quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Emilia Santos Braga (1867-1950) [I de IV]

Discípula de Malhoa... Evadida do mundo em solidão claustral depois de ter procurado todos os deslumbramentos da côr e da vida

Fumadora d'ópio, Emilia Santos Braga, exposta em Madrid em 1912.
(apensa ao quadro estava a seguinte nota: "propuesto para condecoracion", note-se a tela rasgada)
Catálogo Oficial de la Exposición Nacional de Pintura... de 1912, Madrid, pp. 77 e 174
Arquivo Municipal de Lisboa

Vai para 8 anos que ali se refugiou a ultima deusa pagã da pintura, como numa penitencia e num recolhimento. Quando a porta se cerrou sobre os seus três quartos de século teve sensação de que o mundo ficava do outro lado — distante e frio, e esquecido dela.

Fumadora d'ópio, Emilia Santos Braga, exposta em Madrid em 1912.
(apensa ao quadro estava a seguinte nota: "propuesto para condecoracion")
Catálogo Oficial de la Exposición Nacional de Pintura... de 1912, Madrid, pp. 77 e 174
Arquivo Municipal de Lisboa

Lentamente, despiu os véus pesados da viuvez e foi até á janela, um retalho azul do ceu, a enxugar ao sol. Já não era o mesmo ambiente da mocidade, mas havia ainda, nas paredes, tintas voluptuosas, corpos de mulheres, discretamente rebuçados, crianças, entre flores, retratos queridos, que Emilia dos Santos Braga recolhera para a sua viagem, no ultimo quartel da existência.

Naquele quarto da Ordem de S. Francisco, que a pintora aconchegou como um ninho, alguns moveis desirmanados do "atelier", esta e aquela fotografia de saudade, velhas cartas amarelecidas e quadros que conheceram a gloria das exposições, ou correram mundo em certames internacionais — ela vive agora, com tranquilidade e resignação, aquecendo-se ás ultimas brazas, cobertas de cinza, dumas tantas amizades que persistem. 

Tem um dia para os intimos — a terça-feira, e toda a semana para pintar. A luz já não canta tão alto e vibrante. nos seus quadros, como que embaciada de melancolia. Mas assim mesmo continua a trabalhar, por habito enternecido em pequenas naturezas mortas e num ou noutro modelo ocasional. O maravilhoso cristão e o maravilhoso pagão, alternam-se, nos muros daquele "atelier" improvizado. 

A mulher formosa, Rubens louro, que assombrou Lisboa pelo seu esplendor e pelo seu talento, é hoje uma dôce velhinha, com 77 invernos nevados sobre a cabeça, de voz apagada, ligeiramente timida, que sobrevive apenas, no candido azul do olhar, agora voando sobre o passado — cortejo faustoso de que ela entrevê reflexos de equipagens, o volto de duas rainhas e a sua vida, enorme e desolada, duas vezes morta — a ultima ali mesmo, no hospital, depois duma luta, em que os seus braços nada podem, come os dos naufragos, levados pelo mar enfurecido. 

Retrato de velha, Emília dos Santos Braga, 1908.
Museu José Malhoa

— Mas tudo isso é a vida! — dizemos-lhe. 

D. Emilia dos Santos Braga, baixando a cabeça para disfarçar uma lágrima: 

— Será, mas nem todas são iguais! Tenho sofrido muitos desgostos. Faleceu aqui meu marido — e mostra-nos um retrato, com um tipo de 1910, as guias do bigode, o côco, a bengala, a atitude varonil — e nunca mais pude apartar-me destas paredes. Saio, tenho as minhas visitas, ainda pinto, mas não consigo fugir ao silencio da minha alma, nem á saudade dos mortos queridos... 

Os seus olhos procuram, na parede, um retrato a oleo. É o duma mulher, em vestido de baile. elegante e fina, duma epiderme de oiro, cujas mãos pousadas no regaço, parecem duas pombas de penugem branca. 

— Criei-a desde pequenina! Era tal qual ali está... Aquele outro, com uma miudinha de seis anos, que tem na frente um cesto de rosas. tambem morreu?... Nem netos tenho, que me chamem avó! Nem mesmo flores para pintar!...

Numa cavalgada de imagens, o passado e o presente, confundem-se na imaginação da pintora. As tintas é que são outras — esmaecidas.

— Fui eu a primeira discípula de Malhoa. O seu atelier era, então, na Escola de Belas Artes, aqui em frente. Quantas vezes o ouvi dizer: "natureza! ar livre! vida!" Faziam sensação os meus quadros. Minha familia, com errado conceito artistico da época, horrorizava-se com estes nus, de resto, castos, envoltos num véo de graça e espiritualidade! Podia ter sido cantora, cheguei mesmo a dar lições com o mestre de Regina Paccini. mas os pais não quiseram. Só meu velho avô, o Manuel Inocencio, organista distinto, que estava. ao serviço da casa real desde D. João VI, me encorajava! Foi assim que fechei as portas do palco, para abrir as da arte.

