domingo, 15 de abril de 2018

O Castello de Gaya

João Vaz auctor d'este poema era natural d'Evora, d'onde passou a morar no lugar do Botão junto da Cidade de Coimbra: estudou na Universidade da sua patria as letras humanas e philosophia, mas o seu renome provem do grande engenho natural com que foi dotado para a poesia comica.

Porto, Carlos van Zeller, View of the City of Oporto, 1833.
Esta vista da Cidade do Porto foi tomada do Convento da Serra durante as ocorrências de 1833 dedicada a S. M. I. o Senhor D. Pedro Duque de Bragança e mandada publicar por ordem do Mesmo Augusto Senhor...
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Barboza [Machado, Diogo] na sua Bibliotheca [Lusitana], 2.° Vol., fol. 184, e Fonseca [p.e Francisco da] na Evora Gloriosa: fol. 4 escrevem d’elle o primeiro mencionando as suas obras, e o segundo incluindo-o no numero dos auíhores Evorenses.

Serviu-lhe d'assumpto para os seus versos o seguinte facto historico; que Frei Bernardo de Brito na Monarchía Lusitana, 2.a P.e, L.° 7.°, Cap. 21, fol. 484 da segunda edição, firmando-se na erudição, credito e auctoridade do Conde D. Pedro [Afonso, Conde de Barcelos] filho d’El-Rei D. Diniz acredita como verdadeiro, porque elle como tal o tractou.


Tendo o Rei de Hespanha D. Ramiro II que era casado com a rainha D. Urraca ou Aidara e Aldora, como alguns escriptores lhe chamam, querendo gozar das tregoas que lhe pedira Abderraman Rei de Cordova, visitou a casa de Sant'Iago de Galiza e aproveitando-se da occasião opportuna que se lhe proporcionou assim, resolveu-se a reconhecer por si proprio as fronteiras das terras de Portugal occupadas pelos Mouros.

Durante esta sua diligencia soube, que Alboazar Ibem Albucadan, senhor de muitas terras da Luzitania e general d’Abderraman, tinha uma irmã chamada Zahara; nome que significava — Flôr — tão notável por sua formosura e pela fama, que só por ella desde logo se lhe affeiçoou, mas pertendendo desenganar-se com os seus olhos deliberou-se a visitar amigavelmente o Mouro no seu Castello de Gaya, onde então havia bons Paços e n’elles aposentos para muita gente, sendo já a esse tempo o local povoado de muitos visinhos.

Gaia, Cesário Augusto Pinto, 1848.
Imagem: Memórias Gaienses

Concertados os meios da entrevista veio El-Rei D. Ramiro com os seus fidalgos e senhores mais esforçados, que tinha na sua Côrte, em trez galés e foi bem recebido por Alboazar: tractando em primeiro logar das comviniencias geraes d’harmonia e paz de suas "possessões", encantado Ramiro da belleza de Zahara pediu-lhe em casamento se ella quizesse ser christã, dizendo-lhe que assim se estreitariam: ainda mais os laços de amizade entre ambos, e d’ella por a fazer Rainha.

Difficultou-lhe o Mouro a pertenção não só com a differença das leis riligiosas, mas também com a de ser elle casado com a Rainha D. Urraca, de quem já tinha filhos que de certo não consentiriam no repudio da mãe, nem o Papa o approvaria.

Pelo contrario objectava-lhe El-Rei respondendo-lhe, que no repudio haveria toda a facilidade, por quanto a Rainha era sua próxima parenta e illegalmente estava casado ícom élla, e sem duvida , obteria sentença de divorcio.

Afinal declarou-lhe Alboazar, que sua irmã estava promettida em casamento ao Rei de Marrocos, e por nenhuma forma faltaria á sua palavra, esperando só o dia de a entregar ao marido, o qual não tardaria.

Retirando-se o pertendente desesperado por não alcançar o seu intento, consultou o grande Astrologo Amão que lhe asseverou, segundo os meios que lhe indicou n’essa occasião; tirar a Moura de noite do castello sem alguém o sentir, e lha poria em segurança para elle a levar ao seu Reino.

