quarta-feira, 19 de julho de 2017

Augusto Roquemont (1804-1852)

Foi o jovem Tomás da Anunciação quem, em 1844, mais ou menos dirigiu uma revolta estudantil contra o favoritismo de que, num concurso de pintura de História, beneficiou o filho do mestre A. M. da Fonseca. 

Procissão, Augusto Roquemont, 1832-1849.
Imagem: iolanda andrade

Isso levou, por um lado, a pôr em causa o ensino deste, e, por outro, a descobrir a arte dum bastardo dum príncipe alemão que veio parar a Portugal secretariando o pai, aventureiro miguelista, e que por cá ficou.

Chafariz de Guimarães, Augusto Roquemont, 1847.
Imagem: Desde o tempo do barroco

Auguste Roquemont (1804-1852) formara-se por Itália e foi o retratista por excelência da nobreza nortenha, de sangue miguelista, ao mesmo tempo que pintava os costumes rústicos dos Portugueses – com significativa aprovação de Garrett, próximo autor de Viagens na Minha Terra, diante do "Folar", exposto em 1843.

Retrato de dama, Augusto Roquemont.
Imagem: Pedra Formosa

Assim, a pintura ainda não portuguesa mas em Portugal (e no princípio do século vimos outros estrangeiros debruçarem-se sobre idênticos temas) começava a interessar-se pela terra e os seus costumes, no que era um dos caminhos maiores do romantismo, a par duma temática histórica e dentro dum sentimentalismo que podia e devia cobrir as duas tendências.

Vareira,  Augusto Roquemont , 1847.
Imagem: iolanda andrade

Aí a separação se estabelecia com o mundo histórico de mestre Fonseca (1796-1890), fiel a um neo-classicismo mitológico aprendido em Roma, de 1826 a 1834, quando patrioticamente regressou ao Portugal liberal, disposto a colaborar na sua nova civilização.

Varanda de Frei Jerónimo (Convento da Costa, Guimarães), Augusto Roquemont ,1840.
Imagem: Pedra Formosa

Logo no ano seguinte realizou ele uma exposição particular em Lisboa, a primeira que aqui se viu, e, mais dois anos passados, coube-lhe, por direito indiscutível, a cadeira de pintura de história na recente Academia. 

Collegiada de Guimarães, Augusto Roquemont.
Imagem: Blogue do Minho

Em 1843, a sua obra-prima, ali exposta, mereceu-lhe elogios tornando-se o símbolo da sua arte e dum passado estético que, evoluído da Ajuda, não tinha mais futuro junto dos seus jovens alunos. "Eneas salvando seu pai Anquises do incêndio de Tróia" é uma excelente composição e a única de acertado carácter erudito, da sua espécie, em Portugal; só doze anos depois a obra seria contestada pela nova geração entretanto definida, sem que, porém, isso diminuísse o crédito público e oficial de mestre Fonseca que, jubilado em 1863, só faleceu com mais de noventa anos de idade. 

Revoltado contra o mestre, Anunciação procurou em vão apoio e lições de Roquemont, que visitou e do qual recebeu apenas vagos conselhos [...]

Retrato de Augusto Roquemont por José António Correia.
Imagem: Mestre José António Correia...

Anunciação marcaria os limites da pintura de paisagem dos românticos portugueses se não fosse a acção do seu discípulo e companheiro (e depois colega na Academia) Cristino da Silva (1829-1877) [...]

Autorretrato de Augusto Roquemont com 19 anos.
Imagem: Wikipédia

A esta pintura de paisagem e animalista liga-se uma outra temática de ar livre, atenta aos costumes populares, na via que Roquemont abrira. (1)


(1) José Augusto França, A Arte Portuguesa de Oitocentos, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992

Artigo relacionado:
Garretismo

Leitura adicional:
António Mourato, Augusto Roquemont, retratista e pintor de costumes populares

Mais informação:
O Real em Revista (pesquisa: roquemont)
Arquivo Municipal do Porto
MatrizNet

terça-feira, 18 de julho de 2017

Garretismo

O folar (costumes do Minho), quadro do sr. A. Roquemont

Não conhece Portugal o que não viu e estudou as nossas provincias do norte, mas especialmente o Minho. A raça, as feições, o trajo, os costumes, tudo alli é characterislico. O solo, o clima, a vegetação, a cultura, tudo alli é bello. São os campos mais verdes, as árvores mais esbeltas, os mulheres mais bonitas, e os baldios mais sinceros de todo o reino: do reino que alli nasceu e que d'alli se estendeu até aos Algarves.

O parocho da aldêa pedindo o folar, Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Poesia e pintura portuguem hade-se ir fazer alli: em certos generos nunca se fara bem se o poeta, o pintor não conhecer e não copiar a nossa Arcadia, que é aquella provincia.

O Sr. Roquernont, artista distincto cujo principal character e merecimento é a verdade, por uma longa residencia no Minho é que se fez portuguez, artista portuguez legítimo, como ochala que sempre sejam todos os nossos naturaes.

Retrato de Augusto Roquemont por José António Correia.
Imagem: Mestre José António Correia...

Na última exposição de Lisboa (1843) notamos os dous lindos quadros de genero com que a illustrou: ambos eram do scenas minhotas, ambos cheios de graça e de verdade. O Sr. conde de Luckner, ministro de Dinamarca n'esta côrte, fez a aquisição d'estes dous quadros, avaliando como conhecedor que é, o seu muito merecimento. Por favor de S. Ex.ª poderam os Srs. Editores desta obra fazer copiar um d'elles e hoje tem a satisfação de o dar aos seus assignantes no presente desenho litographico. 

Representa o abbade, o parocho da aldea, entrando duma casa de lavrador a pedir o folar — dom voluntario dos freguezes ao seu pastor por occasião da festa de paschoa.

