D. Fernando II, Uma vista do Passeio Público, Leonel Marques Pereira, 1856. Wikipedia |
Foi obra do architecto Reynaldo Manuel, em 1764. Tinha o aspecto d'uma quinta fradesca e fidalga, rodeado de muros altos e espessos, onde, de quando em quando, se abria uma janella gradeada, com poyaes de pedra, interiores.
Servia-lhe de entrada uma cancella verde, musgosa e sempre podre, para além da qual ramalhavam, com gravidade, os enormes freixos e os carvalhos frondosos que Ratton transplantara da Barroca d'Alva, próximo de Alcochete, onde instalara uma fabrica.
Feira das Bestas (detalhe), Nicolas Delarive [Delerive] (detalhe), Col Olazabal. in José Mattoso, História de Vida Privada em Portugal, vol. II. Os africanos em Portugal... |
Tinha banquetas de buxo tosquiado, um velho relógio de sol, meio gasto pelo tempo, junto da praça do Verde, bancos de pedra nas curvas das áleas, todo o aspecto do jardim portuguez do século XVIII, muito policiado, muito aristocrata, inaccessivel aos homens de capote e aos maltrapilhos inapresentaveis, que uma lei rigorosa não deixava lá entrar.
Era o jardim do tempo do Senhor intendente Pina Manique — e foi este o seu primeiro período.
Lisbon view from the Public Gardens, Scenery of Portugal and Spain, G. Vivian, 1835. Biblioteca Nacional de Portugal |
Mais tarde, no anno em que foram extinctas as ordens religiosas e abolidos os Frades, tratou-se de o modificar. (1834) Deitaram-se os muros abaixo e subslituiram-nos por um gradeamento de ferro, interrompido, de quando em quando, por grossas pilaslras de pedra, mais civilisadas e menos pittorescas; o jardim perdeu o seu recolhimento delicioso.
Promenade Publique, Celestine Brelaz (Lenoir). Dix vues de Lisbonne dessinées d'après nature & litographiées Genève, 1840. Biblioteca Nacional de Portugal |
A cancella verde foi, também, arrancada, transformada em dois portões de ferro e todo o largo que, antecedentemente, estava desaproveitado, ficou fazendo parte d'elle, tornando-o mais comprido.
Passeio Publico, Promenade Publique (copia do Daguerreotypo), Lisboa, Barreto lyth. e Annunciação, c. 1845. Panorama (revista portuguesa de arte e turismo), nº 13, Fevereiro 1943 |
Uma vereação delirante construiu, na entrada, um grande tanque quee, de combinação com Malachias [Ferreira Leal], um architecto selvagem, ornamentou com varies tritões e sereias de pedra, trazidas do antigo jardim do Paço dos Estaús.
O Passeio Publico em Lisboa, Legrand, c. 1843. Biblioteca Nacional de Portugal |
Como deitou abaixo, raivosamente, os velhos freixos de Ratton, sem ouvir, sequer, os protestos de Herculano, no Panorama [v. O panorama, n.º 188, 5 de Dezembro de 1840], teve de plantar uma fileira d'arvores miudinhas, abriu. com o espaço adquirido uma larga rua central, poz-lhe, no topo, outro tanque, com mais sereias, mais nayades de cantaria — e uma complicação d'escadas que davam accesso á praça da Alegria de Baixo. Depois d'isto a camara, arquejante, descançou.
Foi o segundo período do jardim, o período romântico.
Só mais tarde, depois da Regeneração com o neo-romantismo e o gáz, teve, finalmente, o Passeio Publico a sua terceira e ultima época d'explendor. Passeio Publico não brilhou, talvez, na sua segunda transformação como mais tarde, na terceira, mas no período romântico a sua existência foi soberbamente lamartiniana.
Illuminação do Passeio Publico, litografia A. S. Castro, 1851. Biblioteca Nacional de Portugal |
Quando Lisboa sabia da sua vida rotineira e avassalada, precipitava-se no Passeio. Ali matava a sua saudade de verde, o seu vago anceio para as coisas espirituaes d'este valle de lagrimas. Já então, aos domingos, a família lisboeta, compacta e interminável, apparelhava o seu máximo luxo, tirava das arcas o taffetás e o chapéu de pèllo de seda, para ir arejar, espairecer debaixo de um renque darvores rachiticas, entre duas praças immundas.
