segunda-feira, 9 de abril de 2018

Entrada do Douro

Eu passei os primeiros anos da minha vida entre duas quintas, a pequena quinta do Castelo, que era de meu pai, e a grande quinta do Sardão que era, e ainda é, da família de meu avô materno, José Bento Leitão; ambas são ao sul do Douro, ambas perto do Porto, mas tam isoladas e fora do contacto da cidade, que era perfeitamente do campo a vida que ali vivíamos, e que ficou sendo sempre para mim o tipo da vida feliz, da única vicia natural neste mundo.

Entrance of the river Douro, Edward Belcher, 1833.
Imagem: ICGC Cartoteca Digital

— Uma parda velha, a boa Rosa de Lima, de quem eu era o menino bonito entre todos os rapazes, e por quem ainda choro de saudades a pesar do muito que me ralhava às vezes, era a cronista-mór da família, e em particular da capela e da quinta do Sardão, que ela julgava uma das maravilhas da terra e venerava como um bom castelhano o seu Escurial. 

Carta topográfica das Linhas do Porto, 1834.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Contava-me ela, entre mil bruxarias e coisas do outro mundo que piamente acreditava, que também naquelas coisas "se mentia muito"; que de meu avô, por exemplo, diziam que tinha aparecido embrulhado num lençol passeando à meia noite em cima dos arcos que trazem a água para a quinta: o que era inteiramente falso, porque "ela estava certa que, se o sr. José Bento pudesse vir a este mundo, não se ia embora sem aparecer à sua Rosa de lama."

Oporto [Porto], published under the superintendence of the Society for the Diffusion of Useful Knowledge.
Drawn by W B  Clarke (detalhe),
engraved and printed by J Henshall Published by Baldwin & Cradock 47 Paternoster Row, 1833.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

— E arrasavam-se-lhe os olhos de água ao dizer isto, luzia-lhe na boca um sorriso de confiança que ainda agora me faz impressão quando me lembra. (1)


(1) Almeida Garrett, Frei Luis de Sousa, Lello e Irmão

Sem comentários: