sábado, 29 de junho de 2024

Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)

Entre as folhas de um album antigo encontrei, desenhadas e aguareladas por Zacharie Felix Doumet, algumas interessantissimas representações de episodios da vida portuguesa do fim do seculo xviii. Como póde este pintor estrangeiro observar com tamanha justeza o meio português de então?

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa


Zacharie Felix Doumet, fiiho de Gaspar Doumet, mestre-pintor do rei, nasceu em Toulon a 4 de dezembro âe 1761. Aprendeu com seu pae e foi admitido como pintor de marinhas no Arsenal da cidade, onde se conservou até aos graves acontecimentos que destruiram parte da povoação e o proprio Arsenal.

Emigrou então para a Corsega, e, tres anos depois, para Portugal (1796-1806), conseguindo empregar-se, em Lisboa, numa das repartições do Real Corpo de Engenheiros. Voltou a Toulon em 1806, e faleceu em Draguignan em 1818, com 57 anos de idade.

Doumet pensava decerto publicar um livro de memorias ou de viagens, ilustrado com os seus desenhos. Nesse intuito coligiu os quadrinhos que agora se publicam, e que estão preparados para a reprodução em gravura a córes, com as respetivas cercaduras, numeração, legendas e assinaturas, ao gosto da epoca.

Os seus desenhos são tratados como miniaturas, com um a delicadeza assombrosa de promenores. O antigo pintor do Arsenal denuncia-se na reprodução das náus, dos barcos, das noss as muletas, etc., não faltando nas aguarelas, apezar das suas dimensões restritas, o mais insignificante detalhe de arquitetura naval.

Vue d'une partie de Lisbonne en Portugal, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa


As figuras são cuidadosamente entrajadas, denotando as atitudes e as côres uma observação atenta e alegre, melhor revelada na ironia leve com que alguns episodios populares são tratados.

As gravuras que acompanham estas notas, representam: a primeira, quatro mariolas, transportando uma pipa «a pau e corda»: a scena passa-se no Caes do Sodré, divisando-se no Tejo, á esquerda, uma náu portuguesa, e á direita, entre outros barcos, uma fragata inglesa.

Maniére de porter les barriques de vin, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

A segunda mostra-nos o preto andador, de opa azul e branca, dando o Menino Jesus na sua maquineta de vidro e flores de talco, a beijar a uma mulher de lenço e capa de ramagens, emquanto o marido, oficial de linha , esportula a respetiva esmola.

L'enfant Jesus, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa


Le Menino Jesus, l'agoadeiro et le dragon portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa

Na ultima, a que Doumet intitulou "as vesperas do Natal", notam-se pequenos aspectos da vida das ruas, caraterísticos da epoca do ano a que al udem.Num grupo, mulheres de capote vermelho ou vasquinha debruada e lenço branco, e homens de bicorne, vestia ou gabão, abrigados por um chapelão de mercado, cinzento, vendem queijos, laranjas e ovos.

Les aproches de Noël, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Mais adeante, uma outra vendedóra acocóra-se junto do seu cesto, perto de um perú enfatuado. Outros galinaceos espalhados pelo quadro esperam descuidosamente o dia do sacrificio.

Ao fundo, um preto velho, de opa, vara e maquineta, talvez o mesmo da aguarela anterior, segue na sua faina de andadôr, pedindo para o Menino a um «homem de ganhar» que vae passando. (1)

São poucos os documentos iconográficos que possuimos a respeito dos mercados portugueses dos fins do seculo xviii. Murphy, Kinsey, Baillie, Bradford, Léveque, e outros, reproduzindo, em gravuras soltas ou nas que acompanham as relações das suas viagens, tipos populares portugueses, raramente agruparam essas figuras de modo a indicarem, no conjunto, qualquer aspéto de um mercado.

Por outro lado, Stadler, Wells, Sofia Wagner, Humphrey e Dunstan Gordon — que presumo seja o autor que desenhou as pitorescas scenas do Scketches of Portuguese Life — procuraram apenas dar a impressão aproximada e despretenciosa dos episódios da nossa vida rural, desenhando e fazendo gravar, nas suas composições mais vastas, quadrinhos campestres, em que aparecem tipos populares.

Ora Zacharie Doumet, o minucioso pintor francês a quem no numero anterior me referi, deixou-nos, nas folhas do seu album, numerosos aspétos dos mercados da época, desenhados do natural. Não lhe escaparam, por isso, nem as atitudes e os trajos dos vendilhões e compradores, nem os pequenos incidentes característicos do ajuntamento, taes como os cães brincando com as galinhas, ou o burro filosofando tranquilo ante um cesto pojado de legumes...

