domingo, 3 de dezembro de 2017

Lisboa da minha mocidade

Que bello tempo! Logo no alto da rua Garrett — o velho Chiado — onde o bardo da "lira sonorosa" põe os pés em cima de homens como João de Barros e Pedro Nunes, que, muito tristes, cabeça pendida e ajoujados, os pobresitos, com o peso enorme d'aquella massa de bronze, parecem escravos calcados aos pés de um tyranno, eram os famosos casebres. 

Praça Luiz de Camões e Largo das Duas Egrejas (Loreto e Encarnação), ed. Martins Martins & Silva, 155, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Alli rechinavam as iscas em tabernas immundas e dormiam em vãos e alfurjas, promiscuamente, rufiões, fadistas e venus-vagas.

Casebres do Loreto, antigo Palácio dos Marqueses de Marialva, colecção Julio de Castilho.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No largo das Duas Egrejas um chafariz com o seu Neptuno, que não era o de João de Bolonha, de tridente em punho a pescar gallegos, como dizia António Pedro Lopes de Mendonça no folhetim da Revolução de Setembro.

Chafariz de Neptuno no Largo das duas Igrejas (Chiado), col. Julio de Castilho, Fot. Bárcia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O gaz, pallido e vacillante, nos bairros altos e escusos da cidade, sumia-se ou desapparecia de todo.

Rua das Portas de Santa Catarina em 1843 (fot. Bárcia sobre lit. de Legrand).
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Na Patriarchal, na linda praça que hoje ahi temos, estabelecia-se, nas entradas do inverno, o mercado de porcos. Mercado commodo e central, onde o pae de familia, que se amanhava regularmente, ia ajustar o cevado ruivo e redondo, creado a boleta de azinho nos montados do nosso Alemtejo. 

Jardim da Praça do Príncipe Real, c. 1860
(antigo Largo da Cotovia e posteriormente Largo da Patriarcal Queimada, actual Jardim França Borges).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Feita a compra, surdia de um antro o matador, de cara estúpida e sinistra; dava o chamado nó de porco na perna do animal, mettia um banco debaixo do braço, facão n'uma bainha de coiro á cinta, e lá ia á porta da casa do burguez, onde o javardo manso era esfaqueado por entre o vozear jubiloso da garotada cruel! 

O bando dos toiros, semsaboria que hoje provoca lagrimas, tornava-se o grande acontecimento das toiradas, a par da espera á tarde e á noite. 

Condução de toiros desde Odivelas pela Calçada de Carriche
(na imagem pode ver-se a igreja do Campo Grande).
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Carnavalada nacional e pittoresca era aquelle bando. O neto, com as pernas como dois arcos de pipa, macrobio invulnerável do tempo de D. João VI, vinha adeante, montado na sombra de um cavallo, mas quando fosse um potro servil de Alter não conseguiria cuspil-o da sella a que se agarrava com as caniculas de aço. 

O farçante tinha a consciência do seu valor e o enthusiasmo do seu officio. Quatro mariolões trajados de amazonas flanqueavam-n'o com o garbo imponente de ajudantes de ordens. Magarefes das fressureiras, com pífaros, trombetas e tambores, n'um escândalo estrondoso de harmonia, alvorotavam de alegria familias sisudas, que dos primeiros aos quintos andares se precipitavam das janellas, simulando a loucura do suicídio; 

pretos de cavallinho de pasta formavam a reserva em brados estridules e n'um batuque medonho! O neto, com mão profusa, distribuía cartazes, onde muitas vezes vinham versos que chispavam graça, como chispa um fogareiro de cepa espirrando ás correntes do vento. 

Os africanos serviam-se de cavalos de pasta que "reviviam a figura antiga dos cavalinhos fuscos” da Procissão do Corpo de Deus de Lisboa de 1482 e de Coimbra de 1517.
Os pretos em cavalinhos de pasta, litografia Legrand.
Imagem: Os africanos em Portugal...

Eram feitos esses versos por um velho poeta, companheiro de Bocage no escabujar da Arcádia.  Conheci-o muito; Xavier, creio que se appellidava. Ainda haverá algum colleccionador que tenha um ou outro d'esses cartazes, realmente primor de sal portuguez. 

N'esse tempo, nas toiradas, o cavalleiro acceitava duellos, isto é, se perdia o estribo ou lhe cahia o chapéo tinha obrigação dê se apear e pôr um par de ferros. Davam-se ás vezes episódios cómicos e outros que puxavam a trágicos. A coisa foi prohibida.

O jardim da Estrella era um relvão a que se mettia o arado para semear trigo. O cemitério dos inglezes mantinha, como hoje, a correcta e sombria severidade. 

Lisboa Estrela Lissabon Wien M. Trentsensky c 1850 BNP 01
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Patrulhas da municipal, cosidas com as paredes, enormes capotes de oleado e as pesadas armas ao hombro, policiavam as ruas. A tropa de linha embirrava com ellas e a cado passo se levantavam conflictos [...]

Guarda Municipal de Lisboa
Typos Costumes Portugueses, João Palhares, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Mas que fazer n'aquelles tempos. Além das patrulhas da municipal outra força havia para manter a ordem publica: os cabos de policia, foco vivo de todas as rixas e tumultos das ruas de Lisboa.

Os cabos eram pessoas de posição; muitos com lojas abertas e alguma coisa de seu. Noite cerrada, depois de ceados e escorvados com duas chinitas de aguardente, para fazer cara ás intempéries e á pancadaria, sabiam de casa sob o benéfico influxo do Credo em cruz da familia, e cada um d'elles se julgava um Cid Campeador na heroicidade mavórcia.

O trajo variado ia do chapéo alto até o barrete de campino. No armamento entrava a partazana, o sabre curvo, o pistolão de pederneira, que nâo pegava fogo nunca, e os camuletes nodosos em maior quantidade.

Rua do Século (antiga Rua Formosa), Lisboa Velha de Roque Gameiro.
Imagem: roquegameiro.org

O campo ordinário de suas façanhas era no Bairro Alto [...] (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907

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