João Christino da Silva — o Christino — como todos lhe chamavam, foi uma das figuras mais originaes da sociedade lisbonense. Alto e esbelto, a sua bella cabeca de perfil judaico — ornada com urna basta cabelleira negra, annelada e romantica, e meio occulta sob as abas d'um chapou á Rubens, garbosamente inclinado sobre a orelha — apparecia e destacava-se d'entre a multidão em todas as reuniões publicas, nas exposições, nos theatros, nos circos, porque este artista foi, de todos os que tenho conhecido, o mais mundano, e portanto o mais popular.
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João Cristino Silva, auto-retrato (detalhe).
Imagem: Arcadja |
Escondia-se Annunciação e vivia com as suas pinturas no seu atelier da Academia, e ninguem, vendo-o ao lado de Christino, diria que eram irmãos na arte; o escultor Assis Rodrigues, com a sua formosa e fina cabeça toda branca, parecia um ecclesiastico; Metrass e Victor Bastos eram dois elegantes, e encontravam-se todas as noites na roda do Marrare do Chiado; Lupi com o seu porte elevado, serio e demorado nos movimentos e na expressão, tinha o aspecto d'um senador, d'um alto funccionario. Christino, só, no meio de todos os seus collegas, parecia ser o unico artista, porque só elle tinha o exterior da sua profissão.
Talento imaginoso, enthusiasta, expontaneo, facil e brilhante, poderia legar-nos obras notabilissimas, se não obstasse a isso, por um lado a mobilidade e a extrema sensibilidade do seu espirito, por outro as circumstancias sociaes do seu tempo, pouco propicias ao desenvolvimento das suas faculdades artisticas; por isso, e apesar da sua notavel estreia, aconteceu-lhe como n muitos outros, para quem o sol da arte, cheio de promessas e de esperanças na sua aurora, se enturva no meio da carreira, e desce nublado e triste ao occidente, deixando-nos só saudades e desillusões.
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João Cristino Silva, auto-retrato.
Imagem: Arcadja |
Discipulo da Academia de Lisboa, como todos os nossos artistas d'então e de hoje, entre o seu espirito irrequieto e os preceitos tradicionaes do ensino dos velhos académicos, seus professores, travou-se a lucta fatal dos periodos de transição, e o fogoso artista sahiu da Academia, e julgando achar na formosa arte de Benevenuto Cellini mais largos horisontes para o seu talento, dedicou-se á ourivesaria; porém, se a natureza o fizera artista, a arte nunca o fez rico, e não obstante a sua privança com os mais preciosos metaes, Christino, durante os dois annos que lavrou e poliu o oiro e a prata, convenceu-se de que por aquelle caminho náo poderia nunca chegar nem á riqueza, nem á gloria, e elle ao menos aspirava a um d'esses escopos do talento e do genio.
Dissera o turbulento artista adeus á Academia e pozera de lado a paleta e os pinceis, mas os antigos companheiros de estudo, esses conservara-os elle, e era na loja que Christino tinha de sociedade com o ourives Moutinho, que elles se reuniam, e vinham continuar as suas palestras, e discussões, iniciadas nas aulas e galerias do convento de S. Francisco. O fogo ainda lavrava sob as cinzas, e o amor do artista pela pintura ia em breve renascer n'elle mais vigoroso e ardente. Ao contacto e sob a influencia d'esse convivio, que dia a dia lhe avivava as recordações dos seus queridos estudos, e os imaginados triumphos que a sua imaginação phantasiava, eil-o de novo voltando ao gremio da arte.
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João Cristino Silva, auto-retrato.
Imagem: MNAC |
Dava o exemplo e já a lição a todos esses artistas, ainda no visor da mocidade, o que havia de vir a ser o primeiro entre elles — Annunciação. Christino estabeleceu o seu atelier n'uma mansarda, d'uma rua da velha Alfama, proximo da casa paterna. Ahi pintou elle os seus primeiros quadros, e ahi foi conhecido e protegido pelo distincto amador o sr. Moser, que n'aquelles tempos difliceis "hard times" era um dos rarissimos Mecenas dos que forcejavam por abrir cantinho no mundo da arte.
A paizagem e os animaes, foram os generos cultivados de preferencia pelo joven artista, que nos conselhos e nos louvores dos seus amigos encontrava o incitamento para maiores e mais arrojados commetimentos. Assim decorreram alguns annos, sempre trabalhando e progredindo, até que na exposição da Academia, em 1855, Christino apresentou o seu grande quadro "Os cinco artistas em Cintra".
