, o relvão nas chapadas, cobriam-se de botões e de flores.
O pardal nos beiraes dos telhados, as andorinhas nos ares, as tutinegras, os rouxinoes nos balsedos e nas faias sussurrantes e sombreiras, papeavam, alegres e enamorados.
A Ajuda, n'esta epocha, era deserta e silenciosa. Ruinas a cada passo. No largo da Patriarchal, que desabara, só havia de pé a torre! O grande sino, melancholico e solemne, batia as horas e os quartos. Os echos, repetindo-se de quebrada em quebrada, expiravam no fundo do valle, lá em baixo, na margem do rio.
O silencio, quando o vento estava sul, era interrompido pelos sons vibrantes das bandas marciaes de infanteria 1 e de lanceiros 2.
Ás vezes, de envolta com as ondas de sons, vinham gritos dilacerantes, despedaçadores; gritos que é preciso ouvir, para ter perfeita idéa d'elles! Partiam do peito de um soldado, cujas costas eram retalhadas cruelmente no supplicio da vara!
O palácio, enorme, vasio e sonoro, além de algumas velhas e pobres creadas do antigo Paço, abrigava bandadas de pombos, que tinham farto pastio nas sementeiras ferazes da Serra de Monsanto, na baga do zimbro, na flor do loureiro bravo, e sombra propicia no zambujal fechado da realenga tapada. Os subúrbios da Ajuda eram deliciosos.
Ao pé da porta o Jardim Botânico, dirigido por José Maria Grande.
Não ficava longe o amenissimo Valle das Romeiras, e, querendo alargar um pouco o passeio, tínhamos Carnaxide, Linda a Velha, e Linda a Pastora, com as suas casitas a alvejar de entre a verdura dos quintaes; e então, como pittorescas, quando as searas tenras circumjacentes ondeavam com o norte límpido, que ao mesmo tempo fazia girar, silvando, as velas brancas dos moinhos, agrupados, aqui e além, nos outeiros crespos e pelo dorso flexuoso da serra!
Um dia Almeida Garrett escreveu uma longa carta a Alexandre Herculano. N'esse papel fazia-se uma confidencia amarga!
O poeta havia levado mais um revez, dos muitos da sua combatida e
aventurosa existência. Estava n'um momento análogo áquelle, que lhe
inspirara — n'umas paginas de prosa, que vêm nas "Flores sem fructo" —
esta apostrophe á solidão:
"Solidão, eu te saúdo! Silencio dos bosques, salve!
A ti venho, ó natureza: abre-me o teu seio.
Venho depor n'elle o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida."
Suppunha, illudido pela dor, que poderia prescindir do mundo, elle, o
mais mundano de todos os artistas; elle, para quem os fastígios do
poder, as pompas do luxo, os máximos requintes do gosto; as pérolas, as
saphiras, as esmeraldas e os diamantes, rutilando no seio, nas mãos, nos
cabellos negros retintos, ou loiros acendrados, da mulher apetecida —
ou adorada — se tornavam impreteriveis!
Mas, no momento, a sua dor era intensa e sincera; por isso,
confirmando o preceito de Horácio, ao descrevel-a, a todos nos commovia.
Grandes foram as provações, porque passou aquelle desmesurado
espirito!
Para quem o lidou de perto, sobretudo nos últimos tempos,
pelos seus versos — "Flores sem fructo", e "Folhas
caídas" — é fácil determinar quaes foram as crises, os accessos
dolorosos, no drama d'aquelle
coração, que teve mais de um affecto, que facilmente se deixava seduzir,
mas que tão profunda, tão arrebatadamente se apaixonava!
Depois de grandes desgostos domésticos, que
as dicacidades brutaes e malévolas de ânimos
corrompidos vinham ainda envenenar, o poeta
parecia succumbir aos revezes da má fortuna.
Uns versos das "Flores sem fructo" explicam
o estado da alma do auctor do "Camões", n'esse
periodo. Não é a dor acerba, é o desalento supremo; tédio, fastio moral, o mais requintado
tormento, que pode cruciar o homem!
Quando uma luz imprevista, serena e penetrante, o veiu arrancar áquella apathia moral, o poeta disse:
Eu caminhava só, e sem destino,
No deserto da vida;
N'alma apagada a luz, e o desatino
Na vista esmorecida:
E afastava de mim, que me impeciam
No caminhar adeante,
Os prazeres dos homens, que sorriam,
E a turba delirante
De seus empenhos vãos. — Aos que gemiam
Sorria eu de inveja...
Quem podéra gemer!... mas arredava
Esses também: não seja
Traição a sua dor! — Eu caminhava
Só, triste, só, sem luz e sem destino,
A vista esmorecida,
A alma gasta, apagada, e ao desatino.
No deserto da vida.
Quem não atravessou uma crise funesta não escreve assim. A vida do
homem tem d'estes momentos psychologicos; mas é preciso ser um grande
artista, para lhe acertar com a nota verdadeira, propriamente humana!
Mais adeante, appellando para o suicídio, o poeta exclama:
E sentei-me, cansado, n'um rochedo, Triste como eu, e só, No meio d'este valle de degredo, De lagrimas e dó. Caíu-me a fronte sobre as mãos pesada, E meditei commigo: — Nâo é melhor pôr fim a esta jornada, E poisar no jazigo?...
Do céo, morno e pesado, as nuvens rarefazem-se, e elle diz:
Olhei... e vi o azul do firmamento Só, sem nenhum brilhar De estrellas, ou de lua... Mas logo se inundava, n'um momento, De uma luz alva, doce e resplandente, Que me entrou toda n'alma!...
Esta luz, esta nova estrella do poeta, era de certo a singular
creança de dezoito annos, cheia de talento, primorosamente educada,
bella, e, sobretudo, fina, que se enamorara perdidamente do génio e da
viuvez de coração de Almeida Garrett, cujo nome era saudado nos jornaes,
applaudido no theatro, coroado no parlamento, e nas academias!
Elle emprestou-lhe a "Nova Heloísa" do apaixonado João Jacques [Rousseau, Jean-Jacques, Julie ou la Nouvelle Héloïse]. O livro levava, a lápis, umas notas intencionaes.
Adelaide respondeu a ellas, e um dia, cega, arrebatada, perdida,
pungido o coração que exhaurira, na anciã de amar, as derradeiras notas
do prazer, deixou tudo, tudo... o enleio das suas phantasias virginaes, o
ambicionado futuro de uma união santa, o mundo, e a fama e o seio
materno, para refugiar-se, transportada, nos braços do genial poeta!
Quem lhe não havia de perdoar o seu erro, o seu crime — se crime foi — redimido por tamanho amor!
Pondo de parte o extraordinário Miguel Angelo, de quem se conta, que
não amou em toda a sua vida senão a Victoria Colonna, e que, só depois
de morta, lhe deu o primeiro beijo, os artistas são susceptíveis de
diversas e desvairadas impressões.
É providencial, ás vezes! Se Garrett, já no declinar da vida, não
fosse accommettido de nova leviandade, — se por tal a querem capitular —
não teríamos esse livro delicioso, que se intitula "Folhas caídas" .
Estavam quasi todas escriptas as Folhas caídas, quando, em 1849, o auctor veiu para o eremitério da Ajuda. — A serenidade luminosa d'aquella casa convinha ao estado de espirito do poeta em tal momento. Não podia escolher, melhor retiro.
Emquanto o auctor da Historia de Portugal proseguia no grandioso trabalho, Garrett, no seu quarto, cuja janella deitava para um lindíssimo panorama, tinha horas recolhidas e meditadas, — agora, corrigindo este verso, ou limando tal período de prosa, logo tirando da estante um livro, e folheando este ou aquelle auctor predilecto.
O grande poeta, n'esse tempo, tinha cincoenta annos. Ao escrever estas linhas, tão vivo se me está retratando na memoria, que me parece vêl-o!
Em muito rapaz, uma desastrada queda arrancara-lhe a pelle desde a nuca até á parte superior do craneo, obrigando-o a usar cabello postiço; mas com tal arte o trazia, que parecia de um desalinho natural.