— E Malhoa?

— Um grande mestre! De todos o maior na pintura contemporanea. Recordo que um dia para pintar o rei D. Carlos, me pediu para pousar...

— É curioso esse pormenor!

— É que eu nesse tempo tinha a mesma côr de pele que o monarca. Eu tambem o pintei, como as sr.as D. Maria Pia e D. Amelia. Esses retratos estiveram, no Museu de Artilharia, mas suponho que os tiraram. 

Vejo ainda como fosse hoje o vestido branco de gala, de D. Amelia, com a banda da Ordem de Santa Isabel, uma linda nota de côr, naquela sinfonia triunfal.

Retrato da rainha D. Amélia, Emília dos Santos Braga, 1906.
RJWMB

E vá de desfiar mais recordações, trazendo á superfície fragmentos dum panado brilhante, de festas e salões, do seu "atelier", na rua Pinheiro Chagas, frequentado por literatos e artistas, e que vendeu, ficando apenas, com meia duzia de telas.

— Expuz em Paris, em Madrid, no Rio de Janeiro! Alguns triunfos, rosas a envolverem os espinhos das amargaras. Ensinei uma geração. Durante cêrca de vinte anos tive dezenas dc alunas, no meu curso particular, mas agora a arte parece que é diferente... Só tenho pena de não estar representada no Museu de Arte Contemporanea, onde há trabalhos dalgumas das minhas discipulas!... — isto sem amargura, naturalmente, numa confissão que não chega a ser queixume.

Na parede, em frente da artista, a Vaidosa, a sua obra prima, que podia, de facto, figurar numa pinacoteca do Estado, pelo seu valor intrinseco e como homenagem, á ilustre pintora. É uma maravilha aquele dorso de mulher, de urna pigmentação de oiro, coroada por uma cabeça fresca, ligeiramente inclinada. em cujos cabelos negros arde uma flôr vermelha. Parece um Madrazo.

— Podia ser aquele! E ela fica-se sentada, numa poltrona de veludo, o silencio cortado pelas notas de cristal dum canário, prisioneiro como ela, do esquecimento e da desolação da vida. Não se mexe, como se não soubesse, ou não quisesse encher os silencios desta tarde quente, junto aquela janela, alta de mais sobre a rua — tão alheada de tudo, das glorias que desaparecem, como das que sobrevivem ainda, sem que ninguem saiba. Só á saída, quando nos despedimos murmura enternecidamente:

— Obrigado por se ter lembrado de mim!

Nu, Emília dos Santos Braga, Museu José Malhoa.
MatrizPix

Não eram os labios que falavam, mas aquele triste e apagado coração — quem sabe se pela ultima vez. (1)


(1) Diário de Lisboa, 21 de agosto de 1944

Artigos relacionados:
O Grémio Artístico (2.ª exposição, 1892)
O Grémio Artístico (7.ª exposição, 1897)
Arte portuguesa na Exposição Universal de 1900

Mais informação:
Arte portugueza, 1895
La mujer intelectual, 1901
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (III), 1903
Sociedade Nacional de Bellas-Artes, Catálogos de 1902 a 1909
Serões, revista mensal illustrada n.° 48, junho de 1909
Serões, revista mensal illustrada n.° 50, agosto de 1909
Illustração Portugueza n.º 268, 10 de abril de 1911
Illustração Portugueza n.º 269, 17 de abril de 1911
O Occidente n.° 1239, 30 de maio de 1913
Folhas d'ouro, gentilmente collaborado por excriptores e artistas portuguezes, 1917

Informação relacionada:
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (I), 1896
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), 1898
William Walton, Victor Champier, Exposition universelle, 1900: the chefs-d'oeuvre
O Occidente n.° 947, 20 de abril de 1905
O Occidente n.° 1058, 20 de maio de 1908
Illustração Portugueza n.º 118, 25 de maio de 1908
Tiro e Sport n.° 384, 31 de maio de 1908
Brasil Portugal n.° 226, 16 de junho de 1908
Illustração Portugueza n.º 329, 10 de Junho de 1912
O Occidente n.° 1231, 10 de março de 1913
O Occidente n.° 1255, 10 de novembro de 1913

Exposições internacionais:
William Walton, Victor Champier, Exposition universelle, 1900: the chefs-d'oeuvre
Catálogo Oficial de la Exposición Nacional de Pintura... de 1912, Madrid, pp. 77 e 174

Outros trabalhos:
Olisipo n.° 19, julho de 1942

Retrato a óleo de Rosa Araújo,
Emília dos Santos Braga.
(sala Rosa Araújo nos Paços do Concelho)
Arquivo Municipal de Lisboa

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