Só tendo a morte quase certa é que o poveiro não vai ao mar. Aqui o homem é acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se de salitre. Desde que se mete à terra, o poveiro modifica-se: perde em agilidade e equilíbrio, hesita, balouça-se, não sabe onde há-de pôr os pés.
Conheço esses homenzarrões broncos e espessos, de cara rapada ou suíças, barrete na cabeça e calça branca de lá, desde que me conheço. Iam dormir à Foz dentro das lanchas e todas as tardes o moço passava à minha porta com o barril de água à cabeça. Dormiam no rio cobertos com a vela, e primeiro que pregassem olho era um falatório que se ouvia em toda a vila. Minha mãe, quando as criadas falavam alto na cozinha, repreendia-as sempre nestes termos: – Então isto aqui é alguma lancha de poveiros?
O poveiro não usa faca, mas é terrível e certeiro com pedras na mão. Ou porque lhe cortassem a caça, estragando-lhe as redes, ou porque andassem de rixa velha, havia às vezes no alto mar verdadeiros combates entre poveiros e sanjoaneiros. Os barcos avançavam uns para os outros à força de remo e a pedrada fervia. Os da Póvoa, que são, creio eu, os únicos pescadores que usam pedras em lugar de chumbeiras, levavam sempre a melhor. Às vezes chegavam à abordagem, de remos no ar, numa algazarra feroz, e havia feridos e até mortos.
O poveiro ignora tudo fora da sua profissão, mas essa conhece-a como nenhum outro pescador. Sabe onde está o banco da sardinha pelo voo do mascato, que lá do alto cai a prumo sobre o cardume; quando ela anda terrenha, isto é, perto da costa, e torneira ou à flor das águas. Sabe a palmos o mar da Cartola que dá a pescada, o da Ferralhuda, que dá a raia, o da Gata, que dá raia e cação, o Bianco, o Lameirão, etc. Acima de tudo está Deus, e para eles o Senhor do Mar é que dá a fome e a fartura.
Na Póvoa há o homem livre e o homem empregado, isto é, o que traz redes de outra pessoa. O homem livre leva para a pescada três cartéis, que fazem uma rede; o homem empregado leva cinco cartéis; o mestre oito a dez, sendo três para o barco, três para ele, uma rede para a lancha e outra de ferrar a bóia. A lancha leva também uma rede da Senhora, a rede de mais a mais, a rede de beber e outras. No batel de sardinha o pescador leva duas redes.
Quando o Inverno é grande, a miséria obriga-o a internar-se, em bandos, de barrete na mão, pedindo pelas armas do Purgatório. – Quem é? – o poveirinho, o probinho do pescador. – É que em todas as terras à beira-mar o homem acumula, lavrador e pescador ao mesmo tempo. O poveiro não, tem de seu o areal e o mar. E esse mesmo lho disputam. Foi sempre um eterno explorado pelo fisco, pelos regatões, pelos homens de negócio – e por último tiraram-lhe o areal, que era a única coisa em que ele fazia finca-pé para os seus varais, para as suas velas, para os seus costumes.
No mar, com a rede de arrasto, mataram a criação. Vi eu muitas vezes
os vapores deitarem fora sacos de peixe por criar, que a rede de malha
miúda rapava nos fundos. Conseguiu-se assim destruir uma comunidade com
carácter e vida própria. O poveiro era um tipo com individualidade, como
o soldado e o lavrador são tipos criados à custa de acumulações
seculares. Estragámo-lo como estragámos as nossas vilas, as nossas
aldeias, os nossos costumes, para os substituirmos pela fealdade e pelo
incaracterístico horror.
Todas as povoações de pescadores que conheço estão arruinadas. Façamos as contas: os de Valbom mortos, os de Esposende mortos; mortos os da Foz; os de Mira com quatro companhas em vez de quinze, e os da Póvoa, que perderam todos os seus costumes, arruinados e fugindo para o Brasil e para a África. E por toda a costa portuguesa a pesca rareia. Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira- mar, para enriquecer meia dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa – é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa – é ofício de industriais..
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Recanto de aldeia, Póvoa de Varzim, Marques de Oliveira c. 1882. MNAC |
Como vivem estes homens? Agrupam-se no extremo sul da povoação. Roupas a secar, interiores que são pocilgas, casebres com uma porta e uma janela, e alguns só com uma porta e um postigo aberto na porta. Trapos, velhas redes, raias escaladas ao sol enfiadas num pau. Ao lado apodrecem barcos e estende-se o sargaço.
As mulheres escorrem salmoura e por toda a parte há restos de sardinha e filharada. A vida pulula, a vida pródiga e incessante. Dentro dos casebres uma salinha com uma dependência, a camarata, onde dorme o casal, e o falso, para guardar o que ele tem de mais precioso, as redes. A caixa, alguns bancos. Debaixo da cama o berço dos filhos e panais velhos. A cozinha mete medo com caldeira de cozer a casca, o forno e os potes de ferro. De noite tudo isto é alumiado pela luz da graxa de peixe, que enfuma as paredes e cheira que tresanda.
Eis como vivem estes homens. Como morrem dizia-o, muito melhor do que eu, o velho cemitério da Póvoa, que já não existe. Ia-se passando de túmulo em túmulo e lia- se sempre: – António Libó, morto no mar; Francisco Perneta, morto no mar; José Mouco, morto no mar... De onde a onde havia uma redoma de vidro com alguns ossos brancos e mirrados que tinham dado à costa. E depois, seguiam-se os letreiros – sempre! sempre! – Domingos Reigoiça, morto no mar; Joaquim Monco, morto no mar... Todos eles vivem no mar – e morrem no mar. (1)
(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão
Informaçao relacionada:
A. Santos Graça, O poveiro, Usos, costumes, tradições, lendas Etnográfica Press
Francisco da Fonseca Benevides, Escola Industrial Pedro Nunes em Faro, Museu Industrial Maritimo, catalogo illustrado das collecções, 1891
Archivo pittoresco:
Póvoa de Varzim n° 9, 1868 (I e II)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (III e IV)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (V e VI)
Póvoa de Varzim n° 25, 1868 (VII)
Póvoa de Varzim n° 29, 1868(VIII)
Póvoa de Varzim n° 30, 1868 (IX)
Póvoa de Varzim n° 33, 1868 (X)
Póvoa de Varzim n° 37, 1868 (XI)
Póvoa de Varzim n° 38, 1868 (XII e XIII)
Póvoa de Varzim n° 46, 1868 (XIV e XV)