No tempo da guerra civil, das lutas entre liberais e miguelistas, o
avô materno (Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício van Odyck),
partidário de D. Miguel, e o irmão daquele, o tio José Dionísio (Telles
de Castro Aparício van Odyck), fiel a D. Pedro IV,
haviam gasto rios de dinheiro pelas respectivas causas, vendendo aqui,
hipotecando além, fanáticos, apaixonados, adorando-se como irmãos,
odiando-se como adversários políticos.
.jpg) |
Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910. Fotografia de Ramon Bayó cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987 |
Alternadamente no exílio, a caminho da América ou da Inglaterra o
avô António Feliciano fizera as campanhas do Rio da Prata, o tio José
Dionísio estivera em Plymouth com Palmela e daí embarcara
clandestinamente para os Açores — haviam sido forçados a trocar vinho e
cortiça por bolsas de libras que a mãe, a avó Ana Francisca (Telles de Castro Rolim van Odick), lhes mandava às escondidas por emissários embuçados e fiéis.
Uma vez, contava-o com orgulho, chegara mesmo a ir a bordo,
disfarçada de vendedeira de ovos, levar dinheiro ao filho mais novo,
passageiro clandestino de um veleiro, que, aclamado D. Miguel, ia
esconder nos nevoeiros de Londres a sua amarga desilusão. Depois,
quando tudo serenara, quando, assinada a Convenção de Évora-Monte, D.
Miguel embarcara para Génova, quando, por morte de D. Pedro IV, subira
ao trono D. Maria II, amnistiando os presos políticos, pondo fim às
lutas fratricidas, o avô António Feliciano enterrara-se na Quinta e
procurava salvar os destroços do naufrágio. O irmão,
desiludido de uma liberdade que permitia desmandos e abusos de toda a
espécie, declinou honras e favores a que tinha direito e refugiou-se
igualmente na velha casa familiar. Os dois irmãos, morta a
paixão política, abraçaram-se e fizeram as pazes. Trataram então de
desenterrar as pratas, de vender aqui para resgatar além, de percorrer a
cavalo matas e olivais, de afirmar direitos sobre velhos foros, de
visitar rendeiros e feitores.
A casa, desmantelada,
começou a reviver, como árvore doente a que o sacrifício dalgumas
ramadas restitui o vigor. Sem tornar a ser o que fora nos tempos de oiro
da avó Ana Francisca, senhora de extensas matas de cortiça, a fortuna
da casa parecera equilibrar-se, permitindo à família um desafogo, um
bem-estar que havia muito não conhecia.
 |
A casa cor-de-rosa, ilustração de Manuel Lapa, 1945, para o livro de Fernanda de Castro, Maria da Lua, história de uma casa, 3.a edição, 1960, Livraria Tavares Martins prémio Ricardo Malheiros, 1945
|
Voltaram então a ter carruagem, criados, mesa posta para amigos e
parentes. Depois, a morte levara a avó Ana Francisca, e a fortuna, ainda
mal refeita do abalo que sofrera, não resistira a desequilíbrio
provocado pelas partilhas. O tio José Dionísio, liquidada
a herança, fora viver para a Beira, one a administração das
propriedades da mulher exigia a sua presença. E o avô António Feliciano,
que estava longe de possuir as qualidades de administrador do irmão — a
prudência, a moderação, o equilíbrio — vira-se forçado a consentir o
casamento da filha com o cunhado (Francisco
Liberato e Silva), trinta anos mais velho, a fim de assegurar a educação
dos quatro filhos varões, que destinara à carreira das armas.
Sem deixar de lamentar a mãe, casada aos dezasseis anos com um homem
de quase cinquenta que nunca deixou de tratar por «tio», a tia Emiliana
admirava secretamente aquele avò autoritário que, para salvar a casa, o
prestígio do nome, não hesitara em sacrificar a filha.
No íntimo do seu coração, o avô era o seu modelo, o seu conselheiro
invisível. «Que faria o avô, se fosse vivo?». E o avò, do fundo do seu
silêncio, do alto do seu orgulho, não deixava nunca de lhe responder.
Naquela
manhã, emoldurado de talha dourada, com o seu belo fardamento de
lanceiros, olhou-a com uns olhos agudos e disse-lhe: — «Na nossa família
nunca ninguém vendeu nada. Não comece a menina por vender o que não tem
preço: a dignidade, o orgulho...» (...)
ooOoo
A sala onde se encontravam era a mais espaçosa da casa. Tinha duas
janelas de peito e duas sacadas com grades verdes e cortinas de renda
nas vidraças. Um piano de cauda, de camurças gastas, ocupava um dos
cantos da sala. Uma alcatifa cobria o chão e abafava o ruído dos passos.
Reposteiros de seda verde, puídos e desbotados, escondiam as portas.
 |
Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910. Fotografia de Ramon Bayó cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987
|
Sobre as mesas, as consoles, as étagères, álbuns de retratos, jarras
com flores de seda, miniaturas, bibelots de Saxe. A mobilia Império,
hirta e rebarbativa, alternava com esses sofás, essas cadeiras, essas
mesas sem estilo que o tempo nobilita, parentes pobres da casa,
adoptados pelo hábito. Numa das paredes, um fogão de sala ladeado por
duas poltronas de peluche verde. Na parede oposta, um espelho com a sua
moldura de talha dourada. Sobre a chaminé, um brasão
bordado a oiro e a vermelho, caprichosa mistura de dragões e de flores
de lis, e dois retratos a óleo: o trisavò Marechal e o avô miguelista
que, no tempo do Senhor D. Pedro IV, andara a monte e tivera de emigrar
para Inglaterra. E, finalmente, junto de uma das sacadas,
o «canto da avó», com a sua poltrona de molas cansadas e a sua mesa de
profundas gavetas. (1)
(1) Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945
Artigos relacionados:
Maria da Lua (Conceição Lamosa)Ao fim da memória Liberato Teles
OféliaLeitura adicional:
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf.
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986
Informação adicional:
Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício (Google search)José Dionísio Telles de Castro Aparício (Google search)Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)Atlântico n.º 5, 1944, Maria da Lua, por Fernanda de Castro, duas ilustrações de Ofélia Marques
Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua
bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco
Liberato e Silva [
ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v.
artigo dedicado].
A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da
Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores
de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem
Militar de Avis.
Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram
António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros
Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.