Afurada, Sampaio (casa do Sr. Antero), Cesário Augusto Pinto, 1848. Imagem: Memórias Gaienses |
e pois que a nave entrou pela foz, cobriu-a de panos verdes, em tal guisa que cuidassem que eram ramos, ca entonce Douro era coberto de uma parte e de outra de arvores; e esse rei Ramiro vestiu-se em panos de veleto, e levou consigo sa espada e seu corno, e falou com seu filho e com seus vassalos que, quando ouvissem o seu corno, que todos lhe acorressem e que todos jouvessem pela ribeira per antre as arvores, fora poucos que ficassem na nave para mantê-la.
— Rio Doiro, rio Doiro,
Rio de mau navegar,
Dize-me, essas tuas aguas
Aonde as foste buscar?
Almeida Garrett, Miragaia, 1844
Rio de mau navegar,
Dize-me, essas tuas aguas
Aonde as foste buscar?
Almeida Garrett, Miragaia, 1844
E ele foi-se estar a uma fonte que estava perto do castelo; e Abencadão era fora do castelo e fora correr monte contra Alafão.
Gaia, Cesário Augusto Pinto, 1848. Imagem: Memórias Gaienses |
E uma donzela que servia a rainha levantou-se pela manhã, que lhe fosse pela água para as mãos; e aquela donzela havia nome Ortiga; e ele pediu-lhe água pela arávia, e ela deu-lha por um autre, e ele meteu um camafeu na boca, o qual camafeu havia partido com sa mulher, a rainha, pela meiadade.
Tirou o annel do dedo,
E na jarra o foi deitar:
— Quando ella beber da agua
No annel hade attentar.
Almeida Garrett, Miragaia, 1844
E na jarra o foi deitar:
— Quando ella beber da agua
No annel hade attentar.
Almeida Garrett, Miragaia, 1844
Ele deu-se a beber e deitou a anel no autre, e a donzela foi-se e deu água à rainha, e caiu-lhe o anel na mão e conheceu-o ela logo.
O Romeiro e a Donzela na fonte, Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815 - 1880), José Maria Baptista Coelho (1812 - 1891). Imagem: Wikisource |
A rainha perguntou quem achara na fonte; ela respondeu-lhe nom era hi ningém; ela disse que mentia, e que lho nom negasse, ca lhe faria por ende bem e mercê; e a donzela lhe disse entom que achara um mouro doente e lazarado e que lhe pedira água que bebesse, e ela que lha dera; e entonce lhe disse a rainha que lhe fosse por ele, e se hi o achasse que lho aducesse.
A donzela foi por ele e disse-lhe ca lhe mandava dizer a rainha que fosse a ela; e entonces rei Ramiro foi-se com ela; e ele, entrando pela porta do paço, conheceu a rainha e disse-lhe:
— Rei Ramiro, quem te aduce aqui?
E ele lhe respondeu:
— Ca pequena maravilha! E ela disse à donzela que o metesse na câmara e que nom lhe desse que comesse nem que bebesse; e a donzela pensou dele sem mandado da rainha.
E ele jazendo na câmara, chegou Abencadão e deram-lhe que jantasse, e despois de jantar, foi-se para a rainha, e dês que fizeram seu prazer, disse a rainha:
— Se tu aqui tivesses rei Ramiro, que lhe farias?
O mouro então respondeu:
— O que ele a mim faria: matá-lo.
Então a rainha chamou Ortiga que o aducesse da câmara, e ela assim o fez, e aduce o mouro, e o mouro lhe disse:
— És tu rei Ramiro?
E ele respondeu:
— Eu sou.
E o mouro lhe perguntou:
— A que vieste aqui?
El-rei Ramiro lhe disse entom:
— Vim ver minha mulher, que me filhaste a torto, ca tu havias comigo tréguas e nom me catava de ti.
E o mouro lhe disse:
— Vieste a morrer, mas quero-te perguntar: se me tivesses em Mier, que morte me darias?
A lenda de Gaia, Jorge Magalhães e Baptista Mendes, 1976. Imagem: O voo d'O Mosquito |
El-rei Ramiro era muito faminto, e respondeu-lhe assim:
— Eu te daria um capão assado e uma regueifa e faria-te tudo comer e dar-te-ia em cima uma copa cheia de vinho que bebesses; em cima, abrira portas do meu curral e faria chamar todas as minhas gentes, que viessem ver como morrias, e faria-te subir a um padrão e faria-te tanger o corno até que te hi saisse o fôlego.
Então respondeu-lhe Abencadão:
— Essa morte te quero eu dar.
E fez abrir os currais, e feze-o subir em um padrão que hi entom estava; e começou rei Ramiro entom seu corno tanger, e começou chamar sa gente pelo corno, que lhe acorressem, ca agora havia tempo.
Significa: o Castello, Gaya; o rio que lhe sai pela porta: o Douro, que a banha; o Homem em trages pobres tangendo uma bozina: Ramiro; o Pinheiro: o Bosque em que se embuscaram os seus cavalleiros, para o ajudarem na empresa de resgatar a espoza D. Urraca. Imagem: O Castello de Gaya |
E o filho, como o ouviu, acorreu-lhe com seus vassalos, e meterom-se pela porta do castelo, e ele desceu-se do padrom adonde estava, e veio contra eles e tirou sa espada da bainha e descabeçando atá o menor mouro que havia em toda Gaia, andaram todos à espada, e nom ficou em essa vila de Gaia pedra sobre pedra que tudo não fosse em terra.
E filhou rei Ramiro sa mulher com sas donzelas e quando haver hi achou e meteu na nave, e quando foram a foz de Ancora amarraram as barcas e comeram e folgaram, e D. Ramiro deitou-se a dormir no regaço da rainha e a rainha filhou-se a horar, e as lágrimas dela caeram a D. Ramiro pelo rosto, e ele espertou-se e disse porque chorava?
Ramiro, Rex Terræ Portugalensis, 925-931. Imagem: Wikipedia |
E ela disse-lhe:
— Choro por o mui bom mouro que ataste.
E então o filho, que andava hi na nave, ouviu aquela palavra que sa madre dissera e disse ao padre:
— Padre, não levemos connosco mais o demo.
Entom rei Ramiro filhou uma mó que trazia na nave e ligou-lha na garganta e ancorou-a no mar, e des aquela hora chamaram hi Foz de Ancora.
Ancora, uma vista tirada do Forte do Cão, 1909. Imagem: Hemeroteca Digital |
Este D. Ramiro foi-se a Mier e fez sa corte, e contou-lhe tudo como acaecera, e entom baptizou Ortiga e casou com ela e louvou-lhe toda sa corte muito, e pos-lhe nome D. Áldara, e fege nela um filho, e quando nasceu pos-lhe o padre o nome Alboazar, e disse entom o padre que lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia. (1)
(1) Livros de Linhagens
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Récits mythiques du Moyen Âge portugais
A lenda de Gaia dos livros de Linhagens : uma questão de literatura?
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