segunda-feira, 3 de julho de 2017

O Grémio Artístico (8.ª exposição, 1898)

exposição extraordinária comemorativa do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia

Na exposição do Gremio Artistico figura agora este quadro. Uma obra prima, cheia do maior sentimento, amorosamente trabalhada, executada com um esmero, concluida com uma perfeição que só os grandes artistas, e não sempre, são capazes de attingir.

A volta dos barcos, Sousa Pinto, 1891.
Imagem: Douta melancolia

Um grupo encantador de tres personagens, que todos conhecemos, alguma vez havemos encontrado á beira mar: a velha enrugada pelo sol, pelo ar marinho, por muitas lagrimas choradas; O pequeno, de mão na algibeira, como um homem que ha de ser um dia, forte, lindo nos seus traços de criança reveladores; a pequenina, a mais bella do grupo, sardenta, ligeiramente albina, com os cílios muito claros, uma pennugem ruiva pelas faces, cor de sol.

E todos olham para o mesmo ponto, muito longe, indicado pelo dedo da pequena. No extremo horisonte deve apontar a vela, e todos olham. A velha espera pelo filho, as crianças pelo pae. É um drama de todos os dias por essas praias todas. Mas, porque é vulgar, não deixa de ser sentidissimo. Os olhos d'artista que o viram penetraram o fundo d'elle. É assim que deve vér-se e tão poucos sabem fazel-o!

O quadro de Sousa Pinto é dos mais perfeitos que conhecemos na arte portugueza. Esteve exposto no "Salon", de 1891 e muito ajudou a tornar conhecido o nome de Sousa Pinto, hoje tão glorioso em Portugal como lá fóra. (1)

Para commemorar o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, realisou a benemerita sociedade Gremio Artistico uma exposição retrospectiva e contemporanea, logrando esta sua celebração um lisongeiro exito, pelo muito apreço que tem merecido de nacionaes e estrangeiros e pelo elevado numero de trabalhos que conseguiu reunir nas seis salas que occupa a exposição. 

As festas centenarias tiveram, pois, n'este numero do programma um brilhante sucesso que gostosamente registamos nas nossas paginas, destacando de entre os muitos e valiosos trabalhos expostos dois bellos quadros, que reproduzimos nas gravuras de pag. 116 e 117.


O quadro "D. João II ante o corpo inanimado de seu filho D. Affonso", figurou com justa razão n'este importante certamen, não só porque é uma obra de grande valor como tambem o assumpto se parallelisa com o descobrimento do caminho maritimo para a India, mercê do principal personagem, esse illustre soberano que a historia appellidou de "Perfeito" e que tão infeliz foi nos seus anhelos mais queridos — a morte desastrosa do filho herdeiro e a realisação do grande feito de Vasco da Gama, e já por elle tão sonhado. 

D. João II ante o corpo inanimado de seu filho D. Affonso, Ernesto Condeixa, c. 1897.
Imagem: O Occidente N.º 698, 20 de maio de 1898

O notavel quadro é, como se sabe, original de um dos nossos artistas mais conscienciosos sr. Antonio Condeixa e pertence á Academia de Bellas-Artes, que o guarda com bem justificado apreço.



O quadro, que representa a celebre batalha do cabo Matapan, dada pelos venezianos e portuguezes contra os turcos, no seculo XVIII, pertencendo declaradamente a honra de alcançar-se a victoria á valentia dos ultimos, é um quadro de assumpto muito proprio a suscitar agora, pois nos apresenta uma das nossas mais bellas glorias navaes.

A batalha do Cabo Matapan, João Dantas, c. 1892.
Imagem: Museu de Marinha

O sr. João Dantas, o auctor laureado d'este quadro, tem n'elle uma das suas melhores marinhas, não só pelo valor artístico, mas muito especialmente pelo grande estudo que revela até no mais insignificante pormenor.

No tempo de D. João V, o apresto dos navios, que tão notavel papel representaram n'esse combate, constituiu um verdadeiro esforço e dá perfeita ideia dos tremendos gastos que se fizeram, não porque fosse fartamente equipada, mas porque para o seu armamento foi necessario empregar cabedaes que o rei destinava a uma viagem ao extrangeiro e de que foi forçado a desistir pela falta de dinheiro, quando tanto ouro vinha do Brazil. 