A cidade nào tinha, em torno de si, uma floresta, como Berlim, não era, como Londres, uma aglomeração de fachadas esmaltada de parques, manchando com nódoas de verdura as cantarias cinzentas e tristes.
As bellas quintas eram vedadas, o jardim publico uma neccessidade que todos sentiam e que nenhuma vereação realisava. Movidos pelo mesmo desejo e pelo mesmo instincto, os lisboetas procuravam "sub tegmine fagi [à sombra de uma faia]", a parte deleitosa da sua vida obscura e assoberbada.
Illuminação do Passeio Publico, litografia A. S. Castro, 1851. Arquivo Municipal de Lisboa |
Mais pelo impulso do que pela moda, a sociabilidade desenvolveu-se, prosperou. Sob as frondes acanhadas esbóçam-se relações, conglobam-se famílias. O vendedor ambulante, tolerado no Passeio, vendia já, em 40, o "barquilléro" das cidades da Galliza, o "pain-d'-épice" das feiras de Courbevoie ou de Puteaux ; nas tardes quentes de domingo o capilé, esse xarope tào acentuadamente lisboeta, fazia devastações sem fim; Lisboa consumiu enormes porções de "capilé".
O publico mesclou-se. Para seguir as carinhas miúdas que desciam dos casarões da Baixa, de grandes olheiras negras e de vastas saias còr de rosa, despovoavam-se os esquinas do Rocio e da Betesga. E havia sempre, pelos cantos mais copados, um elegante a namorar de "estafermo", á antiga maneira portugueza, perseguindo, com ar dengoso, qualquer beldade assustada que escondia o fulgor dos olhos pretos debaixo das sedas d'uma capota á Marie Gappelle.
Nas tardes d'elegancia o velho Passeio tinha apparencias de salão onde também houvesse arvores e as "toilettes" tomavam a forma de complicados e graves vestidos de baile. O sol indiscreto, espreitava, d'entre os carvalhos, caprichava nos "pince-néz" reluzentes, nos leques de metal ou de prata esmaltada, marchetados de xarão, de madrepérola, de marfim arrendado ou palhetado d'oiro, brincava nas ventarolas de pênnas brancas, nos ramos de camélias, de raynunculos, de rosas de musgo ou de rosas do Japão, reflectindo-se, indeciso, nas gargantilhas de pérolas falsas, nos cordões á duqueza d'Uzés e nos altos pentes do tartaruga loira.
Passeio Publico. Archivo Pittoresco n° 6, 1857 |
Nas áleas ensaibradas, onde até as folhas cabiam com elegância e galanteria, perpassavam, com a leveza de sylphos da Escandinávia cabriolando num raio do luar, as formosíssimas Elviras que ennegreciam de doido ciúme o coração dos Antony's.
As bottinas de polimento quasi não pousavam na terra, arrastando em passos ondulosos as mulheres vestidas com o "grôs-de-Naples", côr de castanha, então muito em moda, resguardadas pelas capas de flanella estampada, côr d'opala ou côr de cinza, forradas a seda verde para que a mão, enluvada n'um tom de pão torrado, com sabia applicação produzisse, na linha, cambiantes bem definidos, cortantes e nítidos.
Para as verduras do Passeio se fizeram os penteados á Fátima, os penteados á polka, á Isabel, á ingleza, sustentando os vastos chapéus de plumas que Gainsborough tanto affeicoava nas suas damas escocezas e que a moda d'hoje ressuscitou com o nome de chapéus á mosqueteira.
Passeio Publico. Archivo Pittoresco n° 42, 1863 |
Na doce Lisboa, sob as claridades tépidas que desciam dos plátanos rumorejantes, cahindo, moribundas, sobre as banquetas de buxo, entre a praça da Alegria de Baixo e o largo do Camões, accenderam-se paixões tumultuosas que terminavam, ás vezes, na floresta de Cintra, junto de um salgueiro triste, debruçado sobre uma poça de sangue.