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Entre as personagens representadas, salientam-se o frade, de habito pardo e escapulário, o negociante, com seu bicorne e capote de mangas, e o sargento, de farda azul com peitilho e vivos brancos e chapeu debruado, que faz a polícia do mercado.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Doumet reproduz com muito cuidado os trajos. As mulheres usam, quasi invariavelmente, uma saia de baixo, amarela, sendo a que trazem apanhada sob a cinta, azul ou arroxeada; a vasquinha é vermelha, debruada de azul ; os capotes, com cabeção, amarelados ou escuros, e os lenços, brancos, assentando o carapuço ou chapeu sempre sobre o lenço.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Os homens trajam véstias cór de castanha ou azuladas, debruadas de fita, e coletes vermelhos.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

 

O chapeu é geralmente um bicorne agaloado de amarelo ou azul, e os carapuços são amarelados ou vermelhos. Os capotes, cór de pinhão ou de azeitona, tem cabeção, mangas, e ·Um capuz, forrado de verde.

La conversation portugaise ou le temps perdu, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
ComJeitoeArte

A proteger as pernas, usam as personagens, além dos calções de fazendas grossas, polainas de pano ou meias brancas. Na frente dos sapatos, arqueia-se quasi sempre uma daquelas grandes fivelas, tão satirizadas pelos folhetos de cordel da época. (2)


(1) Luís Keil, Scenas da vida portuguesa (fim do século xviii), Terra Portuguesa 21/23, 1917
(2) Luís Keil, Antigos mercados portugueses, Terra Portuguesa 24, 1918

Mais informação:
ComJeitoeArte, Costumes portugueses - Doumet, Zacharie Félix
Museu de Lisboa

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Brigue Viajante

Foi ao mar, no dia 19, o Brigue Viajante, construido pelo habil constructor o sr. Silva, no estaleiro de Porto Brandào, ao Sul do Tejo.

Brigue Viajante, João Pedroso
Cabral Moncada Leilões

São geralmente elogiadas as contrucções do sr. Silva pela sua elegancia e valentia.

Barca [Brigue] Viajante (João Pedroso, atrib.).
Invaluable

Os bem conhecidos lindos navios — Brigue, Bom Successo, palhabote, Veloz, e barca, Izabel, foram egualmente construidos pelo sr. Silva. Consta que este senhor já recebeu encommendas de novos vasos; oxalá que tal noticia ae verifique.

Barca Isabel, 1851.
"Janêllos" da História: Os Serzedello

A marinha mercante nacional, e o credito das nossa construcções navaes, ganham muito em que o sr. Silva seja animado e honrado, como incontestavelmenle merece, na profissão que, com tanto amor, sabe exercer. (1)


(1) Revista Popular, 1851

Artigos relacionados:
Barca Isabel
Planos inclinados de 1865

domingo, 23 de junho de 2024

Dispersos, anónimos ou em falta

A. E. Hoffman

Fantoches, autor desconhecido, no Museu de Lisboa que atribuímos a A. E. Hoffman, no contexto das Guerras Liberais ou da vitória dos liberais sobre os absolutistas, c. 1835.

Fantoches, autor desconhecido
(possível A. E. Hoffman c. 1835)
Museu de Lisboa

Bailarico em Cacilhas, datato da década de 1810, da colecção do dr. José Coelho da Cunha (de momento não temos informação do seu paradeiro), fez da nossa parte objecto de um apontamento dedicado (v. Bailarico em Cacilhas).

Bailarico em Cacilhas, possível original de A. E. Hoffman, c. 1835
Alberto de Souza, Alfacinhas, Os Lisboêtas do passado e do presente

Saltimbancos (ou Largo do Corpo Santo ), A. E. Hoffman c. 1833, no Museu de Lisboa, pertencia ao engenheiro Vieira da Silva. Referia um local errado para a cena nele descrita. Apresenta, de facto, o Largo dos Remolares, posteriormente Praça do Duque da Terceira.

Saltimbancos, A. E. Hoffman, c. 1833
Museu de Lisboa



Alexandre-Jean Nöel


Comemoração da abolição do imposto sobre o pescado, atribuido a Alexandre-Jean Nöel (1787-1788), cremos que ainda pertença ao ao Museu Nacional de Arte Antiga, como referido no catálogo da exposição de documentos e obras de arte relativos à história de Lisboa, 1947.