Oporto view from river Douro showing point of observation selected by the Lord Wellington prior to and during his attack on the town, Henry Smith, 1813.
Imagem: The British Museum

O certo é que Zahara foi roubada, ignorando-se como isso se effectuou, e sendo levada ás galés, onde D. Ramiro e os seus a esperavam, se fizeram á vella com prestesa mas não tanto em segredo, como desejavam, e havendo rebate, vinte foram os fidalgos que perderam as suas vidas em frente das mesmas praias, onde antes tinham alegremente aportado.

Navegaram para o Melhor —  (ignoro que porto seria esse, nâo obstante procurar sabel-o em diversos tractados de gtjographia antiga), no qual o Rei costumava estar amiudadas vezes por ser fresco e de muita creação, passando depois a Leão fez ahi baptisar a Moura com o nome de Artida on Artiga, dizendo-se que por ser muito sabia e prefeita assim se chamou.

Teve-a Ramiro por amante durante muitos annos, e d’ella houve um filho chamado Alboazar Ramirez, e uma filha por nome Artiga Ramirez.

Oporto From Villa Nova, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Alboazar Iben Albucadan ardia em raiva por se não poder vingar tão depressa como queria, e por isso trazia espias suas entre os Christãos para o avisarem da occasião prospera ao desagravo, e sabendo por ellas que a Rainha D. Urraca estava no dito porto de — Melhor — descuidada e sem guardas, embarcou-se e dando repentinamente no logar, n'elle a captivou, com outra muita gente; a noticia d'este successo chegou em breve tempo ao conhecimento de D. Ramiro, e causou-lhe sezões violentas e duradouras por espaço de vinte e dous dias; a febre motivou-lhe a falta d’accordo e n’elle proferia palavras que bem denunciavam, a origem da moléstia.

Oporto From the mount of Arrabida, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Sarando porem da enfermidade, metteu-se com seu filho legitimo D. Ordonho e outros senhores em cinco galés bem equipadas, mas cobertas com pannos verdes e se veio melter de noite pela nossa barra de S. João da Foz, d'onde encostando-se á terra, então guarnecida e assombrada por arvoredo, surgio nas praias d'alem desembarcou-se com a gente de que carecia e deixando-a embuscada por entre as arvores advertiu-a, de que só saissem ouvindo o som de uma corneta de monte, que levava comsigo. 

Vestido de grosseiras e pobres roupas, sob as quaes levava a sua espada e um peito d’armas, caminhou para uma fonte que fica abaixo do castello de Gaya (actualmente denominada por corrupção — Fonte de Reimil), alli se demorou até chegar a creada da Rainha D. Urraca, chamada Prona, que era de nação franceza, e veio buscar agua para lançar ás mãos de sua ama quando se lavasse; pediü-lhe D, Ramiro em linguagem arabica lhe desse de beber figindo-se enfermo e cançado, e ao tempo que levou á bôca o vaso lançou-lhe dentro metade d’um camapheu, do qual D. Urraca possuía a outra a metade.

Oporto, The Custom-House quay, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Não advertiu a creada de quem poderia ser aquelle homem, nem pode responder á ama quando a enterrogou vendo na occasião de lavar-se a referida parte d'aquella joia, mas informándo-a de ter dado de beber a um Mouro doente, que isso lhe pedira por amor de Deus e d'ella Rainha, logo o mandou chamar e vendo-o conheceu ser o márido a quem aborrecia, disfarçando porém a sua malevolência, lhe perguntou a causa de se atrever a tão arriscado passo, ao que satisfez dizendo-lhe — "em negocios d'amor não se tomava conselho e por isso se desarcetava em todas as cousas" — mas tudo era pouco para a libertar do poder do seu inimigo. 

Lembrando ao Rei os seus amores com Zahara, para significar-lhe não serem sinceras as suas palavras, o fez entrar n’uma camara d'abobeda dizendo-lhe voltaria logo afim de tractarem sobre o meio de salval-a, mas fechando a porta da mesma camara com a chave que metteu na manga da cota, que vestia aguardou impaciente a vinda de Alboazar, que desde a madrugada andava á caça, e vendo-o na volta perguntou-lhe o que faria d'El-Rei D. Ramiro se a ventura o pozesse em seu poder, sendo-lhe licito dispor d'elle a seu gosto?... ao que lhe respondeu o Mouro ser o menos que lhe faria o tirar-lhe a vida com exquesitos tormentos; entergou-lhe então a chave dizendo-lhe que alli o tinha e não perdesse tão favoravel occasião de satisfazer a sua vontade.