O parocho da aldêa pedindo o folar (detalhe), Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Sôbre tudo n'este quadro o effeito da luz é primoroso: o sol entrando pela unica janella da casa, vai tocar na extremidade de uma mesa, e de permeio allumia parte do berço aonde jaz uma criancinha. A restea de sol. reflectida por todo o pavimento, está distribuiria de forma que se distinguem perfeitamente os objectos, sem com tudo em nada perder da sua força o rigoroso escuro do fundo sabre que destacam as figuras do padre e do sachristão. 

N'esta parte da transparencia dos escuros pôde este quadro comparar-se nos da eschola flamenga de scenas familiares e interiores, aonde custa a perceber como, por meio de tons sempre diaphanos, se pode conseguir uma força extraordinoria que, pela sua grande transparencia, produz de ordinario unta perfeita illusão.

A verdade, a expressão, a naturalidade e o posição da figuras são, como ja dissemos, de quem conhece perfeitamente o paiz, a sua natureza e o seu povo.

O parocho da aldêa pedindo o folar (detalhe), Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quem não vê na cabeça d'aquelle bom abbade um dos tantos singelos e bondosos pastores que d'antes contava a nossa egreja, cansados da edade e dos trabalhos da sua cura, modestos e obscuros heroes que fugiam da glória van do mundo, e praticavam, quasi as escondidas, todas as virtudes que fazem um santo e um grande homem?

O parocho da aldêa pedindo o folar (detalhe), Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O sachristão tem uma physionomia natural, o velho pae do dono da casa faz na sua expressão devota um contraste bem notavel com certa indiferença que parece mostrar o filho. É o seculo passado e o presente. Nos mulheres que estão no fundo conhece-se, o par da devoção, a attenção que dão ás flores que coroam a imagem do Sancto-Christo. 

A mulher que vende os ovos, assim como o moço que os compra, estão bem characterizados. 

O parocho da aldêa pedindo o folar (detalhe), Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O socégo do gato sentado ao sol, a innocencia da minina que junto do berço olha para a cerimonia sem a intender, tudo está primorosamente natural. É para admirar que o Sr. Roquemont sem modellos conseguisse tanto.  Com reminiscencia — e bem se vê que o quadro é feito d'ellas — ninguem poderia fazer melhor.

O parocho da aldêa pedindo o folar (detalhe), Augusto Roquemont, 1843.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Tem este quadro 10 polegadas de altura, e 14 de comprimento.

A. G. (1)


(1) Almeida Garrett, O Folar, (Costumes do Minho), Quadro do Sr. A. Roquemont, Jornal das Bellas-Artes n.º 1, 1843, cf. O Real em Revista (pesquisa: roquemont)

Artigo relacionado:
Os pincéis do Neogarretismo prévio

Leitura adicional:
António Mourato, Augusto Roquemont, retratista e pintor de costumes populares

sábado, 15 de julho de 2017

João Christino da Silva (1829-1877)

João Christino da Silva — o Christino — como todos lhe chamavam, foi uma das figuras mais originaes da sociedade lisbonense. Alto e esbelto, a sua bella cabeca de perfil judaico — ornada com urna basta cabelleira negra, annelada e romantica, e meio occulta sob as abas d'um chapou á Rubens, garbosamente inclinado sobre a orelha — apparecia e destacava-se d'entre a multidão em todas as reuniões publicas, nas exposições, nos theatros, nos circos, porque este artista foi, de todos os que tenho conhecido, o mais mundano, e portanto o mais popular.

João Cristino Silva, auto-retrato (detalhe).
Imagem: Arcadja

Escondia-se Annunciação e vivia com as suas pinturas no seu atelier da Academia, e ninguem, vendo-o ao lado de Christino, diria que eram irmãos na arte; o escultor Assis Rodrigues, com a sua formosa e fina cabeça toda branca, parecia um ecclesiastico; Metrass e Victor Bastos eram dois elegantes, e encontravam-se todas as noites na roda do Marrare do Chiado; Lupi com o seu porte elevado, serio e demorado nos movimentos e na expressão, tinha o aspecto d'um senador, d'um alto funccionario. Christino, só, no meio de todos os seus collegas, parecia ser o unico artista, porque só elle tinha o exterior da sua profissão.

Talento imaginoso, enthusiasta, expontaneo, facil e brilhante, poderia legar-nos obras notabilissimas, se não obstasse a isso, por um lado a mobilidade e a extrema sensibilidade do seu espirito, por outro as circumstancias sociaes do seu tempo, pouco propicias ao desenvolvimento das suas faculdades artisticas; por isso, e apesar da sua notavel estreia, aconteceu-lhe como n muitos outros, para quem o sol da arte, cheio de promessas e de esperanças na sua aurora, se enturva no meio da carreira, e desce nublado e triste ao occidente, deixando-nos só saudades e desillusões.

João Cristino Silva, auto-retrato.
Imagem: Arcadja

Discipulo da Academia de Lisboa, como todos os nossos artistas d'então e de hoje, entre o seu espirito irrequieto e os preceitos tradicionaes do ensino dos velhos académicos, seus professores, travou-se a lucta fatal dos periodos de transição, e o fogoso artista sahiu da Academia, e julgando achar na formosa arte de Benevenuto Cellini mais largos horisontes para o seu talento, dedicou-se á ourivesaria; porém, se a natureza o fizera artista, a arte nunca o fez rico, e não obstante a sua privança com os mais preciosos metaes, Christino, durante os dois annos que lavrou e poliu o oiro e a prata, convenceu-se de que por aquelle caminho náo poderia nunca chegar nem á riqueza, nem á gloria, e elle ao menos aspirava a um d'esses escopos do talento e do genio.