Cortejo no Tejo
(comemoração da abolição do imposto sobre o pescado)
Pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga
Arquivo Municipal de Lisboa


Nicolas Delerive


Junot passando revista às tropas no Rossio/Parada dos Voluntários reais no Rossio, que atribuimos a Nicola Delerive. Cremos que ainda pertença ao ao Museu Nacional de Arte Antiga,

Junot passando revista às tropas no Rossio, anónimo.
Pertence ao Ex.mo Senhor Eduardo Mendia.
Catálogo da exposição de documentos e obras de arte relativos à história de Lisboa, MNAA, 1947


Tony de Bergue


Casamento de D. Maria II com D. Fernando II em 1836. Cremos que ainda pertença ao ao Museu Nacional de Arte Antiga,

Casamento de D. Maria II com D. Fernando II em 1836.
Igreja de Santos o Velho, óleo sobre tela da autoria de Tony de Bergue, meados do século XIX.
Pertence ao Ex.mo Senhor Pedro Costa.
Arquivo Municipal de Lisboa


Henri l'Évêque


Pelo grafismos, olhos expressivos, rosto amplo permitindo uma boa aguarelagem, atribuímos o desenho a Henri l'Évêque, embora a imagem não tenha sido incluída em Costume of Portugal, 1814.

O pobre dos bonecos, Oficina Régia Litográfica, impr. 1832
(Costumes portugueses ou Colecção dos trajos, usos e costumes mais notáveis e característicos dos habitantes de Lisboa e Províncias de Portugal, 1832-35)
Biblioteca Nacional de Portugal



Artigos relacionados:
Uma exposição no tempo... 1947

domingo, 16 de junho de 2024

O barbeiro, Dom Roberto e outros...

Tudo começa de uma forma muito ingénua: no dia do seu casamento, Dom Roberto vai ao barbeiro para cortar a barba. A acção desenvolve-se por entre um sem-número de peripécias cómicas ao longo das quais o ritmo da acção vai crescendo.

Espectaculo de TÍTIRES em Lisboa pelo começo deste seculo
Nicolas Delarive
(Espectaculo de títires em Lisboa, pelo começo deste seculo / Novaes lith. ; Delarive)
Arquivo Municipal de Lisboa

No final o nosso herói recusa-se a pagar, porque acha o preço muito caro (10 tostões) e envolve-se em grande pancadaria com o barbeiro, que acaba por morrer. Até esta altura, a trama é claramente inspirada nas representações burlescas dos ofícios (o do Barbeiro), que integravam as famosas procissões do Corpus Christi, nas quais, atrás de carroças exibindo alegorias religiosas, vinham grupos de gente representando os diversos misteres, quase sempre de forma caricata, para grande gáudio do povo que a elas assistia.

Nicolas Delerive, loja de barbeiro
Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva



Ainda hoje esta situação constitui um clássico do humor dos “palhaços” e, curiosamente, vamos também encontrá-la no reportório dos Bonecos de Santo Aleixo, as pícaras marionetas de varão do sul de Portugal.(1)

É ao nível do reportório que mais facilmente se detectam as influências que determinaram o aparecimento do Teatro Dom Roberto. A sua análise fornece-nos informações preciosas sobre os contextos sócio-históricos que marcaram a sua evolução através dos tempos, nos quais o fantoche sempre se assumiu como veículo do sentir popular.

O barbeiro diabólico
Valdevinos
Teatro Tradicional Português de Marionetas (fb)

No conjunto de peças conhecidas encontramos histórias “clássicas” do reportório europeu, reinventadas, outras que nasceram de ímpetos colectivos determinados por situações politico-sociais e até religiosas, de contos da sabedoria popular, de manifestações da cultura tradicional e ainda do chamado Teatro de Cordel (teatro de comédia ou drama muito em voga no séc. XVIII, que deve o seu nome ao facto dos textos serem apregoados nas ruas, impressos em grandes folhetos dependurados num cordel).

