terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A poveira

O lanchão era, por assim dizer, o fidalgo da tribo. Os seus aparelhos de pesca eram os mais valiosos e a sua pesca a mais rendosa, dando-lhe uma vida de relativa abastança. A sua família andava sempre bem vestida e oirada. A sua labuta, em mares longínquos e arriscados, dava à sua classe um renome de ousadia e valentia que os enobrecia aos olhos dos outros.

Cabeça de poveira (detalhe), Marques de Oliveira.
Museu Nacional Soares dos Reis

Eles tinham moças e meeiros; as moças, para ajudarem as filhas nos trabalhos caseiros: encascar e enxugar as redes, encher pias e pisar a casca; os meeiros, para levar para o mar o aparelho e mais que existia no farto paneiro da casa. Por isso, os lanchões eram alguém, que não podiam ser ombreados pelos outros de pescas inferiores. Deles saíam os homens de respeito da classe, cuja decisão, ponderada e sempre justa, nas contendas do mar, era acatada sem discussão. Os seus mestres eram para toda a comunidade as suas personagens mais representativas, a quem todo o respeito era devido.

Dentro do lar do lanchão não havia, no geral, desregramento de linguagem: tinha-se sempre em conta que se pecava falando mal. Falar mal era praguejar, rogar pragas. E isto era próprio das classes inferiores.

Os lanchões representavam, portanto, famílias de distinção dentro da colmeia. A sua mocidade teria de escolher entre gente de tronco.

Os Rasqueiros-Sardinheiros eram como os nossos burgueses: remediados uns, vivendo mais mal outros.

Os Pescadores de linha eram a plebe. Sem redes, a linha era o seu único ganha-pão. Na falha da pesca à linha, faziam-se meeiros dos outros na safra da sardinha. Viviam quase sempre na miséria.

As ligações faziam-se, pois, dentro dos próprios grupos, havendo umas certas facilidadess nos casamentos entre os dois últimos. Com o grupo lanchão é que era dificílimo.

A recomendação à mocidade era sempre: «Escolhe gente de tronco!»

Cabeça de poveira, Marques de Oliveira.
Museu Nacional Soares dos Reis

Se um rapaz sardinheiro ou pescador de linha se sorria para a filha de um lanchão, a mãe desta vinha logo falar-lhe: «Moço !, a minha filha é ainda muito nova para casar. Vai Com Deus!» E repreendia, a seguir, a filha, dizendo-lhe se não sabia que a família do rapaz se não podia aparentar com a sua. E acrescentava logo: «Vê lá o que fazes! Se teimas, digo-o a teu pai ! Tens muita família de “tronco” para escolheres.» (1)



(1)  A. Santos Graça, O poveiro, Usos, costumes, tradições, lendas Etnográfica Press

Mais informação:
Octávio Lixa Filgueiras, O barco poveiro, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1995
Carlos Carreto, Imaginários do mar, antologia crítica, 3
Francisco da Fonseca Benevides, Escola Industrial Pedro Nunes em Faro, Museu Industrial Maritimo, catalogo illustrado das collecções, 1891
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB

Archivo pittoresco:
Póvoa de Varzim n° 9, 1868 (I e II)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (III e IV)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (V e VI)
Póvoa de Varzim n° 25, 1868 (VII)
Póvoa de Varzim n° 29, 1868(VIII)
Póvoa de Varzim n° 30, 1868 (IX)
Póvoa de Varzim n° 33, 1868 (X)
Póvoa de Varzim n° 37, 1868 (XI)
Póvoa de Varzim n° 38, 1868 (XII e XIII)
Póvoa de Varzim n° 46, 1868 (XIV e XV)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

A ladainha das lanchas por António Nobre

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a com toda a forca,
Clamam todas à urra: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!


Póvoa do Varzim (Praia da Póvoa do Varzim), João Vaz,  1891.
Matriz.net

Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:


Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!


Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!


Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos probes!


Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...
Maim de Jesus!


É tal e qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!


Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matosinhos!


Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vasco da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!


O lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!


Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»


Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus! (1)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Poveirinhos pela graça de Deus

E é curioso ver a esperteza dessas crianças. Brincam, desprecupadamente, olhando de quando em quando, a imensidão do mar a ver se descobrem o latino. Basta que um dê o sinal: «Lá vem um !», para que todos se agrupem a olhar, fixando a sua vista de lince no pontinho que lá ao longe se divisa. Começa desde logo a discussão: «É o Dibó – é o Negrinho – é o vosso – não é – conheço-o pelo pano!» – até que todos acordam: É o vosso, Zé» – e ainda ele vem a algumas milhas de distância. E o Zé, ligeiro como a andorinha, logo desata a correr os bairros, de casa em casa das mulheres da companha, a deitar o pregão anunciador: «Varar ! »

A volta dos barcos, Sousa Pinto, 1891.
O menino enverga os típicos catalim e a camisola poveira em lã.
Douta melancolia

Sucede sempre que as mulheres da companha chegam à praia primeiro que o barco abique, tal a ligeireza com que a criança se desempenha da obrigação.