Oporto, A view of the mouth of the Douro from Massarellos, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Vendo-se El-Rei trahido aleivosamente pela Rainha, em quem até então tivera fè e confiança declarou a Alboazar, logo que se vio na sua presença, que o seu confessor lhe havia ordenado em satisfação de ter-lhe roubado Zahara o entregar-se e receber d'elle a morte, que lhe quizesse dar, tangendo uma bozina em quanto tivesse alento, afim de por esse modo salvar a sua alma.

Movido pela compaixão queria perdoar-lhe o Mouro, e assim o fizera se não fora D. Urraca contrarial-o para estar livre do esposo depois da sua morte; mandando juntar toda a gente que existia no castello de Gaya, conduziram D. Ramiro ao alto d’uma columna que estava no meio d'elle, e ordenaram lhe tocasse a corneta até morrer; estava então presente a Rainha com as suas damas e mais povo alli reunido.

Ouvia-se aquelle toque a grande distancia, e conhecendo o Infante D. Ordonho e seus cavalleiros, que estavam embuscados, haver pressa de soccorros, pelo continuo tocar, chegaram com tanta velocidade sobre a Villa, que os Mouros não os sentiram senão depois de soffrerem os golpes dos inimigos e ajudados com o exemplo do seu Rei, que só com uma cutilada, fez pender a cabeça até ao meio do peito a um d'esses Mouros, o que todos com a vida pagaram os erros do seu chefe.

Perspectiva das margens do Rio Douro subindo-se para a Cidade do Porto, G. Kopke dei. Porto, 1827.
View of the banks of the River Douro on approaching the City of Oporto C G. Hammer sculp. Dresden.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Ficando Ramiro senhor da povoação destruiu-a matando elle mesmo quatro filhos e tres filhas d’Alboazar e muita gente ordinaria que alli habitava, e regressando com a Rainha e suas damas ás galés foi n'ellas recebido com alegria; só D. Urraca se lastimava sentidamente cheia de saudades pelo Mouro, como ella própria declarou ao marido.

Magoado por esta nova offensa, e tomando o conselho de seu filho D. Ordonho, mandou atar uma corda com uma pedra ao pescoço da Rainha e deital-a ao rio Douro no sitio, onde depois, se poz o nome de Foz d'Anchora, ou d Aldora (não sei aonde ficava o local, que tevo esse nome.

Na Chrographia do Carvalho, edição de 1868 a f. 173 diz-so que em Vianna á um monto chamado Monto da Dor em razão do sentimento que á sua vista mostrou D. Urraca mulher d’El-Eei D. Ramiro o II do Leão, quando elle a levava para Galiza, depois da morte que dera a Alboazar Albocadan, rei mouro de Gaya com quem ella estava amancibada, de cujo poder a tirou, lançando-a depois D. Ramiro e seus filhos em uma lagoa com uma pedra ao pescoço na Foz do rio, d’onde tomou o nome d'Ancora).


Diz mais o illustre chronista em referencia ao conde, que vivera pouco lempo depois d'este successo o Infante D. Ordonho, por o haver Deus castigado pelo mau conselho que dera a seu pae contra a vida de sua própria mãe.

Soccorrendo-me do que me diria Rodrigo Mendez da Silva no seu Catalogo Real Genealógica de Hespanha para reatificar parte d’esta historia interessantissima, achei a f. 36 v., que D. Ramiro II, casara duas vezes sendo sua primeira mulher D. Urraca, e a segunda D, Thereza filha de D. Sancho Albarca, tendo do primeiro matrimonio por filhos D. Ordonho III, que lhe succedeu na coroa e morreu em Zamora no anno de 955 reinando apenas 5 annos, D. Sancho e D. Bermudo, e do segundo D. Elvira, D. Aldonça e D. Audonio, e fora do matrimonio D. Alboazar Ramirez que casou com D. Helena Godinez, filha de D. Godinho das Asturias, e D. Ortega (e não Artiga) Ramirez que casou com Gustios Gonçalez irmão do celebrado juiz de Castella, Nuno Razura.