Nenhum historiador até hoje soube vêr no apresto destes navios a razão da desistencia de tão fallada viagem, que el-rei desejava ardentemente. chegando a affirmar alguns que á influencia da rainha e á fuga talvez combinada de seu cunhado D. Manoel, se deveu tão singular opposição a um desejo do monarcha magnanimo.

São documentos coevos, que tivemos ensejo de vêr, que nos deram a chave de tão interessante questão, e bem se comprehende que D. João V não poderia deixar de soccorrer o papa, quando n'essa viagem tencionava hospedar-se em Roma, e d'esta collisão resultou o soccorro dado, em que a nossa armada promoveu a brilhante victoria do Cabo Matapan. 

Seria ocioso querer alludir a muitos outros quadros notaveis que se encontram na actual exposição. O Catalogo, distinctamente elaborado, dá perfeita ideia do seu numero e constitue lambem um precioso documento que ficará testemunhando a importancia do certamen. (2)


Na bella exposição d'arte que o Gremio Artistico realisou este anno nas salas da Academia de Bellas artes de Lisboa, commemorando o centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, figura a magnifica esculptura denominada a Infancia do Artista, obra genial de Soares dos Reis, d'esse talento privilegiado, que tãocedo se acolheu á paz do tumulo, e que n'aquella esculptura revelou o artista, auctor de tantas obras-primas, que o seu cinzel foi produzindo e enriquecendo a arte portugueza.

A minha infância [A infância do artista], Soares dos Reis.
Imagem: Casa dos Patudos

A "Infancia do Artista", foi, por assim dizer, a primeira obra com que Soares dos Reis se apresentou em publico, e logo na exposição de Paris de 1878, onde a apresentou, mereceu uma mensão honrosa, premio certamente inferior ao merito da obra, mas importante dado n'um certamen onde concorria a grande arte de todos os paizes civilisados.

A minha infância [A infância do artista], Soares dos Reis.
Imagem: António Arroyo, Soares dos Reis e Teixeira Lopes...

Esta bella obra d'arte, do malogrado artista, pertence á Ex.ª Duqueza de Palmella, umaa artista tambem, cujas obras teem sido admiradas em exposições nacionaes e extrangeiras. (3)

Já dissemos em artigos anteriores que a exposição d'Arte que o Gremio Artístico realisou este anno, e que constituiu uni dos numeros mais brilhantes commemorativos do centenario, é das mais numerosas em obras e das mais completas que esta util e importante aggremiação tem levado a effeito.

Uma exposição d'arte retrospectiva e arte contemporanea o que permittiu reunir um maior numero de obras, tanto de pintura como de esculptura, das mais notaveis de artistas portuguezes. Nos quadros que reproduzimos n'este numero, encontram-se parte que já foram devidamente apreciados em exposições anteriores, e alguns que pela primeira vez apparecem em publico.

Assim encontramos quadros que recordam artistas queridos como o do "Tintoreto, retratando sua filha depois de morta", preciosa tela do faltecido professor Lupi, que deixou na arte portugueza uma falta difficil de preencher;

Tintoretto, retratando sua filha depois de morta, Miguel Ângelo Lupi.
Imagem: Claudia Feio

"O descanço do modelo", bello quadro de Henrique Pousão, outro artista que a morte arrebatou em pleno vigor dn vida, quando o seu talento mais promettia, e Christino da Silva, Metrass, Manuel Maria Bordallo Pinheiro, Soares dos Reis, Victor Bastos, Fonseca, Annunciação, Silva Porto, que de todos ali se encontram obras, memorias preciosas do muito que fizeram.

O descanso do Modelo [Esperando o sucesso], Henrique Pousão, 1882.
Imagem: Wikipédia

A exposição de quadros novos é das mais animadoras tanto de artistas, que todos concorreram, como de amadores, cujo numero se vae elevando de anno para anno, sendo para notar os progressos que tem feito.

Entre estes destaca-se o quadro "Soror Marianna" da sr.ª D. Emilia Adelaide dos Santos Braga, um dos melhores que esta senhora tem apresentado em publico,

Soror Mariana, Emilia Santos Braga.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

e o "Quien supiera escribir!" de M.elle Zoé Wauthelet, inspirado n'uma poesia de Campoamor, bem conhecida.

Quien supiera escribir, Zoé Wauthelet.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

O retrato de S. M. a Rainha Senhora D. Amelia, avulta na exposição como uma das melhores telas de Salgado.