A testa ampla e não sulcada de rugas. Os olhos, rasgados, luminosos e insinuantes, eram garços. O olhar, fundo e meditativo, illuminava-se, a espaços, de luz faiscante. Não conheci mais expressivo olhar! As pálpebras pisadas. A barba em volta do queixo, ao uso do seu tempo, sem bigode; uma pequena mosca.
A bocca um pouco grande; o beiço inferior grosso; mas a linha graciosa e finíssima. Voz não a ouvi mais harmoniosa e attrahente; voz máscula, de barítono, modelada pelo gosto e pela arte. Como lia, como recitava, e como fallava!
A estatura mediana; peito e hombros largos; mãos fortes e cabelludas. Calumniarara-o também, quando disseram que todo elle era estofos; nada tinha de empréstimo, a não ser o cabello, por um accidente, como já disse.
Na conversação toda a sua physionomia, tão espirituosa, tão distincta, animava-se de expressão indefinível. As vezes dizia: — Vamos arripiar a penna ao Patinho. E contava me uma aventura picante, em que se occultava o nome do heroe, que era elle próprio.
Dos homens como João Baptista, quantos primores, — maravilhas, diremos, — se não perdem para a posteridade! Quanta coisa viva, e espontânea, do colorido mais brilhante; quantos conceitos profundos, observações penetrantes, não voam na conversação dos talentos superiores, quando têem, como Garrett, a singular faculdade da palavra!
Que não houvesse alli, na casa da Ajuda, já descoberta, essa maravilha de encerrar e conservar o som, e se abrisse agora, para ouvirmos o dono da casa e os seus dois hospedes — Garrett e Rebello da Silva — , como eu os ouvi tanta vez!
O poeta aprendera na grande roda e nas grandes luctas a arte de guardar as apparencias, a dolorosa, mas impreterível arte da dissimulação, para escapar, quanto possivel, ás ciladas d'este mundo. Alli, porém, estava entre corações amigos, e, sem fazer confidencias, podia desafogadamente soltar um suspiro!
A nobre alma de Alexandre Herculano, sempre disposta e sempre solicita a acudir a todas as dores humanas, com quanta singelesa, com que delicadíssima e fraterna estima tratou Garrett, durante aquella memorável temporada!
Depois da morte de Adelaide, succederam-se longos, inertes, e amargos
dias para o poeta, que chorava sobre um tumulo, e velava sobre um
berço! Uma vez, porém, embora:
Qual o ataúde levado A egypcio festim...
foi, foi á festa!
Era a noite da loucura,
Da seducção, do prazer,
Que em sua mantilha escura
Costuma tanta ventura, Tantas glorias esconder.
Revia-se a melancholia no rosto do consternado poeta:
Mas a orchestra bradou alta;
— Festa, festa! e salta, salta! Os seus guizos delirantes
Sacode, louca, a Folia...
Adeus, requebros de amantes!
Suspiros, quem n'os ouvia?
D'alli a pouco, estava escripto que outra fascinação viria tomar-lhe a alma de assalto:
Quem é esta que mais voltas
Gira, gira, sem cessar?
Como as roupas, leves, soltas,
Aerias leva a ondular, Em torno á forma graciosa,
Tão fina! — Agora parou,
E tranquilla se assentou.
Que rosto! Em linhas severas
Se lhe desenha o perfil;
E a cabeça tão gentil,
Como se fora deveras A rainha d'essa gente,
Como a levanta insolente !
O risco é inevitável; a perdição está por um fio!
Vive Deus! que é ella.... aquella, A que eu vi na tal janella, E que, triste, me sorria, Quando, passando, me via Tão pasmado, a ciliar para ella!
Estes e os demais versos, foram feitos ao novo idolo, ao derradeiro Ignoto Deo do poeta; mas o Adeus que os precede, e que vale por elles todos, é uma supplica encarecida, perdão implorado com lagrimas acerbas á memoria d'aquella Adelaide, que tudo sacrificou por elle, a mãe da sua única e adorada filha!
Vista da Egreja das Chagas e do pateo do Pimenta residência de Almeida Garrett e Adelaide Pastor,
gravura de João Pedroso, 1863. Hemeroteca Digital
Nunca o poeta, quando na flor e na força da vida, escreveu nada mais realista, mais sinceramente apaixonado ! Nunca o lyrismo do amor subiu mais alto, foi mais puro e arrebatado! Parece, que as lagrimas trazem sangue espumante, que o remorso espremeu do coração!
Adeus! Para sempre adeus! Vae-te! Oh, vae-te! Que nesta hora Sinto a justiça dos céus Esmagar-me a alma, que chora. Choro, porque não te amei, Choro o amor que me tiveste!
O que eu perco, bem n'o sei, Mas tu ... tu nada perdeste: Que este mau coração meu, Nos secretos escaninhos, Tem venenos tâo damninhos, Que o seu poder só sei eu!
Leiam estes prodigiosos versos, versos de paixão, que poeta algum escreveu em tal edade, e hão de sentir as angustias e dores, que lhe salteavam a alma ante a mudez do tumulo, onde jazia a morta, que o idolatrou!
Fraquezas de espirito, misérias humanas, ninguém se disciplinou d'ellas com mais desenganado açoite, nem houve Job, que se cobrisse de cinza com mais humilde contricção, voltando o farpão da própria lingua contra a carne viva dos próprios vicios!
Ninguém se penitenciou tão sincera e cruelmente, como o grande poeta, n'estes singulares versos! Por millenios lhe podiam contar os peccados, que todos redimiu com o fervor de tal arrependimento!
Oiçamol-o agora, oiçamol-o, quando se despede da sombra pallida, que, ao separar-se d'elle para sempre, lhe legara, como ultima fineza do seu amor, o thesoiro d'uma filha:
Vae, vae... para sempre, adeus! Para sempre, aos olhos meus, Sumido seja o clarão De tua divina estrella! Faltam-me olhos e razão Para a ver, para entendel-a.
Alta está no firmamento Demais, e demais é bella Para o baixo pensamento Com que, em má hora, a fitei; Falso e vil o encantamento Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua belleza Do azul do ceu á pureza, E que a mim me deixe aqui Nas trevas em que nasci; Trevas negras, densas, feias, Como é negro este aleijão,
D'onde me vem sangue ás veias, Este que foi coração, Este que amar-te não sabe, Porque é só terra — e não cabe N'elle uma idéa dos céus!... Oh! vae, vae; deixa-me! Adeus!
Correram, para o apartado eremitério da Ajuda, gratos e saudosissimos os mezes do verão de 1849!
No anno seguinte, Almeida Garrett, em julho, veiu passar um dia comnosco. Rebello da Silva e o conde de Carvalhal tinham apparecido por acaso. Conde de Carvalhal, a flor da elegância, o extremo da educação, o primor do gosto, e, mais do que tudo ainda — uma alma brilhante e transparente como crystal de Bohemia!
Uma fragata inglesa a chegar ao
Tejo frente à Torre de Belém, com uma fragata portuguesa ancorada ao
largo pela sua popa, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834. Cabral Moncada Leilões
Ás duas e meia, em ponto, — hora habitual, — fomos para a mesa. Alexandre Herculano estava de bom humor, como os grandes batalhadores em tempo de guerra.
Tinha escripto "Eu e o clero" — , e esperava a força da refrega para cair, de sabre em punho, e á escala vista, no baluarte inimigo.
Garrett, que parecia de animo desanuviado, deu largas á fecunda palavra. Ao café appareceu José Maria Grande, que vinha convidar-nos a passar a tarde no Jardim Botânico, onde tinha ido ser sua hospeda uma familia da nossa primeira sociedade.
Quando, á noite, nos reunimos na casa do Jardim Botânico, entre outras pessoas, éramos — as que havíamos jantado na Ajuda, e a mais o conde de Belmonte, e D. João e D. Gastão da Gamara. Restam vivos Carvalhal, D. Gastão e eu.
Animando a sala havia duas senhoras; uma casada, outra solteira. Ambas também já não pertencem ao numero dos vivos! A solteira era alta, delgada ; a cinta estreita; o pé andaluz; as mãos finas; a cabeça pequena, o cabello loiro, com reflexos de fogo, e ás ondas.