Oporto From Fontainhas, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto


São pois estes últimos os filhos bastardos de que faz menção Brito e o conde D. Pedro como nascidos da formoza Moura Zahara, posto que Silva não declara o nome da mãe, amante do Rei, que depois de reinar 19 annos em Leão ahi falleceuno anno 950 com grande arrependimento de seus peccados, repetindo as palavras de Job: Nú nasci de minha mãe, nú voltarei á terra.

Agora para mais esclarecimento d'este assumpto direi, que o nome de Ramiro no idioma gotico segnifica — Príncipe que se aconselha. Alboazar em arabico diz — Pae da desventura. 

Na Hespanha Libertada P.° Canto 6.°, fol. 94, em allegante e sonoro verso castelhano cantou a nossa celebrada e mimosa poetiza D. Bernarda Ferreira de Lacerda este extraordinário successo, acontecido na margem esquerda do rio Douro e no sitio de Gaya, fronteiro á cidade do Porto.

Porto Oporto From the quay of Villa Nova, Batty, Miller, 1829.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

Finalmente citarei Esperança na Historia Serafica Tomo 1.°, L.° 4.°, Cap.° 3.°, N.° 1.°, fol. 692, que escreveu — que o primordial nome dado a povoação de Gaya foi Kalos, depois Kale, e por ultimo Gaya. Kalos e Kale attribue elle á denominação que lhe deram os gregos., aos quaes intitula seus fundadores, e significa no seu idioma — Bom e Formozo — por assim ser aquella localidade.

No — Proemio do Catalogo dos Bispos do Porto, 2.a edição — lê-se que o Gastello de Gaya, segundo se suppoem com muita probebalidade, fora fundado antes da vinda de Christo 145, annos, e diriva o seu nome do presumido fundador Gayo Lelio, Pretor Romano que depois de ter diminuido as forças de Viriato, alli fôra fundal-o.

E o Agiologio Luzitano, de Jorge Cardozo, Tomo 1.°, § 5.°, das advertências fol. 14, referindo-se ao Itenerario do imperador, Antonio, que chama á dita povoação — Cale — escreveu dirivar d’este nome — Porto Cale. e depois — Portu Cale — e finalmente — Portugal — nome dado ao nosso Reino.

Outros escriptores, porem, dizendo-o — Porto de Gallos — querem que se formasse o nome de Portugal, mas seja como fôr, é certo ser Gaya antiquíssima povoação e sempre tida como de muita importância, e por isso devem gloriar-se os Villanovenses de possuirem dentro do seu Conselho uma localidade, que desde remotíssimas eras merceu a consideração das diversas nações que a possuiram, e ultimamente de nossos Reis, não sendo na verdade poucos os privilégios e regalias por elles concedidas aos seus moradores.

Porto vista tomada do caes de Villa Nova, Henry L’Evêque, rep. 1817.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

É muito diversa a historia que precede o Poema de João Vaz, a qual simplesmente pode e deve ser tida como simples argumento do mesmo Poema, e porisso, com toda a liberdade escripto.


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Não obstante conhecer eu a irregulridade da orthographia d'este poema de João Vaz, preferi que fosse agora reimpresso como saiu da primeira impressão no anno de 1661, ainda que d’elle se publicou no mésmo anno segunda edição com notável diferença, sendo em parte mais correcta, em parte mais errada.

Porto, vista da ponte pênsil, c. 1850, Isidore-Laurent Deroy , Paris, Editor L. Turgis.
Imagem: Arquivo Municipal do Porto

São rarissimos os exemplares d’estas duas edições, e é esse o motivo porque de novo se imprime, afim de vulgarizar os notáveis e variados acontecimentos, que se dizem tiveram logar na pittoresca povoação de Gaya, prova evidente de ser tida desde remotas eras em grande conta. (1)


(1) O CASTELLO DE GAYA POR JOAO VAZ Augmeutado com um prefacio e historia de Gaya Dedicado aos Villanoveses POR HENRIQUE DUARTE E SOUZA REIS PORTO EMPRESA DA BIBLIOTHECA HISTÓRICA Rua de Santo Antonio, n.° 190 1877

Mais informação:
O centro histórico de Vila Nova de Gaia
Área do Castelo de Gaia (DGPC)
Mea Villa de Gaya
A melhor colecção oitocentista de "vistas" de Gaia, da autoria de Cesário Augusto Pinto
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

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