Dissera o turbulento artista adeus á Academia e pozera de lado a paleta e os pinceis, mas os antigos companheiros de estudo, esses conservara-os elle, e era na loja que Christino tinha de sociedade com o ourives Moutinho, que elles se reuniam, e vinham continuar as suas palestras, e discussões, iniciadas nas aulas e galerias do convento de S. Francisco. O fogo ainda lavrava sob as cinzas, e o amor do artista pela pintura ia em breve renascer n'elle mais vigoroso e ardente. Ao contacto e sob a influencia d'esse convivio, que dia a dia lhe avivava as recordações dos seus queridos estudos, e os imaginados triumphos que a sua imaginação phantasiava, eil-o de novo voltando ao gremio da arte.

João Cristino Silva, auto-retrato.
Imagem: MNAC

Dava o exemplo e já a lição a todos esses artistas, ainda no visor da mocidade, o que havia de vir a ser o primeiro entre elles — Annunciação. Christino estabeleceu o seu atelier n'uma mansarda, d'uma rua da velha Alfama, proximo da casa paterna. Ahi pintou elle os seus primeiros quadros, e ahi foi conhecido e protegido pelo distincto amador o sr. Moser, que n'aquelles tempos difliceis "hard times" era um dos rarissimos Mecenas dos que forcejavam por abrir cantinho no mundo da arte.

A paizagem e os animaes, foram os generos cultivados de preferencia pelo joven artista, que nos conselhos e nos louvores dos seus amigos encontrava o incitamento para maiores e mais arrojados commetimentos. Assim decorreram alguns annos, sempre trabalhando e progredindo, até que na exposição da Academia, em 1855, Christino apresentou o seu grande quadro "Os cinco artistas em Cintra".

Cinco artistas em Sintra, João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC

O publico que concorreu a visitar essa exposição — que marcou epoca na historia da arte portugueza — a imprensa que d'ella se occupou largamente, e os amadores que se interessavam pelos progressos e pelos triumphos dos jovens artistas, todos foram unanimes em dar um dos primeiros logares a João Christino, e, como se não devesse faltar nada para que o seu triumpho fosse completo, D. Fernando "o rei artista" depois de ver o quadro, quiz conhecer o seu auctor. 

Ouvimos a Christino a narração dessa entrevista, a que elle foi com o espirito cheio a um tempo de turbação e de contentamento. É que a distinção não podia ser maior: apenas entrado na carreira tocara a meta das suas mais ambiciosas aspirações, e sentia-se já na estrada da gloria e da fortuna. D. Fernando, novo ainda, acolheu-o com a maior affabilidade, elogiou-o, e para que as suas palavras d'encarecimento tivessem todo o valor e influencia no animo do artista, comprou-lhe o quadro, que ainda tivemos occasião de ver nas magnificas salas do riquissimo museu do fallecido rei.

Feliz estreia e feliz edade Christino tinha apenas 25 annos! (1)

Em 1855, a França convidou as sciencias, as industrias e as artes de todo o mundo para um grande congresso, e os Cinco artistas, depois de figurarem no anno antecedente na exposição da Academia de Lisboa, foram enviados á grande Exposição universal de Paris com outros trabalhos de artistas portuguezes.

"N.° 1676 — João Christino da Silva — Cinco artistas cm Cintra — O colorido é formoso com quanto por partes avermelhado. Pela desenvoltura vê-se logo que são artistas as figuras do quadro. Prova-se á primeira vista boa atitude e cunho do bello. Entretanto quereriamos em menos symetria o acampamento e menos apuro no vestuario, porque, sem otlender susceptibilidades, julgamos poder afirmar que em Portugal, como em qualquer outro paiz, a negligencia é um dos caracteres distintivos do artista. Mas nem por isso deixaremos de concluir que a obra do sr. Christino da Silva é uma das mais notaveis que foi apresentada no grande concurso." 

Citamos a critica do jornal francez, não porque a julguemos primorosa, mas porque prova que n'aquelle enorme certamen a obra de Christino não passou despercebida. 

O que parece ter destoado mais ao critico na composição, é a symetria do que elle chama acampamento e o apuro do vestuario dos cinco artistas.

Emquanto á primeira observação discordamos, e achamos boa a composição do grupo principal, em que figuram Annunciação fazendo um estudo do natural, e por detraz d'elle Metrass, em pé, desenhando n'um album, rodeados por uma tamilia saloia, que a curiosidade natural ali chamou, e que contempla a obra, e segue attentamente o pincel do artista, que lhe vae debuxando a paizagem tão sua conhecida. 

Cinco artistas em Sintra (detalhe: Anunciação, Metrass e familia saloia), João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC

Seria talvez este grupo suficiente para um quadro, mas as tres figuras de Victor Bastos, Christino e José Rodrigues, que estão á direita, n'outro plano mais afastado, não prejudicam, antes completam, a composição. E pelo que respeita á excessivo elegancia dos trajes, todos nós que conhecemos os individuos ali retratados, sabemos que nenhum d'clles teve jamais o aspecto phantastico e funambulesco d'alguns "rapins d'atelier" do "Quartier latin", muito cabelludos e pouco penteados. 

Cinco artistas em Sintra (detalhe: Victor Bastos, Christino e José Rodrigues), João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC

Annunciação, sem pretenções a dandysmos, que não estavam em harmonia com o seu caracter e a modestia dos seus recursos, foi sempre correctissimo na fôrma de se apresentar. Metrass, relativamente rico, trajava com apurado gosto e era o que então se chamava um janota, não lhe ficava atraz Victor Bastos. De José Rodrigues pôde-se dizer o mesmo que afirmámos de Annunciação.

E Christino, de todos os cinco o mais phantasioso e de mais airada vida, apesar dos seus chapeus espectaculosos e do grande chale-manta, que elle traçava um pouco theatralmente, parecia uma d'essas figuras da Renascença, que vemos nos grandes quadros antigos, e nunca se confundia com os bohemios cheios de côr por dentro e por cujos retratos tanto abundam desde 1830 nos romances francezes.

