sexta-feira, 24 de março de 2017

Leão d'Ouro (1939) o leilão dos quadros

Muitas e variadas foram as considerações que se fizeram desse leilão sensacional: 
— É espantoso... sempre estamos numa epoca!... 
— ... Mas para automóveis. "football" e cinema não falta o dinheiro... 
— Não! A arte já não interessa... ou

O leilão dos quadros, Diário de Notícias, 26 de fevereiro de 1939.
Imagem: Restos de Colecção

— ... Ah! os quadros não prestam para nada!... 
— Parece impossível, o Estado é que devia comprar aquilo!... 
— Que vergonha... que espectaculo... Já não ha gente de bom gosto!... etc., etc., etc.

Mas afinal que haverá de razoável em tudo isto? Os tempos mudaram, evidentemente. Hoje já não se compram quadros como se compravam ha cinquenta ou vinte anos. Por um lado varios fenomenos que se não podem censurar e que temos de aceitar tais como eles são, contribuíram para isso. Por outro, as necessidades espirituais e o gosto artístico modificaram-se tambem.

Cervejaria Leão, Kurt Pinto, anterior a 1940.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Além de tudo isto o dinheiro é mais preciso para outras coisas. Não ha tantas disponibilidades. Finalmente, os quadros do "Leão" têm mais valor histórico e sentimental do que propriamente artistico, diga-se em abono da verdade. 

E não pode esperar-se do grande publico, ou mesmo das élites intelectuais e financeiras, nestes tempos em que vivemos, actos de abnegação em defesa do prestigio de um movimento de arte ou de uma epoca que já passou e que não interessa.

Cervejaria Leão, Alberto Carlos Lima, c. 1915.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O contrário só poderia esperar-se de exibicionistas e de pedantes.

O coleccionador que deseje adquirir obras dos mestres ali representados sabe que. por menos de metade das quantias lançadas como base de licitação, pode obtê-las, e até de muito melhor qualidade.

Esta verdade é que é preciso dize-la, para pôr a questão no seu devido pé. Se não vejamos: 

Os quadros que foram a leilão ocupam as duas salas do conhecido restaurante da rua Primeiro de Dezembro. No da entrada estão os trabalhos primitivos de 1885, entre os quais se encontram os melhores da colecção;

A cervejaria Leão d'Ouro, inaugurada em 16 de abril de 1885, desenho do natural por João Ribeiro Cristino.
Imagem: Hemeroteca Digital

e na outra, seis trípticos executados vinte anos depois. 

A nova sala do Leão d'Ouro — decorada pelos artistas do Grupo do Leão, Ribeiro Christino, 1905.
Imagem: Hemeroteca Digital

Entre as ultimas pinturas. destacam-se as de Columbano e de Malhôa, respectivamente "Natureza Morta" e "Apoteose da Lagosta".

Apoteose aos frutos, Columbano, 1905.
Imagem: Margarida Elias, Columbano e as Caldas da Rainha

Qualquer delas representa escassa e irregularmente as grandes qualidades dos seus autores. A expressão da pincelada, a qualidade da substancia, os efeitos de côr e luz, que aqueles notavels pintores trabalharam em vigorosos e cintilantes pormenores, diluem-se nas duas composições. de construção fraca, ampliando processos que viviam de escala própria. 

Apoteose da lagosta, José Malhoa, 1905.
Imagem: Nuno Saldanha, José Vital Branco Malhoa

Os restantes trípticos da sala mais recente, são oleografias, cromos amáveis, débeis no desenho, na construção, na modelação, na côr [v. Leão d'Ouro (1905) nova sala]. 

Não trouxeram mensagens, não marcaram posições novas, não firmaram personalidades artísticas: já não interessam a gente de bom gosto. O mais curioso, talvez, "Marinhas", de João Vaz. é fraco, sem plenos, sem consistência na pincelada. 

Os quadros da primeira sala, incomparavelmente mais interessantes do que os outros, estão, de forma geral, abaixo. dos méritos dos seus autores, com certeza por terem sido executados á lufa-lufa, em menos de três semanas.

As "Rosas e begónias", de Rodrigues Vieira, têm realmente o espirito de decorações daquela epoca, mas não se impõem fora dela.

As obras de Vaz e de Cristino "Vista do Tejo" e "Ponte do Fidalgo" estão num plano semelhante ao que ocupam as de 1905.

Bordalo, nos seus "Azulejos do Leão", limita-se a desenhar a óleo. "au camaieu", sem mais interesse uma daquelas irónicas e passageiras paginas de humorismo que profusamente publicou nas suas gazetas ilustradas.

Azulejos fingidos, Raphael Bordallo Pinheiro,
desenho de João Ribeiro Cristino, 1885.
Imagem: Provocando uma teima

Girão no "Interior de curral", que foi considerado o seu melhor quadro, não passa de um curioso. "Verista" miúdo, sem a noção dos valores plasticos.

Compreendo. todavia, que as suas obras enterneçam. Na grande superfície do "Paul da Outra Banda" conhecido pelo "Pantano", enegrecido, cenográfico e turvo, perde-se o encanto da saborosa pincelada e da viva nota de cor em que era mestre José Malhôa. 

Paul da Outra banda, Pântano, Vista do Alfeite, Charco de Corroios, José Malhoa, 1885.
Imagem: Blog do Noblat

Restam-nos, com Silva Porto e Columbano, as melhores pinturas do "Leão d'Ouro". 