Caricatura de Garrett defronte da viscondessa da Luz, A Matraca, 1848.
Por largo campo, indómita e fremente
Corre a revolução,
Da vossa Luz a rápida torrente
Me alegra o coração Cartas de amor à viscondessa da Luz
A bocca, pequena e vermelha, sorrindo, juvenil e alegre, deixava entrever duas renques de pérolas. Os olhos azues, e via-se n'elles o azul crystalino e ethereo da sua alma angélica!
Amava cegamente, e tinha deante dos olhos aquelle, a quem, d'alli a quatro annos contados, havia de entregar o seu apaixonado coração de amante e de esposa.
Esta senhora chamava-se: Mathilde Montufar [Rosa Montufar]. Oh! que dias de luz ha no mundo! Luz intensa, scintillante, deslumbradora, que, na tre- menda e immutavel antithese da vida, tem de ser contrastada pelas sombras caliginosas e profundas!
A meio da noite pediram, com viva instancia, versos. Recitei o Adeus das Folhas caídas, então inéditas. A disposição dos espiritos, a novidade e extraordinária belleza d'aquelles versos, a presença do auctor, tudo concorreu, para que a sensação produzida fosse grande. Garrett sabia dominar-se; porém a muito custo conteve a commoção.
Piquenique na Quinta do Palheiro Ferreiro, Tomás da Anunciação, 1865.
D. António Leandro da Câmara Carvalhal Esmeraldo Atouguia Bettencourt de Sá Machado, 2.º Conde de Carvalhal, grande proprietário, nascido em 1834, casado em 1854 com D. Matilde Montufar Infante, filha dos Marqueses de Selva Alegre em Espanha. Desse casamento nasceram duas filhas, D. Maria da Câmara, Condessa de Resende e D. Teresa da Câmara, Condessa de Ribeiro Real
[Bulhão Pato confundo os nomes de Rosa e Matilde].
Imagem: Museu Quinta das Cruzes
N'este momento, mais do que nunca, a imagem serena e resignada, que se invocava n'aquelles versos, devia pungil-o no centro do coração, e na fibra do remorso!
Oh! vae-te, vae, longe, embora! Que te lembre sempre e agora Que não te amei nunca... Ai! não; E que pude, a sangue frio, Covarde, infame, villão, Gosar-te — mentir sem brio. Sem alma, sem dó, sem pejo, Commettendo em cada beijo Um crime... Ai! triste, não chores, Nâo chores, anjo do ceu, Que o deshonrado sou eu.
[v. o texto integral]
No resto d'essa noite, nos bellos olhos, e no rosto do poeta, serenavam, a custo, as ondas de uma tempestade!
Biblioteca Nacional de Portugal (bibliografia): Hino Patriótico (poema), Porto 1820, folheto impresso [Recuper. por
Teófilo Braga, in Garrett e os Dramas Românticos, Porto 1905] Proclamações Académicos, Coimbra 1820, folhetos mss. [Reprod. in O Patriota, nº 67 (15 Dez.), Coimbra 1820] Ao corpo académico (poema), in Colecção de Poesias Recitadas na Sala
dos Actos Grandes da Universidade [...], Coimbra 1821 [Recuper. por
Martins de Carvalho, in O Conimbricense, Ano XXVII, nº 2823 (14 Ag.),
Coimbra 1874] O Dia Vinte e Quatro de Agosto (ensaio político), Lisboa Ano I (1821) O Retrato de Vénus (poema), Coimbra Ano I (1821) [Incl.: Ensaio sobre a História da Pintura] Catão. Tragédia, Lisboa Ano II (1822) [Incl.: O Corcunda por Amor, farsa, co-autoria de Paulo Midosi] Aos Mortos no Campo da Honra de Madrid. Epicédio, folheto [reprod. do
Jornal da Sociedade Literária Patriótica, 2º trim., nº 18 (13 Set.),
Lisboa 1822, vol. II, pp. 420-423] Oração Fúnebre de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1822, opúsculo
[Colig. in Discursos e Poesias Fúnebres [...], Celebradas para Prantear a
Dor e Orfandade dos Portugueses, na Morte de Manuel Fernandes Tomás,
Lisboa 1823] Camões. Poema, Paris 1825 Dona Branca, ou A Conquista do Algarve (poema), Paris 1826 Da Europa e da América e de Sua Mútua Influência na Causa da
Civilização e da Liberdade (ensaio político), in O Popular, jornal
político, literário e comercial, vol. IV, nº XIX (Mai.), Londres 1826,
pp. 25-81 Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa, in Parnaso
Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos,
vol. I, Paris 1826 [Incl.: introdução A Quem Ler] Carta de Guia para Eleitores, em Que se Trata da Opinião Pública, das
Qualidades para Deputado e do Modo de as Conhecer (ensaio político),
Lisboa 1826, opúsculo Adozinda. Romance (poema), Londres 1828 [Incl.:
Bernal Francês] Lírica de João Mínimo, Londres 1829 Lealdade, ou a Vitória da Terceira (canção), Londres 1829, folheto Da
Educação. Livro Primeiro. Educação Doméstica ou Paternal, Londres 1829 Portugal na Balança da Europa. Do Que Tem Sido e do Que Ora Lhe
Convém Ser na Nova Ordem de Coisas do Mundo Civilizado (ensaio
político), Londres 1830 Elogio Fúnebre de Carlos Infante de Lacerda, Barão de Sabroso,
Londres 1830, folheto Carta de M. Cévola, ao futuro editor do primeiro
jornal liberal que em português se publicar (panfleto político), Londres
1830 [Pseud.: Múcio Cévola, 2ª ed. transcrita in O Pelourinho, nº V,
Angra [1831?, com o título Carta de M. Cévola, oferecida à contemplação
da Rainha, a senhora Dona Maria segunnda] Relatório dos decretos nº 22, 23 e 24 [reorganização da fazenda,
administração pública e justiça], Lisboa 1832, folheto [Reprod. in
Colecção de Decretos e Regulamentos [...], Lisboa 1836] Manifesto das Cortes Constituintes à Nação, Lisboa 1837, folheto [Reprod. in Diário do Governo, nº199 (24 de Ag.), Lisboa 1837] Da Formação da Segunda Câmara das Cortes. Discursos Pronunciados nas Sessões de 9 e 12 de Outubro, Lisboa 1837 Necrologia [do conselheiro Francisco Manuel Trigoso de Aragão
Morato], in O Constitucional, nº 272 (13 Dez.), Lisboa 1838 [Relatório
ao] Projecto de lei sobre a propriedade literária e artística, in Diário
da Câmara dos Deputados, Vol. II, nº 35 (18 Mai.), Lisboa 1839 Discurso do Sr. Deputado pela Terceira, J. B. de Almeida Garrett, na
Discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, Lisboa 1840 [Discurso dito
do Porto Pireu, em resposta a José Estevão] Mérope, tragédia. Um Auto de Gil Vicente, drama, Lisboa 1841. Discurso do Sr. Deputado por Lisboa J. B. de Almeida Garrett na Discussão da Lei da Décima , Lisboa 1841, folheto O Alfageme de Santarém, ou a Espada do Condestável, Lisboa 1842 Elogio Histórico do Sócio Barão da Ribeira de Saborosa, in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, Tomo II (8), Lisboa 1843 Memória Histórica do Conselheiro A. M. L. Vieira de Castro,
biografia, Lisboa 1843, folheto [Anón., sobre o ministro setembrista
António Manuel Lopes Vieira de Castro] Romanceiro e Cancioneiro Geral, Lisboa 1843 [Incl.: Adozinda (2ª ed.) e outros «romances reconstruídos»] Miragaia, Lisboa 1844, folheto impresso [de Jornal das Belas Artes]
Frei Luís de Sousa, drama, Lisboa 1844 [Incl.: Memória. Ao Conservatório
Real, lida na representação do drama no teatro da Quinta do Pinheiro em
4 de Julho 1843] O conselheiro J. B. de Almeida Garrett [Autobiografia], in Universo
Pitoresco, nº 19-21, Lisboa 1844 [Carta sobre a origem da língua
portuguesa], ensaio literário, in Opúsculo Acerca da Origem da Língua
Portuguesa [...] por dois sócios do Conservatório Real de Lisboa, Lisboa
1844 O Arco de Santana. Crónica portuense, romance, vol. I, Lisboa 1845 [Anón.] Os Exilados, À Senhora Rossi Caccia, poesia, Lisboa 1845, folheto
[Reprod. in Revolução de Setembro, nº 1197 (31 Mar.), Lisboa 1845, p. 2,
anónimo e título A Madame Rossi Caccia, cantando no baile de subscrição
a favor dos emigrados] Memória Histórica do Conde de Avilez, biografia, in Revolução de Setembro, nº 1210 (15 Abr.), Lisboa 1845 Flores Sem Fruto (poesia), Lisboa 1845 Da Poesia Popular em Portugal, ensaio literário, in Revista Universal
Lisbonense, Tomo V, nº 37 (5 Mar.) – 41 (2 Abr.), Lisboa 1846; [cont.