Neste estudo, improvisado para acompanhar o excellente retrato gravado pelo sr. D. Netto, e a copia do quadro dos "Cinco artistas em Cintra", não podemos seguir passo a passo a carreira do nótavel pintor, nem analysar e discutir os meritos e defeitos das suas obras, algumas das quaes, como a "Primeira impressão da arte", a "Estalagem", a "Estrada da Povoa", compradas tambem pelo fallecido rei D. Fernando, faziam parte da Galeria do Palacio das Necessidades, mas o que podemos afirmar é que o futuro não correspondeu ás brilhantes promessas dos primeiros annos e que causas internas e externas, que seria longe expor aqui, fizeram com que o artista, chegado a menos de meio da sua carreira, parasse, e preferisse os encantos e attractivos do mundo no estudo e cultura das bellezas mais ideaes e abstractas da Arte.

Estimado por todos os que conheciam as qualidades do seu espirito e do seu caracter, Christino procurava por todos os modos completar a sua educação: lia muito, interessava-se por todas as grandes idéas, discutia com todos, e envolvia-se ás vezes nas mais altas questões artisticas e sociaes, supprindo com a vivacidade e a perspicacia natural as defficiencias da sua primeira educação.

Excellente observador, gostava muito de viajar, e o colorido das suas descripçóes era tão vigoroso como o dos seus quadros. Christino tinha a palavra facil e o gesto animado: a sua mão branca e longa — mão de artista, habituada a manejar o pincel — seguia e acompanhava admiravelmente a narrativa, accentuando o desenho dos typos, e os episodios e as scenas, ora dramaticas, ora comicas, que o artista ia narrando.

A cada nova excursão do pintor reanimava-se no espirito dos seus amigos a esperança de que ella lhe inspirasse algum grande quadro. Em 1867 visitou a Exposição universal de Paris, recebendo para esse fim do governo uni pequeno subsidio — 180$000 réis. 

O quadro que ali expoz foi muito apreciado, e o então celebre pintor Yvon, elogiando muito as suas qualidades de colorista, incitou-o calorosamente a proseguir no culto da arte, em que devia vir a ocupar um logar distinctissimo; porém nem as palavras d'animação do artista francez, nem as que depois ouviu da bocca dos hespanhoes, de Palmaroli, de Madrazo, Gisbert, quando enviou a Madrid, em 1871, a "Cruz alta de Cintra" e a "Fonte das Lagrimas", — que lhe valeram ser condecorado pelo governo do rei Amadeu, sendo a "Fonte das Lagrimas" reproduzida em gravura pela "Illustração hespanhola" — tiveram força para suspender a decadencia, e reascender no seu animo o fogo sagrado que o illuminava outrora, quando compunha e pintava os Cinco artistas.

Ó mocidade! As flores delicadas da imaginação, que ornam os phantasticos jardins com que sonha e se inebria toda a alma de verdadeiro artista — pintor ou poeta — esse tapete variegado de infinitos matizes, que parece, visto de longe, ser a estrada da vida; as visões graciosas, que ora surgem, ora desapparecem n'um horisonte ideal; as acclamações, as glorias e as apotheoses, com que a húmanidade corôa o genio, tudo isso murcha, desvanece-se, esvae-se, e transforma-se quasi sempre com o tempo, e não é raro que as flores se tornem em espinhos e as apotheoses em martyrio!

João Cristino da Silva.
Imagem: Wikipédia

Factos para outros talvez insignificantes, mas a que a excessiva impressionalidade de Christino deu uma importancia extraordinaria, a tal ponto o irritaram, que se tornou necessario recolhei-o ao hospital, d'onde sahiu, passado pouco tempo, completamente restabelecido, e coisa notavel para nós, profanos na sciencia medica — conservava na memora, e contava minuciosamente, tudo o que passára e soffera nesse perlado tristissimo da sua vida!

"Quando eu era Christo" —  dizia elle então, no principiar alguma d'essas narrativas, e seguia ninando com a antiga fuencia, descrevendo, muitas vezes em estylo faceto, um ou outro episodio da terrivel excursão, que fizera a esse reino da loucura, de que voltou apparentemente intacto, mas trazendo realmente no fundo da alma a terrivel nostalgia das lobregas regiões, para onde em breve e infelizmente havia de voltar.

Retrato de João Christino da Silva por D. Netto .
Imagem: O Occidente N.º 303, 21 de maio de 1887

Ferido novamente na cabeça e no coração João Christino falleceu, na força da vida, aos 72 de maio de 1877. Nascera a 24 de julho de 1829, e não tinha ainda, portanto, completado 45 annos. (2)


(1) O Occidente N.º 303, 21 de maio de 1887
(2) O Occidente N.º 304, 1 de junho de 1887

museu virtual ulisboa:
ficha de autor
coleção de gravura

Artigos relacionados:
Cinco artistas em Cintra
Alfeite visto da Piedade em 1850

Leitura relacionada:
Maria de Aires Silveira, João Cristino da Silva (1829-77), Lisboa, IPM - Museu do Chiado, 2000
Helena Carvalhão Buescu, João Cristino da Silva e o tema da paisagem na literatura portuguesa...

Mais informação:
João Cristino Silva (desenhos)

domingo, 9 de julho de 2017

O naufrágio do San Pedro de Alcántara

Ás 10 e meia da noite de 2 de Fevereiro [de 1786], o navio de guerra espanhol de 64 canhões San Pedro de Alcantara bate contra as rochas da península da Papoa, em Peniche: 128 mortos.