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Cinco artistas em Sintra, João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC |
O publico que concorreu a visitar essa exposição — que marcou epoca na historia da arte portugueza — a imprensa que d'ella se occupou largamente, e os amadores que se interessavam pelos progressos e pelos triumphos dos jovens artistas, todos foram unanimes em dar um dos primeiros logares a João Christino, e, como se não devesse faltar nada para que o seu triumpho fosse completo, D. Fernando "o rei artista" depois de ver o quadro, quiz conhecer o seu auctor.
Ouvimos a Christino a narração dessa entrevista, a que elle foi com o espirito cheio a um tempo de turbação e de contentamento. É que a distinção não podia ser maior: apenas entrado na carreira tocara a meta das suas mais ambiciosas aspirações, e sentia-se já na estrada da gloria e da fortuna. D. Fernando, novo ainda, acolheu-o com a maior affabilidade, elogiou-o, e para que as suas palavras d'encarecimento tivessem todo o valor e influencia no animo do artista, comprou-lhe o quadro, que ainda tivemos occasião de ver nas magnificas salas do riquissimo museu do fallecido rei.
Feliz estreia e feliz edade Christino tinha apenas 25 annos! (1)
Em 1855, a França convidou as sciencias, as industrias e as artes de todo o mundo para um grande congresso, e os Cinco artistas, depois de figurarem no anno antecedente na exposição da Academia de Lisboa, foram enviados á grande Exposição universal de Paris com outros trabalhos de artistas portuguezes.
"N.° 1676 — João Christino da Silva — Cinco artistas cm Cintra — O colorido é formoso com quanto por partes avermelhado. Pela desenvoltura vê-se logo que são artistas as figuras do quadro. Prova-se á primeira vista boa atitude e cunho do bello. Entretanto quereriamos em menos symetria o acampamento e menos apuro no vestuario, porque, sem otlender susceptibilidades, julgamos poder afirmar que em Portugal, como em qualquer outro paiz, a negligencia é um dos caracteres distintivos do artista. Mas nem por isso deixaremos de concluir que a obra do sr. Christino da Silva é uma das mais notaveis que foi apresentada no grande concurso."
Citamos a critica do jornal francez, não porque a julguemos primorosa, mas porque prova que n'aquelle enorme certamen a obra de Christino não passou despercebida.
O que parece ter destoado mais ao critico na composição, é a symetria do que elle chama acampamento e o apuro do vestuario dos cinco artistas.
Emquanto á primeira observação discordamos, e achamos boa a composição do grupo principal, em que figuram Annunciação fazendo um estudo do natural, e por detraz d'elle Metrass, em pé, desenhando n'um album, rodeados por uma tamilia saloia, que a curiosidade natural ali chamou, e que contempla a obra, e segue attentamente o pincel do artista, que lhe vae debuxando a paizagem tão sua conhecida.
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Cinco artistas em Sintra (detalhe: Anunciação, Metrass e familia saloia), João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC |
Seria talvez este grupo suficiente para um quadro, mas as tres figuras de Victor Bastos, Christino e José Rodrigues, que estão á direita, n'outro plano mais afastado, não prejudicam, antes completam, a composição. E pelo que respeita á excessivo elegancia dos trajes, todos nós que conhecemos os individuos ali retratados, sabemos que nenhum d'clles teve jamais o aspecto phantastico e funambulesco d'alguns "rapins d'atelier" do "Quartier latin", muito cabelludos e pouco penteados.
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Cinco artistas em Sintra (detalhe: Victor Bastos, Christino e José Rodrigues), João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC |
Annunciação, sem pretenções a dandysmos, que não estavam em harmonia com o seu caracter e a modestia dos seus recursos, foi sempre correctissimo na fôrma de se apresentar. Metrass, relativamente rico, trajava com apurado gosto e era o que então se chamava um janota, não lhe ficava atraz Victor Bastos. De José Rodrigues pôde-se dizer o mesmo que afirmámos de Annunciação.
E Christino, de todos os cinco o mais phantasioso e de mais airada vida, apesar dos seus chapeus espectaculosos e do grande chale-manta, que elle traçava um pouco theatralmente, parecia uma d'essas figuras da Renascença, que vemos nos grandes quadros antigos, e nunca se confundia com os bohemios cheios de côr por dentro e por cujos retratos tanto abundam desde 1830 nos romances francezes.