sob título:] Da Antiga Poesia Portuguesa, in id., Tomo VI, nº 9 (23 Jul.), 13 (20 Ag.), Lisboa 1846 Viagens na Minha Terra, romance, 2 vols., Lisboa 1846 Filipa de Vilhena, comédia, Lisboa 1846 [incl.: Tio Simplício, comédia, e Falar Verdade a Mentir, comédia] Parecer da Comissão sobre a Unidade Literária, in Revista Universal
Lisbonense, nº 16 (10 Set.), Lisboa 1846, vol. VI, sér. II, pp. 188-189
[dito Parecer sobre a Neutralidade Literária, da Associação Protectora
da Imprensa Portuguesa, assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães,
Visconde de Juromenha, A. Herculano e João Baptista de A. Garrett] Sermão pregado na dedicação da capela de Nª Srª da Bonança, folheto,
Lisboa 1847 [raro, reproduzido com o título Dedicação da Capela dos Srs.
Marqueses de Viana (...) in Escritos Diversos, Lisboa 1899, Obras Completas, vol. XXIV, pp. 281-284, redac.: Lisboa 1846] Memória Histórica da Excelentíssima Duquesa de Palmela, Lisboa 1848 [folheto] Memória Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, Lisboa 1849
[separ., reprod. de A Época. Jornal de indústria, ciências, literatura, e
belas-artes, nº 52, tom. II, pp. 387-394] O Arco de Santana. Crónica Portuense, romance, vol. II, Lisboa 1850 Protesto Contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa,
abaixo-assinado, folheto, Lisboa 1850 [Subscrito, à cabeça, por
Herculano e mais cinquenta personalidades, contra o projecto de «lei das
rolhas» apresentado pelo governo] Necrologia de D.ª Maria Teresa Midosi, in Diário do Governo, nº 221 (19 Set.), Lisboa 1950 Romanceiro, vols. II e III, Lisboa 1851 Cópia de uma Carta Dirigida ao Sr. Encarregado de Negócios da França
em Lisboa, Lisboa (19 Agosto) 1852 [litogr., sobre o tratado de comércio
e navegação com o governo francês, que assinou como ministro dos
negócios estrangeiros] O Camões do Rossio, comédia, Lisboa 1852 [co-autoria de Inácio Feijó] Folhas Caídas, poesia, Lisboa 1853 Fábulas – Folhas Caídas, poesia, 2ª ed., Lisboa 1853
A época que decorreu desde a revolução do Minho até aos primeiros dias da regeneração, foi, aparte os anmos que seguiram desda 1834 até 1840, a época de maior movimento, de mais energia e sincero enthusiasmo de Portugal, nos nossos dias.
Lisboa, Largo do Corpo Santo, A. E. Hoffman, c. 1833.
Em Coimbra, com o "Trovador", apparecera um grupo de moços, que, dentro da escola do seu tempo, revelavam condições de subido mérito.
Aparte os poetas, entre os quaes João de Lemos tinha o primeiro logar, cursavam a universídade rapazes como A. A. Teixeira de Vasconcellos, José Vicente Barbosa du Bocage, Casal Ribeiro, Manuel Maria da Silva Bruschi, Couto Monteiro, Rodrigues Cordeiro, Angusto Lima, Gonçalves Dias, Gomes de Abreu, um dos homens do partido realista que mais tenho presado pelo seu talento, pela sua illustração e principalmente pelo seu nobilissimo caracter.
Prompta a sacudir o jugo dos villãos que deshonravam os fastos da liberdade, de que eram filhos, tentando restaurar o passado, a mocidade de Coimbra, com alguns mancebos das outras escolas do reino, uniram-se no brioso batalhão académico, não desmentindo nem na abnegação, nem na intelligencia, nem no animo temerário, as tradicções d'aquelles que haviam perpetuado a fama do seu nome na Serra do Pilar e na Frecha dos mortos.
No dia 1 de maio, no Alto Viso, vendo cair no campo, ás primeiras descargas, o seu intrépido commandante, Fernando Mousinho, alguns pagaram, com a vida, os louros ceifados no ardor do combate.
Como já disse n'este livro, o enthusiasmo, por esses tempos, respirava-se nos ares.
Não ha nada mais fraterno do que a igualdade das crenças politicas, sobre tudo nos dias da adversidade. Nós os "patuléas pés frescos" tinhamos o nosso santo e a nossa senha. Onde se achava um em perigo, por encanto lhe apparecia o seu camarada, e, como irmãos siameses costas com costas, repelliam os assaltos dos sicários, frequentes nas praças e ruas da capital.
As letras eram para nós um culto, como sao, diga-se a verdade, para a juventude actual; porém os tempos tinham em si mais ardor e mais fervoroso enthusiasmo.
Era um bem o enthusiasmo de então? Será um mal a friesa de hoje? Bem e mal existirá em ambas as circumstancias, como fatalmente se dá em todas as cousas d'este mundo.
Eu pinto uma época — que me faz saudade — posto tenha havido grande reviramento no meu espirito com relação ao modo por que pensava n'esse período da mocidade.
Na Ajuda, ponto de reunião, aos sabbados, dos homens e rapazes de letras, appareceu um dia Luiz Augusto Palmeirim [v. Os excêntricos do meu tempo], ufano por haver travado relações com um moço chegado havia pouco do Brazil.
Era um poeta esse moço. Não se inspirava só no amor da mulher; cantava as amarguras e attribulações do povo a que pertencia, com ardor, verdade, força e inspiração.
Assignava-se "Poeta operário". Conhecia as rudes provações da vida. Tinha transposto os mares até ao Novo Mundo, deixando o lar e as afeições da infância. Partira desamparado e peregrino. Fortalecera-lhe o espirito o trabalho, e engrandecera-lhe a imaginação a magestade do Amazonas, por cujas margens se embrenhara, rompendo e entranhando-se nas florestas virgens, seculares, bravias e mysteríosas.
Voltara á pátria, pobre como saira, não podendo resistir ao seu pendor litterario, e com o fim principal de apertar a mao a Almeida Garrett, de quem recebera algumas palavras animadoras em resposta a uns versos que lhe enviara — quando andava forasteiro, vagabundo e scismador por aquellas remotas paragens.
Este poeta, meu velho amigo de ha tantos annos, era Francisco Gomes de Amorim, em cuja fronte coroada com os lauréis alcançados pelo seu bello talento, nâo faltam, infelizmente, os espinhos do martyrio de uma enfermidade pertinaz e cruel! Luiz Palmeirim, animo desafrontado das emulações e invejas, que roem lentamente as entranhas de tanta gente pequena, vinha offegante de contentamento.
João de Lemos estava n'esse tempo no verdor da mocidade. Era uma bella phisionomia; peninsular legitima.
Cabellos e olhos negros, barba espessa e annelada; boca franca, sorriso aberto e gracioso;. magnifica testa, o porte e os ademâes dos homens do seu berço, do fidalgo de raça. Faiscavam-lhe os olhos com os raios do estro de um verdadeiro poeta. João de Lemos, pelo talento, primor de educação, rasgos de animo, nobreza, de caracter, é um dos homens mais notáveis de quem me ufano de ser amigo.