Naufragos llegando a la costa, Jean-Baptiste Pillement.
Imagem: Museo del Prado

Entre as vítimas encontram-se 17 índios, prisioneiros políticos, homens, mulheres e crianças ligados á rebelião de Tupac Amaru. Entre os presos sobreviventes encontra-se Fernando Tupac Amaru. O rapaz, subitamente livre após ter escapado á morte no naufrágio, acaba por entregar-se ás autoridades. É enviado para Espanha onde morrerá anos mais tarde.

O naufrágio do San Pedro de Alcântara [junto a Peniche], Jean Pillement, 1786.
Imagem: DGPC

Nos meses seguintes Peniche transforma-se num estaleiro submarino internacional, com a participação de cerca de 40 mergulhadores de toda a Europa, vindos para salvar a carga de metal precioso perdida no naufrágio. O salvamento‚ um sucesso técnico divulgado mês após mês pelas gazetas da Europa.

Salvamento do San Pedro de Alcântara, Jean Pillement, 1786.
Imagem: Revista da Armada, maio de 2013

No fundo do mar, segundo julgamos, não resta virtualmente nada do navio de guerra de 64 canhões construído na ilha de Cuba em madeira de caoba, uma essência tropical reputada, por um construtor naval britânico ao serviço da armada de Sua Majestade Católica, o rei de Espanha. 

A Papôa (Peniche), João Vaz, c. 1888.
Imagem: MatrizNet

No mês de Junho de 1786, os mergulhadores conseguem inclusivamente levantar o próprio fundo da querena que rebocam até á praia de Peniche de Cima onde o grande esqueleto de madeira acaba então por ser desmontado para recuperação de todo o tesouro embarcado no Perú. (1)

Peniche, vista norte da Papoa.
Imagem: Wikimedia


(1) Incas em Peniche

Leitura adicional:
O Tejo de Jean-Baptiste Pillement
Navío San Pedro Alcántara

Mais informação; Revista da Armada, maio de 2013

quinta-feira, 6 de julho de 2017

O Grémio Artístico (9.ª exposição, 1899)

A exposição d'este anno não foi tão numerosa em obras d'arte, comparada com as dos annos anteriores, e ainda que não se possa considerar isenta de exhibiçóes que melhor fora não figurassem n'aqulle certamen, apresentou comtudo quadros de valor, que mostram bem que os seus actores não se teem deixado adormecer sob os louros colhidos, e vão antes progredindo.

D. Eugenia Relvas e seus filhos, José Malhoa, 1899.
Imagem: Casa dos Patudos

José Malhoa

Nestas circumstancias se encontra o Sr. Malhoa que, sem concorrer com a abundancia de obras de outros annos, apresentou o retrato da ex.ma Sr.ª "D. Eugenia Relvas e seus filhos", magistralmente pintado, e mais dois quadros "As papas"

As papas, José Malhoa, 1898.
Imagem: Provocando

e "No forno" que são duas télas preciosas, a ultima de um collorido vivissimo mas sem crueza e antes harmonioso e alegre.

No forno, José Malhoa, 1897.
Imagem: A pintura de Malhoa, por Ramalho Ortigão, Serões n.° 10, 1906

Luciano Freire

O quadro do sr. Luciano Freire "Perfume dos Campos" é uma phantasia que nos dá a suavidade do campo em contraste com a vida torbolenta da cidade. Do calice do lyrio da montanha se envolta envolta no perfume, uma figura vaporosa de mulher. 

Perfume dos campos, Luciano Freire, 1899.
Imagem: MNAC

Lá em baixo e distante está a cidade com os seus palacios e fabricas com altas chaminés, donde saem rolos de fumo que se acomulam no ar envolvendo figuras como cadaveres em confuso torbilhão de uma lucta desesperada. E uma bella alegoria. 

Veloso Salgado

O sr. Salgado expôz um bello retrado do Sr. Dr. Lobo Alves e mais duas cabeças de estudo, sendo uma de um rapazinho, que dominnou "Flôr do mar", muito apreciavel.

Flor do mar (tema recorrente), Veloso Salgado, versões de 1899 e 1929.
Imagens:  Occidente N.º 732, 30 de abril de 1899 e ComJeitoeArte

António Ramalho

Um quadro "Arredores de Evora" do sr. Ramalho. sustenta bem a reputação de paizagista do seu auctor, o mesmo não diremos dos seus quadros "Apanha da azeitona" e "Os burros do sr. Doutor" que são menos cuidados e feitos, evidentemente, com precipitação.

Os burros do sr. Doutor, António Ramalho, 1899.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Carlos Reis

Uma paizagem do sr. Carlos Reis, "Dezembro", e um pedaço de tela, bem pintado e que dá perfeitamente a impressão do inverno e do frio; tem largueza e ar.

Ernesto Condeixa

Tambem figurou n'esta exposição o quadro do sr. Condeixa "Recepção feita pelo Samorim de Calicut a Vasco da Gama", feito para o concurso aberto pela Sociedade de Geographia, por occasião do Centenario da India, e que é um trabalho de grande merecimento, que representa muito estudo, masq ue se recente, talvez, do pouco tempo que o auctor teve para o executar.

O Sr. Condeixa expõe ainda mais seis quadros de paizagens, alguns felizes e bem estudados que não desmerecem dos creditos d'este artista.

João Vaz

O Cabo Tormentorio e uma grande tela do sr. Vaz, reputado pintor de marinhas.

A caravella vae correndo por sobre o mar revolto, sob um ceu azul onde pairam figuras aladas de anjos, vaporosos, guias do grande navegador e que aplacam as tormentas do Cabo que se esboça no horisonte. É este quadro, como se vê, uma allegoria.

Mais sete quadros de marinhas completam a exposição d'este artista, e em todas elles ha luz e ar, qualidades que distidguem as telas do sr. Vaz.