S. M. a Rainha Senhora D. Amelia, Veloso Salgado.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

Columbano apresenta uma bella allegoria a Vasco da Gama inspirada nos Lusiadas canto X:

Vasco da Gama (allegoria), Columbano.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

Eis aqui as nove partes do Oriente,
Que vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo a porra no vasto mar potente,
Que com tão forte peito navegais.


"Martyr do fanatismo", quadro do sr. José de Brito, da escola do Porto, é um dos quadros que mais impressiona, pelo assumpto e modo porque está realisado.

Mártir do fanatismo, José de Brito, c. 1895.
Imagem: MNAC

Antonio Ramalho expõe o quadro "O lanterneiro" [v. Grupo do Leão (3.ª exposição, 1883)], prova brilhante dos seus estudos em Paris e que foi justamente apreciado então pela critica.

Chez Mon Voisin,ou O Lanterneiro, António Ramalho, 1883
Imagem: Pinterest

"Andromeda" de [António Tomás da] Conceição Silva é um bello nú, desenhado e pintado com extrema correcção.

Andrómeda, Conceição Silva.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

José Malhôa tem na exposição um bom numero de quadros em que se contam alguns retratos felizes e os "Oleiros" que, apesar de já ser conhecido da ultima exposição, figura com vantagem entre os outros quadros que expõe este anno.

Outras obras
cf. Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra


"João Semana"; "Os oleiros" [a segunda versão quadro, exposta no Salon de Paris de 1900 e perdida no naufrágio do Saint-André]; "As papas"; "A convalescente"; "As Padeiras" [ou "Os Padeiros", ou "Dia de Mercado" ou "Mercado em Figueiró"];

As Padeiras [Os Padeiros, Dia de Mercado, Mercado em Figueiró], José Malhoa, 1898.
Imagem: Wikimedia, paintings by José Malhoa

"Gozando os rendimentos";

Gozando os rendimentos, José Malhoa, 1898.
Imagem: Wikimedia, paintings by José Malhoa

"Volta do trabalho"; "A picota"; "Cabanas dos pescadores"; "Rua de Gil Avô" (Tomar); "Retrato de Madame L"; "Manuel Quaresma de Oliveira"; "Sr. Conde de Proença-a-Velha".

Sr. Conde de Proença-a-Velha, José Malhoa, 1898.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

"Á espera do pintor", uma telasinha muito apreciavel de Manuel de Macedo, e que faz parte da galeria da Ajuda.

Á espera do pintor, Manuel de Macedo.
Imagem: O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898

"Rivaes" é o titulo de um quadro de Gyrão, representando, com toda a verdade, dois gallos que se encontram.

Rivaes [Os Rivais, O rival], Moura Gyrão, 1898.
Imagem: MutualArt

As gravuras que publicamos são dos quadros a que nos referimos; successivamente iremos apresentando aos nossos leitores mais algumas reproducções das obras d'arte que figuram n'esta exposição. (4)

É o quadro do mestre, um dos mais bellos que se destaca na exposição; é tombem um dos ultimos que elle pintou, talvez quando a morte já o andava requestando para o seu leito de somno eterno.

Conduzindo o rebanho (Arredores de Lisboa), Silva Porto, 1893.
Imagem: MNSR

Com que saudade não levantamos os olhos paro aquelle quadro, pastoril, simples, como a alma do artista; com que magua nos lembramos que Silva Porto, o pintor que melhor tem comprehendido e transportado para a tela, a paysagem do seu paiz, já não virá enriquecer com novos quadros, producto do seu talento, as exposições d'arte onde elle tanto brilhou.

Cedo subiram de valor os quadros d'este artista, porque cedo cahiu, da sua mão inane, a palheta que os produzia.

"Conduzindo o rebanho" [v. O Grémio Artístico (3.ª exposição, 1893)] é hoje uma tela preciosa, e figurando na Exposição d'Arte com que o Gremio Artistico celebrou o Centenario do descobrimento do caminho maritimo para a India, honrou bizarramente a grande festa nacional. (5)


(1) O Occidente N.º 699, 30 de maio de 1898
(2) O Occidente N.º 698, 20 de maio de 1898
(3) O Occidente N.º 701, 20 de junho de 1898
(4) O Occidente N.º 702, 30 de junho de 1898
(5) O Occidente N.º 703, 10 de julho de 1898

Temas relacionados: Pintura, Grupo do Leão

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