João de Lemos Seixas Castelo Branco, (1819-1890).
Garrett havia annos que tinha fechadas as portas do parlamento.
A sua voz pausada, cheia, redonda, sonora, a elegância da phrase, que parecia correr dos lábios, como da penna pareciam correr os versos e prosas, logo aos primeiros períodos nos fez bater o coração.
O auctor do "Camões" dirigia-se á mocidade, debuxava os lances por que passara Portugal desde 1820 até aquella época, mas com tal arte que não feriu a minima susceptibilidade, e apellava para a juventude, como a que devia realisar a revolução principiada pela sua geração d'elle.
Lisboa, Praça do Rossio no dia 1 de outubro de 1820. Entrada solene da Junta Provisória do Porto.
Imagem: Histórias com História
"Todos os dias, exclamava o poeta, com os bellos olhos, garços faiscantes de luz, todos os dias, n'essas folhas sibylinas chamadas jomaes, appareceuma estreia onde por vezes scintilla o génio d'esta mocidade que me cerca!... Nós fizemos o que podemos, e foi muito o que fizemos, mas a vossa obra tem de ser maior e mais perfeita."
E tinha e devia de ser... Porém a verdade è qae até hoje não o foi. N'esse dia se estreitaram mais os laços de sympathia entre o auctor das "Folhas Caídas" e Gomes de Amorim.
No lapso do tempo decorrido desde a noite d'essa festa até ao inverno de 1854, em que o visconde de Almeida Garrett expirou, a amisade entre o moço poeta e o grande mestre da tribuna e da scena, foi a mais leal, mais sincera e mais apertada.
Garrett, comprazia-se em frequentar o quarto de rapaz de Gomes de Amorim, dando conselhos com tacto tão fino, decorando com suas próprias mãos o modesto aposento do seu joven amigo!
Havia um tanto ou quanto da solicitude paterna na afeição que Almeida Garrett votava a Gomes de Amorim.
E tem sido essa estima o brasão que mais presa, amda hoje, a nobre e reconhecida alma do poeta!
Como era elevada a figura do auctor de "D. Branca", na simpleza do trato, esquecido das suas grandezas — , que as tinha todas, as que mais se podem ambicionar n'este mundo — n'aqúelle quarto de rapaz, cercado dos seus actores, que elle havia creado para a arte, como para gloria da pátria creara o theatro nacional, com o Alfageme de Santarém, Gil Vicente, Frei Luiz de Sousa, Filippa de Vilhena, a Sobrinha do marquez, e as Profecias do Bandarra. Em quantas cousas era grande o visconde de Almeida Garrett!
Grande na tribuna, grande no theatro, grande nos versos, e principahnente grande na singeleza e no gosto, que parece haver morrido com elle!
Sentia já no coração os primeiros rebates da morte; mas o animo, em vez de cair e agrear-se presentindo o termo das fátuas illusôes d'este mundo, alteava-se, tomando-se mais complacente, mais ameno, mais solicito em soccorrer com o conselho a todos quantos acudiam a elle nos primeiros e incertos passos da vida, tendo na fronte, com a estrella do talento, o cunho da desventura, apanágio fatal de todos os que se elevam acima do vulgar!
Biblioteca Nacional de Portugal (bibliografia): Hino Patriótico (poema), Porto 1820, folheto impresso [Recuper. por Teófilo Braga, in Garrett e os Dramas Românticos, Porto 1905] Proclamações Académicos, Coimbra 1820, folhetos mss. [Reprod. in O Patriota, nº 67 (15 Dez.), Coimbra 1820] Ao corpo académico (poema), in Colecção de Poesias Recitadas na Sala dos Actos Grandes da Universidade [...], Coimbra 1821 [Recuper. por Martins de Carvalho, in O Conimbricense, Ano XXVII, nº 2823 (14 Ag.), Coimbra 1874] O Dia Vinte e Quatro de Agosto (ensaio político), Lisboa Ano I (1821) O Retrato de Vénus (poema), Coimbra Ano I (1821) [Incl.: Ensaio sobre a História da Pintura] Catão. Tragédia, Lisboa Ano II (1822) [Incl.: O Corcunda por Amor, farsa, co-autoria de Paulo Midosi] Aos
Mortos no Campo da Honra de Madrid. Epicédio, folheto [reprod. do Jornal da Sociedade Literária Patriótica, 2º trim., nº 18 (13 Set.), Lisboa 1822, vol. II, pp. 420-423] Oração Fúnebre de Manuel
Fernandes Tomás, Lisboa 1822, opúsculo [Colig. in Discursos e Poesias Fúnebres [...], Celebradas para Prantear a Dor e Orfandade dos Portugueses, na Morte de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1823] Camões. Poema, Paris 1825 Dona Branca, ou A Conquista do Algarve (poema), Paris 1826 Da Europa e da América e de Sua Mútua Influência na Causa da Civilização e da Liberdade (ensaio político), in O Popular, jornal político, literário e comercial, vol. IV, nº XIX (Mai.), Londres 1826, pp. 25-81 Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa, in Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos, vol. I, Paris 1826 [Incl.: introdução A Quem Ler] Carta de Guia para
Eleitores, em Que se Trata da Opinião Pública, das Qualidades para Deputado e do Modo de as Conhecer (ensaio político), Lisboa 1826, opúsculo Adozinda. Romance (poema), Londres 1828 [Incl.: Bernal Francês] Lírica de João Mínimo, Londres 1829 Lealdade, ou a Vitória da Terceira (canção), Londres 1829, folheto Da Educação. Livro Primeiro. Educação Doméstica ou Paternal, Londres 1829 Portugal na Balança da Europa. Do Que Tem Sido e do Que Ora Lhe Convém Ser na Nova Ordem de Coisas do Mundo Civilizado (ensaio político), Londres 1830 Elogio Fúnebre de Carlos Infante de Lacerda, Barão de Sabroso, Londres 1830, folheto Carta de M. Cévola, ao futuro editor do primeiro jornal liberal que em português se publicar (panfleto
político), Londres 1830 [Pseud.: Múcio Cévola, 2ª ed. transcrita in O Pelourinho, nº V, Angra [1831?, com o título Carta de M. Cévola, oferecida à contemplação da Rainha, a senhora Dona Maria segunnda] Relatório
dos decretos nº 22, 23 e 24 [reorganização da fazenda, administração pública e justiça], Lisboa 1832, folheto [Reprod. in Colecção de Decretos e Regulamentos [...], Lisboa 1836] Manifesto das Cortes Constituintes à Nação, Lisboa 1837, folheto [Reprod. in Diário do Governo, nº199 (24 de Ag.), Lisboa 1837] Da Formação da Segunda Câmara das Cortes. Discursos Pronunciados nas Sessões de 9 e 12 de Outubro, Lisboa 1837 Necrologia
[do conselheiro Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato], in O Constitucional, nº 272 (13 Dez.), Lisboa 1838 [Relatório ao] Projecto de lei sobre a propriedade literária e artística, in Diário da Câmara dos Deputados, Vol. II, nº 35 (18 Mai.), Lisboa 1839 Discurso do Sr. Deputado pela Terceira, J. B. de Almeida Garrett, na Discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, Lisboa 1840 [Discurso dito do Porto Pireu, em resposta a José Estevão] Mérope, tragédia. Um Auto de Gil Vicente, drama, Lisboa 1841. Discurso do Sr. Deputado por Lisboa J. B. de Almeida Garrett na Discussão da Lei da Décima , Lisboa 1841, folheto O Alfageme de Santarém, ou a Espada do Condestável, Lisboa 1842 Elogio Histórico do Sócio Barão da Ribeira de Saborosa, in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, Tomo II (8), Lisboa 1843 Memória Histórica do Conselheiro A. M. L. Vieira de Castro, biografia, Lisboa 1843, folheto [Anón., sobre o ministro setembrista António Manuel Lopes Vieira de Castro] Romanceiro e Cancioneiro Geral, Lisboa 1843 [Incl.: Adozinda (2ª ed.) e outros «romances reconstruídos»] Miragaia,