João Dantas

Em marinhas expõe tambern o sr. Dantas um bello quadro "Batalha Naval de Ormuz". 

Batalha naval de Ormuz [ou do Golfo Pérsico] em 1625, João Dantas.
 Imagem: Portal da Marinha

É merecedor de todo o elogio o sr. Dantas pela serie de quadros historicos que tem feito da epopea maritima portugueza, de que nenhum outro artista se tem occupado apesar de não faltarem assumptos de gloriosa recordação.

Não deixaremos de notar um quadro do sr. [José de] Almeida e Silva, de Vizeu, "Depois da refeição" pintura bem acabada, representando uni trabalhador que depois da sua parca refeição, de que ainda se voem restos sobre a mesa, acende o seu cigarro. O effeito do phosphoro aceso que illurnina parte do rosto da figura é de uma perfeita illusão, como raras vezes temos observado em pintura.

É tambem de notar uma paisagem do sr. Galhardo, assim como "O argueiro" da ex.ma sr.ª D. Sara de Vasconcellos Gonçalves, representando duas creanças do campo, em que uma ilidias esta soprando o argueiro do olho da outra. E bem observado e de boa pintura.

Do sr. Jorge Collaço, "Uma esquina" que representa um bom typo de moço de fretes, bem observado.

Outros quadros se viam ainda pelas salas da exposição, dignos de apreço, como os do sr. Gyrão, "A mãe", uma galinha no choco; "Carro de bois" da ex.ma sr.ª D. Emilia Lopes; "Noche buena" de Mademoiselle Benard; "A mouca dos Novellos" do sr. José de Brito; "Manhã de S. João" da ex.ma sr.ª D. Adelaide Fernandes; "Na fonte" da ex.ma sr.ª D. Elisa Lopes; "De volta a casa", da ex.ma Sr.ª D. Henriqueta Lopes; do sr. Torquato Pinheiro, um bello retrato de sua mãe e uma vista do Mosteiro de Leça do Bailio; do sr. Henrique Pinto, "As formigas no mel"; da ex.ma sr.ª D. Maria Simões, "Jogando as cristas" e "Perús"; uns estudos da ex.ma sr.ª D. Maria Trigoso, etc. 

As formigas no mel, Manuel Henrique Pinto, c. 1899.
Imagem: Provocando

Em aguarellas viam-se as do sr. Alfredo Guedes; Ribeiro Arthur, Dockery e Roldan, dignas de menção.

Em esculptura apenas se via na exposição um busto em gesso, estudo do sr. Moita e um esboço para monumento a Mousinho d'Albuquerque do sr. Queiroz Ribeiro.

Em architectura, projectos do sr. Eduardo Alves para uma capela funeraria e do sr. Antonio Couto um amphitheatro de Historia Natural.



A pastel notaremos "A mulher com os gatos" do sr. José de Brito.

Clique para abrir
Fialho de Almeida À esquina (diário de um vagabundo),
Coimbra, F. França Amado, 1903.

Se a ultima exposição não marcou um progresso notavel na arte de pintura, e se a ella não concorreram todos os artistas, como seria para desejar, não se pode considerar desanimadora. Antes  é para louvar como o Gremio Artistico vae insistindo no seu proposito de levantar a arte portuguesa. (1)

Nona exposição do Grémio Artístico, O Occidente N.º 732, 30 de abril de 1899

Encerrou-se no dia 25 do corrente a nona exposição do Gremio Artistico com a assistencia de Suas Magestades El-rei D. Carlos e Rainha a Senhora D. Amelia, pelo que teve esta cerimonia eivada significação, pois suas Magestades honraram sempre esta exposição não só com o concurso de suas obras, mas com a sua presença a estes actos solemnes.

O levantar de uma armação do atum (Algarve), D. Carlos de Bragança, 1899.
Imagem: Hemeroteca Digital

De facto entre as obras expostas figurava, sem duvida, em primeiro lugar, um desenho a pastel, "O levantar de uma armação do atum", no Algarve, do Senhor D. Carlos. (2)


(1) O Occidente N.º 732, 30 de abril de 1899
(2) Idem

Leitura adicional:
Branco e Negro, 26 de março de 1899
Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (III), 1903

Informação relacionada:
Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra
A pintura de Malhoa, por Ramalho Ortigão, Serões n.° 10, 1906

Temas relacionados: Pintura, Grupo do Leão

Google search: MNAC, Matriz.net

segunda-feira, 3 de julho de 2017

O Grémio Artístico (8.ª exposição, 1898)

exposição extraordinária comemorativa do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia

Na exposição do Gremio Artistico figura agora este quadro. Uma obra prima, cheia do maior sentimento, amorosamente trabalhada, executada com um esmero, concluida com uma perfeição que só os grandes artistas, e não sempre, são capazes de attingir.

A volta dos barcos, Sousa Pinto, 1891.
Imagem: Douta melancolia

Um grupo encantador de tres personagens, que todos conhecemos, alguma vez havemos encontrado á beira mar: a velha enrugada pelo sol, pelo ar marinho, por muitas lagrimas choradas; O pequeno, de mão na algibeira, como um homem que ha de ser um dia, forte, lindo nos seus traços de criança reveladores; a pequenina, a mais bella do grupo, sardenta, ligeiramente albina, com os cílios muito claros, uma pennugem ruiva pelas faces, cor de sol.

E todos olham para o mesmo ponto, muito longe, indicado pelo dedo da pequena. No extremo horisonte deve apontar a vela, e todos olham. A velha espera pelo filho, as crianças pelo pae. É um drama de todos os dias por essas praias todas. Mas, porque é vulgar, não deixa de ser sentidissimo. Os olhos d'artista que o viram penetraram o fundo d'elle. É assim que deve vér-se e tão poucos sabem fazel-o!