O "Quinteiro", com suas floridas arvores de fruto, suas cabrinhas pastando, sua vegetação e suas terras, verdes, sienas e azues, sua mancha esfregada ou consistente, deixando aqui, sem interesse, o suporte á vista, marcando acolá, consistentemente, um pormenor, é um belo quadro de Silva Porto, porém igual ou inferior a muitos, de menores dimensões, que tenho visto.

O quinteiro (Carriche), Silva Porto, 1885.
Imagem: Veritas

Columbano é, sem dúvida, o pintor que se impõe no "Leão d'Ouro". O retrato do sr. Monteiro, antigo proprietário do restaurante, é a melhor obra que lá está, com a mascara e as mãos do primeiro plano, ricamente modeladas. o fundo luminoso contrastando com a tonalidade discreta da encarnaçao e dos tecidos. E este quadro, de entre todos o de menores dimensões. caracteristico especieme da notabilíssima serie de retratos da melhor epoca de Columbano.  Mas foi precisamente o que não puseram á venda. 

Deixei, de proposito, para o fim a tela grande do mesmo pintor, conhecida pelo "Grupo do Leão". É um quadro interessante, sobretudo por enterrar belos esboços do Mestre, retratos incompletos mas flagrantes. A obra. em que se afirmam qualidades admiráveis do autor da "Luva cinzenta", ressente-se de ter tido execução apressada.

O Grupo do Leão, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Representados, da esquerda para a direita: em fundo, João Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, criado Manuel, Columbano, criado António, Braz Martins; sentados, em segundo plano, Manuel Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro; em primeiro plano, José Malhoa, Moura Girão, João Rodrigues Vieira.
Imagem: MNAC

Columbano consagrou-se quasi exclusivamente á mancha, mas no "Grupo do Leão", a falta de tempo não o deixou demorar-se nos pormenores que mais lhe interessavam. A mão deste, a fisionomia risonha daquele, um jogo de luz, um contraste, prenderam-lhe a atenção por momentos: mas teve de abandonar predilecções. pois que, com cada modelo, pouco mais podia gastar do que uma ou duas sessões. Para não estabelecer confrontos desagradáveis, não comparemos esta tela com o "Concerto de Amadores", ou qualquer dos retratos que pintou na mesma epoca.

Talvez por estas e outras razões semelhantes se não venderam no leilão os quadros do "Leão d'Ouro". Devemos, por isso, queixar-nos dos compradores, dos amadores de obras de arte, ou do Estado? Não.

Devemos apenas lamentar que o proprietárlo não soubesse o que havia de acontecer. O seu restaurante é intrressantísslmo e tem muito valor. mas assim como está. É um evocativo testemunho da geração artística de 85 que ali se reunia e planeou o movimento revolucionário contra a velha Sociedade Promotora.

Sentados naqueles bancos, contemplando aqueles painéis, comendo e bebendo naquelas mesas, enchendo aquele ambiente com suas discussões, por vezes até com exclamações irreverentes passaram por ali e ali viveram uma das mais entusiásticas fases da sua vida o já velho Bulhão Pato, relíquia do Romantismo, contra o qual se bateram afoitamente os novos Mariano Pina, Fialho [de Almeida], o poeta Vargas, que ainda conheci de fraque e olhar saudoso, Abel Botelho, Barros Lobo, Fortunato da Fonseca, José de Figueiredo, Monteiro Ramalho, Emidio de Brito, Gualdino, com seu fulgurante espirito de imaginação milionária, e tantos outros.

Cervejaria Leão (detalhe), Alberto Carlos Lima, c. 1915.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Arrancadas as teias das paredes, pouco valem. Quem quiser fazê-lo terá de sujeitar-se á cotação da praça, que será forçosamente baixa.

O Estado fez o que devia fazer: classificou o "Grupo do Leão" de monumento nacional, e ofereceu quantia razoável. Mas se ha quem não esteja satisfeito, e pretenda evitar que se dispersem aquelas relíquias, junte-se aos "Amigos de Lisboa", aos artistas que admiram a geração de 85, façam subscrições e esforços que me parecerão todos multo louváveis. e compre-se o "Leão d'Ouro", todo, com as obras de arte, as paredes e os recantos onde vibraram ecos da geração talentosa que procurou, no seu tempo, reagir contra a estagnação do pensamento e da arte nacionais. 

Luiz Reis Santos (1)


(1) Os quadros do "Leão d'Ouro", Diário de Lisboa, 7 de abril de 1939

Leitura relacionada:
Catalogo Leilao 150 Palacio do Correio Velho, realizado a 7 de Junho de 2005
Nuno Saldanha, Artistas e Espaços de Sociabilidade no século XIX, O “Leão d’Ouro”... (1885-1905)
Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra
Provocando uma teima
Margarida Elias, O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro...
Margarida Elias, Columbano e as Caldas da Rainha
Clara Moura Soares, A Galeria de Pintura do Restaurante "Leão de Ouro":
Percursos de uma Colecção, ARTIS,
M. A. Silveira, M. J. Ávila e P. Lapa, Columbano Bordalo Pinheiro 1874-1900, MNAC-MC, 2007
Rui Zink, António Jorge Gonçalves, Grupo do Leão, MNAC-MC, 2010
Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 6, 2007
Restos de Colecção

2 comentários:

Unknown disse...

E talvez seja de referir, como leitura relacionada, os 2 catálogos publicados pelo MNAC-MC, sobre Columbano, em 2007 e 2010.

Maria de Aires Silveira

Rui Granadeiro disse...

Sem dúvida, e haveria aqui mais posts onde referi-los.

Cumprimentos

Rui Granadeiro