Lisboa 1844, folheto impresso [de Jornal das Belas Artes] Frei Luís de Sousa, drama, Lisboa 1844 [Incl.: Memória. Ao Conservatório Real, lida na representação do drama no teatro da Quinta do Pinheiro em 4 de Julho 1843] O conselheiro J. B. de Almeida Garrett [Autobiografia], in Universo Pitoresco, nº 19-21, Lisboa 1844 [Carta sobre a origem da língua portuguesa], ensaio literário, in Opúsculo Acerca da Origem da Língua Portuguesa [...] por dois sócios do Conservatório Real de Lisboa, Lisboa 1844 O Arco de Santana. Crónica portuense, romance, vol. I, Lisboa 1845 [Anón.] Os
Exilados, À Senhora Rossi Caccia, poesia, Lisboa 1845, folheto [Reprod. in Revolução de Setembro, nº 1197 (31 Mar.), Lisboa 1845, p. 2, anónimo e título A Madame Rossi Caccia, cantando no baile de subscrição a favor dos emigrados] Memória Histórica do Conde de Avilez, biografia, in Revolução de Setembro, nº 1210 (15 Abr.), Lisboa 1845 Flores Sem Fruto (poesia), Lisboa 1845 Da Poesia Popular em Portugal, ensaio literário, in Revista Universal Lisbonense, Tomo V, nº 37 (5 Mar.) – 41 (2 Abr.), Lisboa 1846; [cont. sob título:] Da Antiga Poesia Portuguesa, in id., Tomo VI, nº 9 (23 Jul.), 13 (20 Ag.), Lisboa 1846 Viagens na Minha Terra, romance, 2 vols., Lisboa 1846 Filipa de Vilhena, comédia, Lisboa 1846 [incl.: Tio Simplício, comédia, e Falar Verdade a Mentir, comédia] Parecer da Comissão sobre a Unidade Literária, in Revista Universal Lisbonense, nº 16 (10 Set.), Lisboa 1846, vol. VI, sér. II, pp. 188-189 [dito Parecer sobre a Neutralidade Literária, da Associação Protectora da Imprensa Portuguesa, assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Visconde de Juromenha, A. Herculano e João Baptista de A. Garrett] Sermão
pregado na dedicação da capela de Nª Srª da Bonança, folheto, Lisboa 1847 [raro, reproduzido com o título Dedicação da Capela dos Srs. Marqueses de Viana (...) in Escritos Diversos, Lisboa 1899, Obras Completas, vol. XXIV, pp. 281-284, redac.: Lisboa 1846] Memória Histórica da Excelentíssima Duquesa de Palmela, Lisboa 1848 [folheto] Memória
Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, Lisboa 1849 [separ., reprod. de A Época. Jornal de indústria, ciências, literatura, e belas-artes, nº 52, tom. II, pp. 387-394] O Arco de Santana. Crónica Portuense, romance, vol. II, Lisboa 1850 Protesto Contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa, abaixo-assinado, folheto, Lisboa 1850 [Subscrito, à cabeça, por Herculano e mais cinquenta personalidades, contra o projecto de «lei das rolhas» apresentado pelo governo] Necrologia de D.ª Maria Teresa Midosi, in Diário do Governo, nº 221 (19 Set.), Lisboa 1950 Romanceiro, vols. II e III, Lisboa 1851 Cópia de uma Carta Dirigida ao Sr. Encarregado de Negócios da França em Lisboa, Lisboa (19 Agosto) 1852 [litogr., sobre o tratado de comércio e navegação com o governo francês, que assinou como ministro dos negócios estrangeiros] O Camões do Rossio, comédia, Lisboa 1852 [co-autoria de Inácio Feijó] Folhas Caídas, poesia, Lisboa 1853 Fábulas – Folhas Caídas, poesia, 2ª ed., Lisboa 1853
Ao passo que Almeida Garrett se comprazia, na vida publica, com as honrarias, tantas vezes futeis, do mundo official, chegando, não raro, a ufanar-se, com vaidade feminina de uma venera, de uma fita, de uma ninharia qualquer, na vida intima era o homem mais desaffectado e mais simples que pôde haver.
Ninguém se aproximava d'elle a pedir-lhe conselho, que o não achasse prompto a dar-lh'o e com a maior sinceridade.
Desvelava horas inteiras no lavor de corrigir uma obra onde havia talento, mas a que faltava a forma.
Algumas ingratidões, bem negras, recebeu em paga da sua honrada abnegação!
Como todos os homens de gosto superior, Garrett era um grande critico.
Na sua conversação particular abria-se uma mina de conceitos delicados e de observações profundas.
Á sombra de um tio, o bispo de Angra, homem de muitas e boas letras, Garrett fizera os seus estudos clássicos.
Sabia o grego e estudara os immortaes modelos na lingua original.
Dos escriptores dos tempos modernos, os seus predilectos eram Shakespeare, Schiller, Goethe. Acima de todos Shakespeare; como Lord Macaulay, Garrett julgava-o o primeiro poeta do mundo, depois de Homero.
Monumento a Goethe e Schiller (1850), Weimar. Wikipedia
Quando fallava do auctor do Hamlet brilhavam-lhe os olhos com o mais sincero enthusiasmo, e muitas vezes lhe ouvi declamar, no seu elegante estylo, a scena do cemitério e o immortal monologo: "Ser ou nao ser".
Procession of Characters from Shakespeare's Plays. Wikipedia
Almeida Garrett não tinha a memoria das palavras, a menos valiosa de todas. Raros fragmentos dos seus versos sabia de cór; mas conseguira decorar os "Sinos [Das Lied von der Glocke]" de Schiller e o "Cinque Maggio" de Manzoni.
Principiou a traduzir os "Sinos".
Lembro-me que nas estrophes que me leu havia uns versos saphicos, rimando o hemistichio com o final do verso antecedente, que me produziram excellente effeito; elle, porém, afirmava-me que d'ali ao original ia uma distancia immensa.
Um dia rasgou tudo.
Garrett tinha o seu modo peculiar de trabalhar, como têm todos os escriptores. Nao podia prescindir de lume no inverno. Embora o frio não apertasse, havia de olhar para o fogo, aconchegar os toros de madeira, excitar o brasido e atear as labaredas.
Não emendava os períodos ou as estrophes ao passo que se iam succedendo. Só depois de concluída a obra delineada é que principiava a corrígir e a apurar a forma.
Ás vezes, quando não achava palavra, phrase ou locução para exprimir a sua idéa, e a encontrava em francez, inglez, allemão ou italiano, linguas que elle sabia perfeitamente, escrevia-a em qualquer d'essas linguas, e só depois lhe vertia o sentido em portuguez.
Ninguém era mais cuidadoso e demoradoem rever, corrigir, alterar, limar, polir as suas obras. As "Viagens na nínha terra", que nos correm na leitura como a conversação mais fácil e elegante, foram emendadas mil vezes.
Depois de irem para a imprensa, tiravam-se quatro ou cinco provas. Ainda está vivo o chefe da officina da Revista Universal, onde se publicaram as "Viagens", e bem se lembra elle que muitas vezes se deu a todos os santos, senão a todos os demónios, com aquellas intermináveis emendas.
Não admira. A decima copia do Telemaco não se pode ler, e nada ha que pareça ter sido escripto com maior facilidade.
Um dos grandes prazeres de Garrett era ouvir ler.
Commodamente recostado na famosa cadeira allemã da casa da Ajuda, pedia-me alguns pedaços da sua predilecção.
Tinha-me apresentado, havia mezes, a um italiano que passou muitos annos em Portugal, homem de letras, díscipulo de declamação do maior trágico de Itália — o Modena. Era um bello homem aquelle italiano: chamava-se César Perini di Lucca. Tinha sido meu mestre de declamação.
Eu fui o ledor de Garrett nos aprasiveis ou antes deliciosos e saudosissimos dias da Ajuda.
A "Batalha de Chrissus", no Eurico, era uma das paginas de literatura pátria que Almeida Garrett mais apreciava.
Dizia sempre:
— É admirável, é inexcedivel de verdade. Quem nunca esteve n'um campo de batalha não escreve aquillo. É preciso entrar na refrega, ver de perto a cara do inimigo, como o Herculano tantas vezes viu, para fazer o magnifico capitulo do Eurico.
