quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Poveirinhos pela graça de Deus

E é curioso ver a esperteza dessas crianças. Brincam, desprecupadamente, olhando de quando em quando, a imensidão do mar a ver se descobrem o latino. Basta que um dê o sinal: «Lá vem um !», para que todos se agrupem a olhar, fixando a sua vista de lince no pontinho que lá ao longe se divisa. Começa desde logo a discussão: «É o Dibó – é o Negrinho – é o vosso – não é – conheço-o pelo pano!» – até que todos acordam: É o vosso, Zé» – e ainda ele vem a algumas milhas de distância. E o Zé, ligeiro como a andorinha, logo desata a correr os bairros, de casa em casa das mulheres da companha, a deitar o pregão anunciador: «Varar ! »

A volta dos barcos, Sousa Pinto, 1891.
O menino enverga os típicos catalim e a camisola poveira em lã.
Douta melancolia

Sucede sempre que as mulheres da companha chegam à praia primeiro que o barco abique, tal a ligeireza com que a criança se desempenha da obrigação.

É ainda a infância, nas horas de ansiedade pela tempestade no mar e quando todos no paredão ou nos fieiros esperam pelos seus, quem dá a primeira nova do barco que está à vista, porque fixa na retina os próprios contornos da velamenta e a divisa do barco da sua obrigação e de muitos outros.

O pequeno poveiro ajuda ainda os pais no fazer da rede nova, enchendo as agulhas com fio.

A par destas obrigações que o espírito da classe impõe como factores de educação marítima, a criança poveira tem as suas forgas bem características, que constituem verdadeiros desportos de agilidade e energia.

A boiada, a péla, a zocha, a forma, a entola, as vascas, a covinha, a roda, o descanso e a barra são modalidades desportivas que a entusiasmam e muito contribuem para o seu desenvolvimento físico. Algumas destas forgas estendem-se às crianças de toda a região do Minho. Mas duas há que são caracterizadamente poveiras: A boiada e a péla.

A boiada é dos primeiros e dos mais entusiásticos jogos da criança poveira. Toma aspectos violentos.

A péla é o seu último jogo, podendo bem considerar-se o jogo de despedida da sua mocidade. Tem distinção; é, comparado com os outros, a filigrana dos seus jogos. E tanto assim, que as outras classes da terra, modernizando a sua péla de pano rijo por bola de borracha, dão-se hoje a esse desporto, com entusiasmo, nas temporadas da Páscoa. A péla é, na Póvoa, digamos, o sinal da – aleluia! – porque se inicia com a festa da Ressurreição e acaba com a festa da Ascensão (...) (1)


(1)  A. Santos Graça, A infância, O poveiro, Usos, costumes, tradições, lendas Etnográfica Press

Mais informação:
Occidente n° 469, 1892
Octávio Lixa Filgueiras, O barco poveiro, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1995
Carlos Carreto, Imaginários do mar, antologia crítica, 3
Francisco da Fonseca Benevides, Escola Industrial Pedro Nunes em Faro, Museu Industrial Maritimo, catalogo illustrado das collecções, 1891

Raul Brandão:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão

Archivo pittoresco:
Póvoa do Varzim n° 9, 1868 (I e II)
Póvoa do Varzim n° 22, 1868 (III e IV)
Póvoa do Varzim n° 22, 1868 (V e VI)
Póvoa do Varzim n° 25, 1868 (VII)
Póvoa do Varzim n° 29, 1868(VIII)
Póvoa do Varzim n° 30, 1868 (IX)
Póvoa do Varzim n° 33, 1868 (X)
Póvoa do Varzim n° 37, 1868 (XI)
Póvoa do Varzim n° 38, 1868 (XII e XIII)
Póvoa do Varzim n° 46, 1868 (XIV e XV)

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