O quadro de Sousa Pinto é dos mais perfeitos que conhecemos na arte portugueza. Esteve exposto no "Salon", de 1891 e muito ajudou a tornar conhecido o nome de Sousa Pinto, hoje tão glorioso em Portugal como lá fóra. (1)

Para commemorar o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, realisou a benemerita sociedade Gremio Artistico uma exposição retrospectiva e contemporanea, logrando esta sua celebração um lisongeiro exito, pelo muito apreço que tem merecido de nacionaes e estrangeiros e pelo elevado numero de trabalhos que conseguiu reunir nas seis salas que occupa a exposição. 

As festas centenarias tiveram, pois, n'este numero do programma um brilhante sucesso que gostosamente registamos nas nossas paginas, destacando de entre os muitos e valiosos trabalhos expostos dois bellos quadros, que reproduzimos nas gravuras de pag. 116 e 117.


O quadro "D. João II ante o corpo inanimado de seu filho D. Affonso", figurou com justa razão n'este importante certamen, não só porque é uma obra de grande valor como tambem o assumpto se parallelisa com o descobrimento do caminho maritimo para a India, mercê do principal personagem, esse illustre soberano que a historia appellidou de "Perfeito" e que tão infeliz foi nos seus anhelos mais queridos — a morte desastrosa do filho herdeiro e a realisação do grande feito de Vasco da Gama, e já por elle tão sonhado. 

D. João II ante o corpo inanimado de seu filho D. Affonso, Ernesto Condeixa, c. 1897.
Imagem: O Occidente N.º 698, 20 de maio de 1898

O notavel quadro é, como se sabe, original de um dos nossos artistas mais conscienciosos sr. Antonio Condeixa e pertence á Academia de Bellas-Artes, que o guarda com bem justificado apreço.



O quadro, que representa a celebre batalha do cabo Matapan, dada pelos venezianos e portuguezes contra os turcos, no seculo XVIII, pertencendo declaradamente a honra de alcançar-se a victoria á valentia dos ultimos, é um quadro de assumpto muito proprio a suscitar agora, pois nos apresenta uma das nossas mais bellas glorias navaes.

A batalha do Cabo Matapan, João Dantas, c. 1892.
Imagem: Museu de Marinha

O sr. João Dantas, o auctor laureado d'este quadro, tem n'elle uma das suas melhores marinhas, não só pelo valor artístico, mas muito especialmente pelo grande estudo que revela até no mais insignificante pormenor.

No tempo de D. João V, o apresto dos navios, que tão notavel papel representaram n'esse combate, constituiu um verdadeiro esforço e dá perfeita ideia dos tremendos gastos que se fizeram, não porque fosse fartamente equipada, mas porque para o seu armamento foi necessario empregar cabedaes que o rei destinava a uma viagem ao extrangeiro e de que foi forçado a desistir pela falta de dinheiro, quando tanto ouro vinha do Brazil. 

Nenhum historiador até hoje soube vêr no apresto destes navios a razão da desistencia de tão fallada viagem, que el-rei desejava ardentemente. chegando a affirmar alguns que á influencia da rainha e á fuga talvez combinada de seu cunhado D. Manoel, se deveu tão singular opposição a um desejo do monarcha magnanimo.

São documentos coevos, que tivemos ensejo de vêr, que nos deram a chave de tão interessante questão, e bem se comprehende que D. João V não poderia deixar de soccorrer o papa, quando n'essa viagem tencionava hospedar-se em Roma, e d'esta collisão resultou o soccorro dado, em que a nossa armada promoveu a brilhante victoria do Cabo Matapan. 

Seria ocioso querer alludir a muitos outros quadros notaveis que se encontram na actual exposição. O Catalogo, distinctamente elaborado, dá perfeita ideia do seu numero e constitue lambem um precioso documento que ficará testemunhando a importancia do certamen. (2)


Na bella exposição d'arte que o Gremio Artistico realisou este anno nas salas da Academia de Bellas artes de Lisboa, commemorando o centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, figura a magnifica esculptura denominada a Infancia do Artista, obra genial de Soares dos Reis, d'esse talento privilegiado, que tãocedo se acolheu á paz do tumulo, e que n'aquella esculptura revelou o artista, auctor de tantas obras-primas, que o seu cinzel foi produzindo e enriquecendo a arte portugueza.

A minha infância [A infância do artista], Soares dos Reis.
Imagem: Casa dos Patudos

A "Infancia do Artista", foi, por assim dizer, a primeira obra com que Soares dos Reis se apresentou em publico, e logo na exposição de Paris de 1878, onde a apresentou, mereceu uma mensão honrosa, premio certamente inferior ao merito da obra, mas importante dado n'um certamen onde concorria a grande arte de todos os paizes civilisados.

A minha infância [A infância do artista], Soares dos Reis.
Imagem: António Arroyo, Soares dos Reis e Teixeira Lopes...

Esta bella obra d'arte, do malogrado artista, pertence á Ex.ª Duqueza de Palmella, umaa artista tambem, cujas obras teem sido admiradas em exposições nacionaes e extrangeiras. (3)

Já dissemos em artigos anteriores que a exposição d'Arte que o Gremio Artístico realisou este anno, e que constituiu uni dos numeros mais brilhantes commemorativos do centenario, é das mais numerosas em obras e das mais completas que esta util e importante aggremiação tem levado a effeito.

Uma exposição d'arte retrospectiva e arte contemporanea o que permittiu reunir um maior numero de obras, tanto de pintura como de esculptura, das mais notaveis de artistas portuguezes. Nos quadros que reproduzimos n'este numero, encontram-se parte que já foram devidamente apreciados em exposições anteriores, e alguns que pela primeira vez apparecem em publico.