As horas passavam-se com voluptuosidade indescriptivel, ouvindo discorrer o visconde de Almeida Garrett sobre os lances da sua vida. Eram notas intimas a propósito de muitos versos e muitas paginas de prosa!... Commentarios adoráveis... feitos com o melhor das recordações juvenis!
Aquellas inglezas que apparecem nas "Viagens", aquellas três irmãs, que todas tinham amado tanto d'alma o singular académico, não eram apenas uma ficção do poeta. Haviam existido; tinha-as elle admirado entre as brumas da Inglaterra, graciosas como as virgens de Ossian.
Uma d'ellas, a arrebatada Georgina, fez delírios pelo emigrado portuguez, e acabou por fim n'um convento, não podendo vencer a primeira e ultima paixão da sua vida!
Aquella menina de "olhos verdes", como duas esmeraldas das mais finas aguas, também não era um mero capricho da imaginação.
Pela primeira vez a viu o poeta, n'um dia de Corpo de Deus — e esteve na casa onde ella estava, e o dia e a noite correram como por encanto!
Subita, mas violenta e irresistível, foi a impressão que ella sentiu pelo homem, que mais para o diante havia de perpetuar-lhe o nome.
Na verdade, as mulheres, mas sobre tudo as mulheres extremamente vaidosas, nâo deviam amar senão os grandes homens.
Só elles têm o poder de as legar á posteridade com o prestigio da formosura, radiantes, luminosas, coroadas com as rosas da primavera eterna!
Estes commentarios de Garrett aos seus versos, e ás suas prosas apaixonadas, não tinham preço!
E quando o assumpto variava e se punha a pintar os homens e as cousas do seu tempo!...
Ironia tão fina e, ás vezes, tão cruel, nunca a conheci em ninguém!
Não usava d'ella senão a tempo e a horas, quando o provocava alguma inchada vaidade, ou algum prepotente se atrevia a embaraçar-lhe o caminho.
Então era ferino... E assim è que tremiam d'elle!
A propósito da agudeza dos seus ditos, que eram innumeros, citarei um.
Certo ministro, que tinha entre muitas vaidades a vaidade de fallar com grande apuro a lingua, levava o fátuo exagero ou antes a crassa ignorância a pronunciar por exemplo, a letra g — na palavra augmentar.
Garrett dizia:
— "Cuidado com elle. Sempre é homemsínho que até faz fallar as mudas!"
Almeida Garrett havia muito, como elle próprio o conta no magnifico prefacio do seu drama, que andava pensando no meio de realisar o trágico episodio de "Frei Luiz de Sousa."
A politica, as distracções do mundo, a que era tão dado, aquellas "estrellas fixas", de que elle falia, "que dominam a existência, que tolhem o alvedrio, que não deixam livre na vida nem o ver, nem o pensar, nem o sentir, nem o querer, nem a rasão, nem a imaginação...", essas estrellas tão propicias para a arte, porque foram as suas grandes inspiradoras, como femininas que eram, tinham os seus caprichos, e ás vezes não consentiam que o poeta fizesse cousa alguma no mundo, que não fosse admirar e adorar a sua luz fascinadora!
Em 1842 quiz a boa fortuna, é caso de dizer assim, quiz a boa fortuna, que Almeida Garrett apanhasse uma tremenda canellada.
Mettido em casa, de perninha, dias e dias, como matar o tédio d'aquellas horas senão trabalhando...
Pôz mãos á obra.
A sobriedade das linhas, a propriedade e elevação das figuras, o modo simples de conduzir a acção até á catastrophe, tudo quanto lhe andava na phantasia havia muito, tomou forma precisa, e o poeta realisou o seu ideal.
A. Herculano só passados quinze dias é que soube da bemdita canellada.
Foi visitar Garrett, que morava então no pateo do Pimenta. Achou-o cercado de folhas de papel escriptas com mão nervosa.
Egreja das Chagas, gravura de João Pedroso, 1863. Em 1898, se não me engano, consentiu a Camara, por motivos de certo
muito transcendentes, mas que ficaram desconhecidos, um roubo artistico
feito a um dos mais bellos miradoiros de Lisboa: permittiu o alteamento
de um grande prédio do pateo do Pimenta, por forma que interceptou a
vista para sueste (cf. Julio de Castilho, Lisboa Antiga Vol. II). Hemeroteca Digital
O poeta tinha uma expressão radiante nos olhos, reflexos do contentamento que estava na alma como que illuminada de luz siderea!... estado indescriptivel do espirito do homem de génio quando dá vulto ao ideal com que andou enleado por tanto tempo, extasis onde ha alguma cousa de doloroso, porque o artista tem saudades de deixar a sua obra, apesar de concluída!
Garrett leu a A. Herculano o "Frei Luiz de Sousa".
O auctor do "Monge de Cister" teve um dos mais fervorosos enthusiasmos da sua vida, ouvindo aquelle drama, que é a maior e a mais completa obra de arte do grande poeta.
Fallei já, n'este livro, no valor e no sangue frio de Garrett em meio das luctas da tribuna; — em todos os outros lances da sua vida apresentava a mesma serena coragem.
Tenho aqui diante dos olhos uma prova d'esta verdade.
São umas palavras escriptas no álbum do nosso primoroso poeta e meu honrado amigo, António Pereira da Cunha, no dia em que Almeida Garrett devia bater-se com um bravíssimo soldado, Joaquim Bento — barão do Zêzere.
Aqui estão as palavras que mandou ao seu amigo e illustre poeta no dia em que devia realisar-se o combate — 24 de junho de 1843.
São escriptas com a sua letra mais firme, letra que nas linhas tão puras e tão graciosas tem o quer que seja do indolente e voluptuoso que havia no estylo do auctor das "Folhas Caídas". Aqui as transcrevo, sentindo não poder dar o fac-simile:
"Que hei de eu pôr no álbum do joven poeta? — A sua futura coroa de loiro e hera? — a grinalda de rosas que já mereceu?
Eu de quantas rosas colhi no jardim da vida sinto que nao tenho já senão o espinho de alguma lembrança.
Ess'outras folhagens de gloria — sem prazer? — senti-as um momento — refrescando-me as artérias que batiam na fronte... seccaram logo — e varreu-as para longe o vento.
Não tenho saudades d'ellas.
Que hei de eu então pôr no álbum do joven poeta? O desengano que esta vida e este mundo é todo prosa — que a poesia é um sonho, a gloria vaidade — a felicidade chymera?
A poesia encurta a existência porque resume e concentra a vida, mas o poeta vive séculos em horas, porque n'elle o coração é tudo.
O espirito faz tudo, menos poetas.
A fortuna dá tudo, menos felicidade.
No coração está a poesia e a felicidade que pode haver na terra.
Busque-as ahi o joven poeta, e não se lhe dê da rosa que murcha, do loiro que secca, da fortuna que muda, da morte que vem.
Os homens da prosa baixa e villã riem-se d'isto, mas quando morrem choram... porque tudo o que tinham lhes fica na terra (a allusão ao momento é bem clara).
O poeta leva tudo comsigo — e sorri para a eternidade, que é sua.
Garrett no Panteão, Teixeira Lopes, fotografia Emílio Biel, Homenagem a Garrett
(Ateneu Comercial do Porto), 1902.
Delcampe
Eu nunca fiz mal a ninguém, senão a mim. Só tenho remorso da prosa que fiz.
Avante o joven poeta ! E em bem o fadem estas linhas que lhe escreve hoje aqui no seu álbum.