É ainda a infância, nas horas de ansiedade pela tempestade no mar e quando todos no paredão ou nos fieiros esperam pelos seus, quem dá a primeira nova do barco que está à vista, porque fixa na retina os próprios contornos da velamenta e a divisa do barco da sua obrigação e de muitos outros.

O pequeno poveiro ajuda ainda os pais no fazer da rede nova, enchendo as agulhas com fio.

A par destas obrigações que o espírito da classe impõe como factores de educação marítima, a criança poveira tem as suas forgas bem características, que constituem verdadeiros desportos de agilidade e energia.

A boiada, a péla, a zocha, a forma, a entola, as vascas, a covinha, a roda, o descanso e a barra são modalidades desportivas que a entusiasmam e muito contribuem para o seu desenvolvimento físico. Algumas destas forgas estendem-se às crianças de toda a região do Minho. Mas duas há que são caracterizadamente poveiras: A boiada e a péla.

A boiada é dos primeiros e dos mais entusiásticos jogos da criança poveira. Toma aspectos violentos.

A péla é o seu último jogo, podendo bem considerar-se o jogo de despedida da sua mocidade. Tem distinção; é, comparado com os outros, a filigrana dos seus jogos. E tanto assim, que as outras classes da terra, modernizando a sua péla de pano rijo por bola de borracha, dão-se hoje a esse desporto, com entusiasmo, nas temporadas da Páscoa. A péla é, na Póvoa, digamos, o sinal da – aleluia! – porque se inicia com a festa da Ressurreição e acaba com a festa da Ascensão (...) (1)


(1)  A. Santos Graça, A infância, O poveiro, Usos, costumes, tradições, lendas Etnográfica Press

Mais informação:
Occidente n° 469, 1892
Octávio Lixa Filgueiras, O barco poveiro, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 1995
Carlos Carreto, Imaginários do mar, antologia crítica, 3
Francisco da Fonseca Benevides, Escola Industrial Pedro Nunes em Faro, Museu Industrial Maritimo, catalogo illustrado das collecções, 1891

Raul Brandão:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão

Archivo pittoresco:
Póvoa do Varzim n° 9, 1868 (I e II)
Póvoa do Varzim n° 22, 1868 (III e IV)
Póvoa do Varzim n° 22, 1868 (V e VI)
Póvoa do Varzim n° 25, 1868 (VII)
Póvoa do Varzim n° 29, 1868(VIII)
Póvoa do Varzim n° 30, 1868 (IX)
Póvoa do Varzim n° 33, 1868 (X)
Póvoa do Varzim n° 37, 1868 (XI)
Póvoa do Varzim n° 38, 1868 (XII e XIII)
Póvoa do Varzim n° 46, 1868 (XIV e XV)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Lancha de poveiros por Raul Brandão

Só tendo a morte quase certa é que o poveiro não vai ao mar. Aqui o homem é acima de tudo pescador. Depende do mar e vive do mar: cria-se no barco e entranha-se de salitre. Desde que se mete à terra, o poveiro modifica-se: perde em agilidade e equilíbrio, hesita, balouça-se, não sabe onde há-de pôr os pés.

Barcos na praia com figuras, João Vaz.
Cabral Moncada Leilões

Conheço esses homenzarrões broncos e espessos, de cara rapada ou suíças, barrete na cabeça e calça branca de lá, desde que me conheço. Iam dormir à Foz dentro das lanchas e todas as tardes o moço passava à minha porta com o barril de água à cabeça. Dormiam no rio cobertos com a vela, e primeiro que pregassem olho era um falatório que se ouvia em toda a vila. Minha mãe, quando as criadas falavam alto na cozinha, repreendia-as sempre nestes termos: – Então isto aqui é alguma lancha de poveiros?


Porto, Barco de pesca, c. 1900.
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

O poveiro não usa faca, mas é terrível e certeiro com pedras na mão. Ou porque lhe cortassem a caça, estragando-lhe as redes, ou porque andassem de rixa velha, havia às vezes no alto mar verdadeiros combates entre poveiros e sanjoaneiros. Os barcos avançavam uns para os outros à força de remo e a pedrada fervia. Os da Póvoa, que são, creio eu, os únicos pescadores que usam pedras em lugar de chumbeiras, levavam sempre a melhor. Às vezes chegavam à abordagem, de remos no ar, numa algazarra feroz, e havia feridos e até mortos.

O poveiro ignora tudo fora da sua profissão, mas essa conhece-a como nenhum outro pescador. Sabe onde está o banco da sardinha pelo voo do mascato, que lá do alto cai a prumo sobre o cardume; quando ela anda terrenha, isto é, perto da costa, e torneira ou à flor das águas. Sabe a palmos o mar da Cartola que dá a pescada, o da Ferralhuda, que dá a raia, o da Gata, que dá raia e cação, o Bianco, o Lameirão, etc. Acima de tudo está Deus, e para eles o Senhor do Mar é que dá a fome e a fartura.