Houve Werthers sinceros, houve Carlotas garrulas, mancebos d'olhos marejados, que acabavam de se pentear no Andrillat, no Jacques Plane, no Julien, caminhando pausadamente, sem que fizessem uma prega ás calças de casimira preta, "meía-cossaca" ou de lemiste, justas do joelho para baixo e formando meia pala sobre o sapato de verniz.
Passeio Publico do Rocio, Serrano, entre 1850 e 1869. Biblioteca Nacional de Portugal |
E os apaixonados moviam, com lentidão, a cabeça, presa na alta gravata ou no lenço de setim, agitando os cabochons d'agata e de cornalina vermelha, seguindo, com interesse palpitante, o fallar complicado dos lenços arrendados que adejavam, febrilmente, nas mãos femininas — e que se chamavam das "quatro partes do dia".
Quando o sol descia para lá dos telhados do marquez da Fóz, as flanellas aconchegavam-se mais e nas sobrecasacas d'inverno, em verde-bronze, verde-florenlino, verde escuro ou preto invisível, tomavam uma apparencia mais confortável e mais appetecida, as guarnições de pelles, escuras, pesadas e luxuosas, de onde surgiam amplas cabelleiras á "san-simoniense" e as barbichas petulantes e grotescas que já o Mercúrio, de 38, chamava "barbichas de bode" e peras imitando os pincéis de papo de peru velho.
Passeio Publico. O Occidente n° 147, 1883 |
A meiguice da atmosphera preguiçosa poetisava a multidão que, para o fim do dia, na hora intima do crepúsculo, pousava os olhares cançados nas copas altas, que a tarde escurecia, com mais abandono e mais recolhimento; as valsas banaes da banda militar tomavam rithmos perturbadores, ennobreciam, viajando pelo ar, áquella hora indefinível em que as coisas vivas se dobram sobre si próprias ao sentira passagem da alma adormecida d'uma natureza sem tarde e sem manhã.
Era a hora dos vagos desejos, dos sonhos que não teem nome, quando o Planeta espreita, como um grande olho curioso, e o azul dos ceus todo desmaia n'um assombro e n'uma prece. O mancebo que namora "d'estafermo" tem, agora, toda a melancolia do dia que foge e desaparece lambem, suspirando um "Lebewohl" de Beethoven, seguindo a sua Carlota garrula.
Passeio Publico. O Occidente n° 159, 1883 |
O jardim despovoa-se. Nas ruas que torcicolam, já cheias de escuridade e de solidão, o homem dos bolos compõe a sua trouxa e faz tenir o seu cobre. Ao longo do Passeio as janellas illuminam-se frouxamente é que em roda d'um grande candieiro d'azeite os pratos de sopa rescendem e exhalam o seu perfume em fumositos leves.
Os portões fecham. E elle, agora, está solitário e vasio; ramalha lentamente, baloiçando-se em cadencia. A sua voz é grave; a sua alma é doce; é a alma dos que ali amaram. Velho passeio da nossa velha Lisboa!
Entrada do Passeio Publico no século XIX, ed. Veríssimos Amigos. |
Fluctua ainda, no sitio onde elle existiu, qualquer coisa mysteriosa e intangível que paira nas tardes luminosas, muito baixo, ainda agarrada á terra, contemplando, na sua forma invisivel, a fresca e transitória forma com que brilhou e ciciou.
Que diz ella, a velha alma? Olha sombriamente as coisas que não voltam mais e lamenta, talvez, não ter mãos para as poder juntar num grande gesto desesperado e mudo que fosse, ao mesmo tempo, uma lagrima, uma saudade e um sorriso para todas essas figuras esfumadas de um velho mundo — morto. (1)
(1) Mário de Almeida, Lisboa do romantismo (Lisboa antes da Regeneração)
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O panorama (jornal litterário e instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis), n.º 188, 5 de Dezembro de 1840
Archivo Pittoresco n° 6, 1857
Archivo Pittoresco n° 42, 1863
O Occidente n° 147, 1883
O Occidente n° 159, 1883
Illustracao Portugueza n° 26, 1906
Revista municipal nº 27, 4º trimestre de 1945
Revista municipal nº 28 e 29
Revista municipal nº 30 e 31
Revista municipal nº 34
O antigo Passeio Público, Panorama (revista portuguesa de arte e turismo), nº 13, Fevereiro 1943
Cadernos do Arquivo Municipal
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