Biblioteca Nacional de Portugal (bibliografia): Hino Patriótico (poema), Porto 1820, folheto impresso [Recuper. por Teófilo Braga, in Garrett e os Dramas Românticos, Porto 1905] Proclamações Académicos, Coimbra 1820, folhetos mss. [Reprod. in O Patriota, nº 67 (15 Dez.), Coimbra 1820] Ao corpo académico (poema), in Colecção de Poesias Recitadas na Sala dos Actos Grandes da Universidade [...], Coimbra 1821 [Recuper. por Martins de Carvalho, in O Conimbricense, Ano XXVII, nº 2823 (14 Ag.), Coimbra 1874] O Dia Vinte e Quatro de Agosto (ensaio político), Lisboa Ano I (1821) O Retrato de Vénus (poema), Coimbra Ano I (1821) [Incl.: Ensaio sobre a História da Pintura] Catão. Tragédia, Lisboa Ano II (1822) [Incl.: O Corcunda por Amor, farsa, co-autoria de Paulo Midosi] Aos
Mortos no Campo da Honra de Madrid. Epicédio, folheto [reprod. do Jornal da Sociedade Literária Patriótica, 2º trim., nº 18 (13 Set.), Lisboa 1822, vol. II, pp. 420-423] Oração Fúnebre de Manuel
Fernandes Tomás, Lisboa 1822, opúsculo [Colig. in Discursos e Poesias Fúnebres [...], Celebradas para Prantear a Dor e Orfandade dos Portugueses, na Morte de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1823] Camões. Poema, Paris 1825 Dona Branca, ou A Conquista do Algarve (poema), Paris 1826 Da Europa e da América e de Sua Mútua Influência na Causa da Civilização e da Liberdade (ensaio político), in O Popular, jornal político, literário e comercial, vol. IV, nº XIX (Mai.), Londres 1826, pp. 25-81 Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa, in Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos, vol. I, Paris 1826 [Incl.: introdução A Quem Ler] Carta de Guia para
Eleitores, em Que se Trata da Opinião Pública, das Qualidades para Deputado e do Modo de as Conhecer (ensaio político), Lisboa 1826, opúsculo Adozinda. Romance (poema), Londres 1828 [Incl.: Bernal Francês] Lírica de João Mínimo, Londres 1829 Lealdade, ou a Vitória da Terceira (canção), Londres 1829, folheto Da Educação. Livro Primeiro. Educação Doméstica ou Paternal, Londres 1829 Portugal na Balança da Europa. Do Que Tem Sido e do Que Ora Lhe Convém Ser na Nova Ordem de Coisas do Mundo Civilizado (ensaio político), Londres 1830 Elogio Fúnebre de Carlos Infante de Lacerda, Barão de Sabroso, Londres 1830, folheto Carta de M. Cévola, ao futuro editor do primeiro jornal liberal que em português se publicar (panfleto
político), Londres 1830 [Pseud.: Múcio Cévola, 2ª ed. transcrita in O Pelourinho, nº V, Angra [1831?, com o título Carta de M. Cévola, oferecida à contemplação da Rainha, a senhora Dona Maria segunnda] Relatório
dos decretos nº 22, 23 e 24 [reorganização da fazenda, administração pública e justiça], Lisboa 1832, folheto [Reprod. in Colecção de Decretos e Regulamentos [...], Lisboa 1836] Manifesto das Cortes Constituintes à Nação, Lisboa 1837, folheto [Reprod. in Diário do Governo, nº199 (24 de Ag.), Lisboa 1837] Da Formação da Segunda Câmara das Cortes. Discursos Pronunciados nas Sessões de 9 e 12 de Outubro, Lisboa 1837 Necrologia
[do conselheiro Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato], in O Constitucional, nº 272 (13 Dez.), Lisboa 1838 [Relatório ao] Projecto de lei sobre a propriedade literária e artística, in Diário da Câmara dos Deputados, Vol. II, nº 35 (18 Mai.), Lisboa 1839 Discurso do Sr. Deputado pela Terceira, J. B. de Almeida Garrett, na Discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, Lisboa 1840 [Discurso dito do Porto Pireu, em resposta a José Estevão] Mérope, tragédia. Um Auto de Gil Vicente, drama, Lisboa 1841. Discurso do Sr. Deputado por Lisboa J. B. de Almeida Garrett na Discussão da Lei da Décima , Lisboa 1841, folheto O Alfageme de Santarém, ou a Espada do Condestável, Lisboa 1842 Elogio Histórico do Sócio Barão da Ribeira de Saborosa, in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, Tomo II (8), Lisboa 1843 Memória Histórica do Conselheiro A. M. L. Vieira de Castro, biografia, Lisboa 1843, folheto [Anón., sobre o ministro setembrista António Manuel Lopes Vieira de Castro] Romanceiro e Cancioneiro Geral, Lisboa 1843 [Incl.: Adozinda (2ª ed.) e outros «romances reconstruídos»] Miragaia,
Lisboa 1844, folheto impresso [de Jornal das Belas Artes] Frei Luís de Sousa, drama, Lisboa 1844 [Incl.: Memória. Ao Conservatório Real, lida na representação do drama no teatro da Quinta do Pinheiro em 4 de Julho 1843] O conselheiro J. B. de Almeida Garrett [Autobiografia], in Universo Pitoresco, nº 19-21, Lisboa 1844 [Carta sobre a origem da língua portuguesa], ensaio literário, in Opúsculo Acerca da Origem da Língua Portuguesa [...] por dois sócios do Conservatório Real de Lisboa, Lisboa 1844 O Arco de Santana. Crónica portuense, romance, vol. I, Lisboa 1845 [Anón.] Os
Exilados, À Senhora Rossi Caccia, poesia, Lisboa 1845, folheto [Reprod. in Revolução de Setembro, nº 1197 (31 Mar.), Lisboa 1845, p. 2, anónimo e título A Madame Rossi Caccia, cantando no baile de subscrição a favor dos emigrados] Memória Histórica do Conde de Avilez, biografia, in Revolução de Setembro, nº 1210 (15 Abr.), Lisboa 1845 Flores Sem Fruto (poesia), Lisboa 1845 Da Poesia Popular em Portugal, ensaio literário, in Revista Universal Lisbonense, Tomo V, nº 37 (5 Mar.) – 41 (2 Abr.), Lisboa 1846; [cont. sob título:] Da Antiga Poesia Portuguesa, in id., Tomo VI, nº 9 (23 Jul.), 13 (20 Ag.), Lisboa 1846 Viagens na Minha Terra, romance, 2 vols., Lisboa 1846 Filipa de Vilhena, comédia, Lisboa 1846 [incl.: Tio Simplício, comédia, e Falar Verdade a Mentir, comédia] Parecer da Comissão sobre a Unidade Literária, in Revista Universal Lisbonense, nº 16 (10 Set.), Lisboa 1846, vol. VI, sér. II, pp. 188-189 [dito Parecer sobre a Neutralidade Literária, da Associação Protectora da Imprensa Portuguesa, assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Visconde de Juromenha, A. Herculano e João Baptista de A. Garrett] Sermão
pregado na dedicação da capela de Nª Srª da Bonança, folheto, Lisboa 1847 [raro, reproduzido com o título Dedicação da Capela dos Srs. Marqueses de Viana (...) in Escritos Diversos, Lisboa 1899, Obras Completas, vol. XXIV, pp. 281-284, redac.: Lisboa 1846] Memória Histórica da Excelentíssima Duquesa de Palmela, Lisboa 1848 [folheto] Memória
Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, Lisboa 1849 [separ., reprod. de A Época. Jornal de indústria, ciências, literatura, e belas-artes, nº 52, tom. II, pp. 387-394] O Arco de Santana. Crónica Portuense, romance, vol. II, Lisboa 1850 Protesto Contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa, abaixo-assinado, folheto, Lisboa 1850 [Subscrito, à cabeça, por Herculano e mais cinquenta personalidades, contra o projecto de «lei das rolhas» apresentado pelo governo] Necrologia de D.ª Maria Teresa Midosi, in Diário do Governo, nº 221 (19 Set.), Lisboa 1950 Romanceiro, vols. II e III, Lisboa 1851 Cópia de uma Carta Dirigida ao Sr. Encarregado de Negócios da França em Lisboa, Lisboa (19 Agosto) 1852 [litogr., sobre o tratado de comércio e navegação com o governo francês, que assinou como ministro dos negócios estrangeiros] O Camões do Rossio, comédia, Lisboa 1852 [co-autoria de Inácio Feijó] Folhas Caídas, poesia, Lisboa 1853 Fábulas – Folhas Caídas, poesia, 2ª ed., Lisboa 1853