Assim encontramos quadros que recordam artistas queridos como o do "Tintoreto, retratando sua filha depois de morta", preciosa tela do faltecido professor Lupi, que deixou na arte portugueza uma falta difficil de preencher;

Tintoretto, retratando sua filha depois de morta, Miguel Ângelo Lupi.
Imagem: Claudia Feio

"O descanço do modelo", bello quadro de Henrique Pousão, outro artista que a morte arrebatou em pleno vigor dn vida, quando o seu talento mais promettia, e Christino da Silva, Metrass, Manuel Maria Bordallo Pinheiro, Soares dos Reis, Victor Bastos, Fonseca, Annunciação, Silva Porto, que de todos ali se encontram obras, memorias preciosas do muito que fizeram.

O descanso do Modelo [Esperando o sucesso], Henrique Pousão, 1882.
Imagem: Wikipédia

A exposição de quadros novos é das mais animadoras tanto de artistas, que todos concorreram, como de amadores, cujo numero se vae elevando de anno para anno, sendo para notar os progressos que tem feito.

Entre estes destaca-se o quadro "Soror Marianna" da sr.ª D. Emilia Adelaide dos Santos Braga, um dos melhores que esta senhora tem apresentado em publico,

Soror Mariana, Emilia Santos Braga.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

e o "Quien supiera escribir!" de M.elle Zoé Wauthelet, inspirado n'uma poesia de Campoamor, bem conhecida.

Quien supiera escribir, Zoé Wauthelet.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

O retrato de S. M. a Rainha Senhora D. Amelia, avulta na exposição como uma das melhores telas de Salgado.

S. M. a Rainha Senhora D. Amelia, Veloso Salgado.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

Columbano apresenta uma bella allegoria a Vasco da Gama inspirada nos Lusiadas canto X:

Vasco da Gama (allegoria), Columbano.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

Eis aqui as nove partes do Oriente,
Que vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo a porra no vasto mar potente,
Que com tão forte peito navegais.


"Martyr do fanatismo", quadro do sr. José de Brito, da escola do Porto, é um dos quadros que mais impressiona, pelo assumpto e modo porque está realisado.

Mártir do fanatismo, José de Brito, c. 1895.
Imagem: MNAC

Antonio Ramalho expõe o quadro "O lanterneiro" [v. Grupo do Leão (3.ª exposição, 1883)], prova brilhante dos seus estudos em Paris e que foi justamente apreciado então pela critica.

Chez Mon Voisin,ou O Lanterneiro, António Ramalho, 1883
Imagem: Pinterest

"Andromeda" de [António Tomás da] Conceição Silva é um bello nú, desenhado e pintado com extrema correcção.

Andrómeda, Conceição Silva.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

José Malhôa tem na exposição um bom numero de quadros em que se contam alguns retratos felizes e os "Oleiros" que, apesar de já ser conhecido da ultima exposição, figura com vantagem entre os outros quadros que expõe este anno.

Outras obras
cf. Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra


"João Semana"; "Os oleiros" [a segunda versão quadro, exposta no Salon de Paris de 1900 e perdida no naufrágio do Saint-André]; "As papas"; "A convalescente"; "As Padeiras" [ou "Os Padeiros", ou "Dia de Mercado" ou "Mercado em Figueiró"];

As Padeiras [Os Padeiros, Dia de Mercado, Mercado em Figueiró], José Malhoa, 1898.
Imagem: Wikimedia, paintings by José Malhoa

"Gozando os rendimentos";

Gozando os rendimentos, José Malhoa, 1898.
Imagem: Wikimedia, paintings by José Malhoa

"Volta do trabalho"; "A picota"; "Cabanas dos pescadores"; "Rua de Gil Avô" (Tomar); "Retrato de Madame L"; "Manuel Quaresma de Oliveira"; "Sr. Conde de Proença-a-Velha".

Sr. Conde de Proença-a-Velha, José Malhoa, 1898.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

"Á espera do pintor", uma telasinha muito apreciavel de Manuel de Macedo, e que faz parte da galeria da Ajuda.

Á espera do pintor, Manuel de Macedo.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

"Rivaes" é o titulo de um quadro de Gyrão, representando, com toda a verdade, dois gallos que se encontram.

Rivaes [Os Rivais, O rival], Moura Gyrão, 1898.
Imagem: MutualArt

As gravuras que publicamos são dos quadros a que nos referimos; successivamente iremos apresentando aos nossos leitores mais algumas reproducções das obras d'arte que figuram n'esta exposição. (4)

É o quadro do mestre, um dos mais bellos que se destaca na exposição; é tombem um dos ultimos que elle pintou, talvez quando a morte já o andava requestando para o seu leito de somno eterno.

Conduzindo o rebanho (Arredores de Lisboa), Silva Porto, 1893.
Imagem: MNSR

Com que saudade não levantamos os olhos paro aquelle quadro, pastoril, simples, como a alma do artista; com que magua nos lembramos que Silva Porto, o pintor que melhor tem comprehendido e transportado para a tela, a paysagem do seu paiz, já não virá enriquecer com novos quadros, producto do seu talento, as exposições d'arte onde elle tanto brilhou.

Cedo subiram de valor os quadros d'este artista, porque cedo cahiu, da sua mão inane, a palheta que os produzia.

"Conduzindo o rebanho" [v. O Grémio Artístico (3.ª exposição, 1893)] é hoje uma tela preciosa, e figurando na Exposição d'Arte com que o Gremio Artistico celebrou o Centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, honrou bizarramente a grande festa nacional. (5)


(1) O Occidente N.º 699, 30 de maio de 1898
(2) O Occidente N.º 698, 20 de maio de 1898
(3) O Occidente N.º 701, 20 de junho de 1898
(4) O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898
(5) O Occidente N.º 703, 10 de julho de 1898

Temas relacionados: Pintura, Grupo do Leão

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