Neste estudo, improvisado para acompanhar o excellente retrato gravado pelo sr. D. Netto, e a copia do quadro dos "Cinco artistas em Cintra", não podemos seguir passo a passo a carreira do nótavel pintor, nem analysar e discutir os meritos e defeitos das suas obras, algumas das quaes, como a "Primeira impressão da arte", a "Estalagem", a "Estrada da Povoa", compradas tambem pelo fallecido rei D. Fernando, faziam parte da Galeria do Palacio das Necessidades, mas o que podemos afirmar é que o futuro não correspondeu ás brilhantes promessas dos primeiros annos e que causas internas e externas, que seria longe expor aqui, fizeram com que o artista, chegado a menos de meio da sua carreira, parasse, e preferisse os encantos e attractivos do mundo no estudo e cultura das bellezas mais ideaes e abstractas da Arte.
Estimado por todos os que conheciam as qualidades do seu espirito e do seu caracter, Christino procurava por todos os modos completar a sua educação: lia muito, interessava-se por todas as grandes idéas, discutia com todos, e envolvia-se ás vezes nas mais altas questões artisticas e sociaes, supprindo com a vivacidade e a perspicacia natural as defficiencias da sua primeira educação.
Excellente observador, gostava muito de viajar, e o colorido das suas descripçóes era tão vigoroso como o dos seus quadros. Christino tinha a palavra facil e o gesto animado: a sua mão branca e longa — mão de artista, habituada a manejar o pincel — seguia e acompanhava admiravelmente a narrativa, accentuando o desenho dos typos, e os episodios e as scenas, ora dramaticas, ora comicas, que o artista ia narrando.
A cada nova excursão do pintor reanimava-se no espirito dos seus amigos a esperança de que ella lhe inspirasse algum grande quadro. Em 1867 visitou a Exposição universal de Paris, recebendo para esse fim do governo uni pequeno subsidio — 180$000 réis.
O quadro que ali expoz foi muito apreciado, e o então celebre pintor Yvon, elogiando muito as suas qualidades de colorista, incitou-o calorosamente a proseguir no culto da arte, em que devia vir a ocupar um logar distinctissimo; porém nem as palavras d'animação do artista francez, nem as que depois ouviu da bocca dos hespanhoes, de Palmaroli, de Madrazo, Gisbert, quando enviou a Madrid, em 1871, a "Cruz alta de Cintra" e a "Fonte das Lagrimas", — que lhe valeram ser condecorado pelo governo do rei Amadeu, sendo a "Fonte das Lagrimas" reproduzida em gravura pela "Illustração hespanhola" — tiveram força para suspender a decadencia, e reascender no seu animo o fogo sagrado que o illuminava outrora, quando compunha e pintava os Cinco artistas.
Ó mocidade! As flores delicadas da imaginação, que ornam os phantasticos jardins com que sonha e se inebria toda a alma de verdadeiro artista — pintor ou poeta — esse tapete variegado de infinitos matizes, que parece, visto de longe, ser a estrada da vida; as visões graciosas, que ora surgem, ora desapparecem n'um horisonte ideal; as acclamações, as glorias e as apotheoses, com que a húmanidade corôa o genio, tudo isso murcha, desvanece-se, esvae-se, e transforma-se quasi sempre com o tempo, e não é raro que as flores se tornem em espinhos e as apotheoses em martyrio!
Factos para outros talvez insignificantes, mas a que a excessiva impressionalidade de Christino deu uma importancia extraordinaria, a tal ponto o irritaram, que se tornou necessario recolhei-o ao hospital, d'onde sahiu, passado pouco tempo, completamente restabelecido, e coisa notavel para nós, profanos na sciencia medica — conservava na memora, e contava minuciosamente, tudo o que passára e soffera nesse perlado tristissimo da sua vida!
"Quando eu era Christo" — dizia elle então, no principiar alguma d'essas narrativas, e seguia ninando com a antiga fuencia, descrevendo, muitas vezes em estylo faceto, um ou outro episodio da terrivel excursão, que fizera a esse reino da loucura, de que voltou apparentemente intacto, mas trazendo realmente no fundo da alma a terrivel nostalgia das lobregas regiões, para onde em breve e infelizmente havia de voltar.
Ferido novamente na cabeça e no coração João Christino falleceu, na força da vida, aos 72 de maio de 1877. Nascera a 24 de julho de 1829, e não tinha ainda, portanto, completado 45 annos. (2)
(1)
O Occidente N.º 303, 21 de maio de 1887
(2)
O Occidente N.º 304, 1 de junho de 1887
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João Cristino Silva (desenhos)