Na Póvoa há o homem livre e o homem empregado, isto é, o que traz redes de outra pessoa. O homem livre leva para a pescada três cartéis, que fazem uma rede; o homem empregado leva cinco cartéis; o mestre oito a dez, sendo três para o barco, três para ele, uma rede para a lancha e outra de ferrar a bóia. A lancha leva também uma rede da Senhora, a rede de mais a mais, a rede de beber e outras. No batel de sardinha o pescador leva duas redes.

À espera dos barcos, Marques de Oliveira, 1892.
Biblioteca Nacional de Portugal

Quando o Inverno é grande, a miséria obriga-o a internar-se, em bandos, de barrete na mão, pedindo pelas armas do Purgatório. – Quem é? – o poveirinho, o probinho do pescador. – É que em todas as terras à beira-mar o homem acumula, lavrador e pescador ao mesmo tempo. O poveiro não, tem de seu o areal e o mar. E esse mesmo lho disputam. Foi sempre um eterno explorado pelo fisco, pelos regatões, pelos homens de negócio – e por último tiraram-lhe o areal, que era a única coisa em que ele fazia finca-pé para os seus varais, para as suas velas, para os seus costumes.

No mar, com a rede de arrasto, mataram a criação. Vi eu muitas vezes os vapores deitarem fora sacos de peixe por criar, que a rede de malha miúda rapava nos fundos. Conseguiu-se assim destruir uma comunidade com carácter e vida própria. O poveiro era um tipo com individualidade, como o soldado e o lavrador são tipos criados à custa de acumulações seculares. Estragámo-lo como estragámos as nossas vilas, as nossas aldeias, os nossos costumes, para os substituirmos pela fealdade e pelo incaracterístico horror.

Bairro dos pescadores (0,20x0,30), Póvoa [do Varzim], Silva Porto 1884.
Do Tempo da Outra Senhora


Todas as povoações de pescadores que conheço estão arruinadas. Façamos as contas: os de Valbom mortos, os de Esposende mortos; mortos os da Foz; os de Mira com quatro companhas em vez de quinze, e os da Póvoa, que perderam todos os seus costumes, arruinados e fugindo para o Brasil e para a África. E por toda a costa portuguesa a pesca rareia. Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira- mar, para enriquecer meia dúzia de felizes. Cultivar o mar é uma coisa – é ofício de pescadores; explorar o mar é outra coisa – é ofício de industriais..

Recanto de aldeia, Póvoa de Varzim, Marques de Oliveira c. 1882.
MNAC


Como vivem estes homens? Agrupam-se no extremo sul da povoação. Roupas a secar, interiores que são pocilgas, casebres com uma porta e uma janela, e alguns só com uma porta e um postigo aberto na porta. Trapos, velhas redes, raias escaladas ao sol enfiadas num pau. Ao lado apodrecem barcos e estende-se o sargaço.

As mulheres escorrem salmoura e por toda a parte há restos de sardinha e filharada. A vida pulula, a vida pródiga e incessante. Dentro dos casebres uma salinha com uma dependência, a camarata, onde dorme o casal, e o falso, para guardar o que ele tem de mais precioso, as redes. A caixa, alguns bancos. Debaixo da cama o berço dos filhos e panais velhos. A cozinha mete medo com caldeira de cozer a casca, o forno e os potes de ferro. De noite tudo isto é alumiado pela luz da graxa de peixe, que enfuma as paredes e cheira que tresanda.

Eis como vivem estes homens. Como morrem dizia-o, muito melhor do que eu, o velho cemitério da Póvoa, que já não existe. Ia-se passando de túmulo em túmulo e lia- se sempre: – António Libó, morto no mar; Francisco Perneta, morto no mar; José Mouco, morto no mar... De onde a onde havia uma redoma de vidro com alguns ossos brancos e mirrados que tinham dado à costa. E depois, seguiam-se os letreiros – sempre! sempre! – Domingos Reigoiça, morto no mar; Joaquim Monco, morto no mar... Todos eles vivem no mar – e morrem no mar. (1)


(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB

Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão

Informaçao relacionada:
A. Santos Graça, O poveiro, Usos, costumes, tradições, lendas Etnográfica Press
Francisco da Fonseca Benevides, Escola Industrial Pedro Nunes em Faro, Museu Industrial Maritimo, catalogo illustrado das collecções, 1891

Archivo pittoresco:
Póvoa de Varzim n° 9, 1868 (I e II)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (III e IV)
Póvoa de Varzim n° 22, 1868 (V e VI)
Póvoa de Varzim n° 25, 1868 (VII)
Póvoa de Varzim n° 29, 1868(VIII)
Póvoa de Varzim n° 30, 1868 (IX)
Póvoa de Varzim n° 33, 1868 (X)
Póvoa de Varzim n° 37, 1868 (XI)
Póvoa de Varzim n° 38, 1868 (XII e XIII)
Póvoa de Varzim n° 46, 1868 (XIV e XV)