O pobre dos bonecos, Oficina Régia Litográfica, impr. 1832
(Costumes portugueses ou Colecção dos trajos, usos e costumes mais notáveis e característicos dos habitantes de Lisboa e Províncias de Portugal, 1832-35)
Biblioteca Nacional de Portugal

A mais famosa peça que chegou aos nossos dias, passada de geração em geração de bonecreiros, é “O Barbeiro”. Nela é evidente a simbiose da tradição europeia com a cultura portuguesa. (2)


(1) Marionetas do Porto, Teatro Dom Roberto, breve história e notas
(2) Idem

Artigos relacionados:
Nicolas Delerive (1755-1818)
Henri l'Évêque (1769-1832)

Leitura relacionada:
José Luís de Oliveira, O teatro de bonifrates em Portugal durante o Estado Novo (1933-1974)
Restos de colecção, Teatros de fantoches (...)
Romeu Correia, Roberta (...), Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1971
Irisalva Moita, O povo de Lisboa, tipos, modos de vida, ambiente, mercados e feiras, divertimentos, mentalidade, Câmara Municipal de Lisboa, Direcção dos Serviços Centrais e Culturais, 1979

Mais informação:
Museu da Marioneta
Dom Roberto (filme de José Ernesto de Sousa, 1962, Wikipédia)

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Retratos verdadeiros de Sant'António

Não existe uma imagem de Santo Antônio que lhe seja contemporânea e as mais antigas imagens que a ele se referem, apareceram a partir do final de 1200, são muito diversas uma das outras e não nos dão a possibilidade de reconstruir o seu aspecto físico. Para podermos imaginar como ele era, nos resta somente alguns rápidos passos literários.

Santo António de Lisboa proveniente do Convento de Jesus em Setúbal
(c. 1510-1540)
Museu Nacional de Arte Antiga

O autor da «Assídua» (a primeira biografia do Santo), referindo-se à pregação do Santo realizada em Pádua durante a quaresma do ano em que morreu diz: «Causa realmente maravilha o fato de ser ele aflito por uma certa natural corpulência e também por uma contínua doença, e que porém, pelo zelo assíduo das almas, ele não deixasse nunca de pregar, de ensinar e de ouvir as confissões até o pôr do sol e quase sempre em jejum». (1)

Desde o começo da nacionalidade portuguesa, que no alto desta colina (Olivais) existiu uma capela de invocação de Santo Antão. Em 1217-18, a mulher de D. Afonso II, D. Urraca, cedeu essa capela aos franciscanos, acabados de chegar a Portugal, que aqui se estabeleceram precariamente. Recorde-se, a propósito, que a Ordem dos Franciscanos, fundada em 1209, rapidamente se espalhou por toda a Europa.

Junto à capelinha de Santo Antão, fundaram os franciscanos um humilde eremitério. Em 1219, aqui veio pousar Frei Otto com quatro companheiros (Frei Berardo, Frei Pedro, Frei Acúrsio e Frei Adjuto) na sua caminhada para a missão de Marrocos e para a morte, pois são os primeiros franciscanos sacrificados à fé de Cristo, decapitados pelo sultão, Abu-Jacub.

Mártires de Marrocos, Francisco Henriques, 1508-1511
Mosteiro de São Francisco de Évora

Museu Nacional de Arte Antiga

Quando em 1220 as relíquias dos Cinco Mártires de Marrocos, trazidas por influência do Infante D. Pedro, filho de D. Sancho I, chegam ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Santo António, que nesse ano tinha tomado a ordem sacerdotal, sente-se irresistivelmente atraído pelo espírito franciscano.

Deixa o opulento mosteiro crúzio para ir viver no pobre hospício dos Olivais, troca o hábito e a murça branca de cónego regrante de Santo Agostinho pelo burel franciscano e muda o nome de batismo – Fernando – para o de António e, em Julho desse mesmo ano, parte para Marrocos.

Verdadeiro Retrato de Santo António de Lisboa
(séc. xviii)
Santo António dos Olivais

Após a sua canonização, em 1232, este modesto convento dos Olivais de Coimbra, em memória do grande taumaturgo, mudou a invocação de Santo Antão para Santo António. (2)


(1) Assídua cf.Iconografia antoniana, Santo Antônio através dos séculos
(2) Santo António dos Olivais

Leitura relacionada:
Conrad de Mandach, Saint Antoine de Padoue et l'art italien, 1870
Santo António na literatura e na arte portuguesas
D. Carlos A. Moreira Azevedo, Variantes iconográficas nas representações antonianas, 2010
Isabel M. D. A. V. Santos, Do altar ao palco Santo António na tradição (...), 2014
Isabel M. D. A. V. Santos, Do altar ao palco Santo António na tradição (...) anexos, 2014
Cícero Moraes, Eis o rosto de Santo Antônio! 2014
Il vero volto di Sant’Antonio
New insights into the physical appearance of St Anthony of Padua
Questões político-sociais na Legenda Assídua

sábado, 8 de junho de 2024

Camões no Tronco de Goa em 1556

Tendo Luís de Camões, o egrégio cantor de "Os Lusíadas", vivido nada menos de catorze anos em Goa, primeiro de 1553, ano em que chegou, a 1556, em que foi desterrado para as Molucas, e depois de 1558, ano em que regressou do desterro, a 1569, em que partiu para Moçambique a caminho de Portugal, compreende-se talvez que dos três retratos mais antigos do poeta dois sejam de Goa, a outrora altiva capital do Império Português do Oriente.

Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões (detalhe)
Museu Nacional de Arte Antiga
MeisterDrucke

Cronologicamente, os três retratos são: o de 1556, numa prisão de Goa; e de 1570, feito por Fernão Gomes em Lisboa; e o de 1581, também em Goa, um ano depois da sua morte (v. Luís de Camões, Wikipédia).

Pertencente à colecção camoniana do Centro de Profilaxia, descoberto e revelado pela Dra. Maria Antonieta Soares de Azevedo, num artigo intitulado "Uma nova e preciosa espécie iconográfica quinhentista de Camões" (cf. "Panorama", Lisboa, n°s. 43-44, IV série, Set. 1972), este retrato, o primeiro dos que se conhecem do épico , representa-o na cadeia do Tronco, em Goa, dando-nos, como frisa a reveladora, não só a sua verdadeira imagem, mas fornecendo-nos também alguns elementos que esclarecem a sua vida social e literária, embora subsistam algumas interrogações.

Feita sobre pergaminho, medindo 217 x 145 mm., e pela técnica da iluminura e cartografia do séc. XVI, empregando-se o vermelhão, o azul e o preto, numa espécie de aguada, a pintura representa o poeta numa cela da prisão, de frente, em corpo inteiro, sentado num escabelo, a uma mesa, também de madeira como aquele, mas que à autora do artigo se afigura de feição europeia-hispânica.

Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões
Museu Nacional de Arte Antiga
MeisterDrucke

O épico veste gibão preto,.abotoado à frente, de gola e punhos brancos, com dois rasgões na manga esquerda, calções tufados abaixo dos joelhos, calçando meias e sapatos grosseiros. Com uma gorra preta na cabeça, apresenta cabelos compridos de cor alourada, barba e bigode de pontas reviradas para cima, nariz aquilino, densas sobrancelhas e o olho direito cerrado.

Enquanto segura com a mão direita um prato de estanho, meio pousado sobre a mesa, com o que Maria Antonieta Soares de Azevedo supõe ser um pão ou um bocado de massa, com uma malga de duas asas ao lado, na palma da outra mão apresenta o que, segundo ela, seria uma pedra (moeda?).

Do lado direito da mesa vêem-se várias folhas de papel, escritas à mão, na primeira das quais se lê "Canto X", e um tinteiro com duas penas. Junto da mesa, à esquerda vê-se uma bilha, tal como ela a descreve, esguia, de boca ondeada e com asa em forma de um D, e uns grilhões no chão.

Por trás da mesa, vê-se um estreito catre com uma carta de marear desdobrada sobre ele, com duas naus com a Cruz de Cristo nas velas, pondendo ler-se na parte superior a palavra "Goa".

Por cima do catre, vêem-se duas prateleiras, suspensas por grossos cordões, que terminam por borlas, com quatro volumes encadernados, com títulos nas lombadas, que se não podem ler, na prateleira de cima, e três na de baixo, de que só se vê uma parte.

No canto superior direito, vê-se representada numa cartela a prisão do Tronco, com três figuras que parecem ser guardas e por cima outro cartel recortado com a palavra "Prizam", por baixo da qual Maria Antonieta Soares de Azevedo pôde ver confirmada, numa fotografia a raios infra-vermelhos, a data 1556, vendo-se ainda mais duas ou três palavras, difíceis de decifrar.

À direita, ao centro da parede, vê-se uma janela gradeada, através da qual se avistam dois mastros de navios. Como a ilustre investigadora diz em nota, a vista dos mastros através da janela da prisão, tal como se vê situada na planta de Goa no Itinerário de Linschoten (v. Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten), seria uma prova da minúcia com que a pintura foi feita do natural.

Goa, o tronco (prizam) e as cazas do Vice Rey (detalhe)
Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten

O valor deste primeiro retrato de Camões, representando-o preso no Tronco de Goa, estaria no facto de apresentar também, na parte inferior, deliberadamente escurecida, aos pés do poeta, duas figuras; a do lado esquerdo representando o rosto de um vice-rei ou governador, de barba, com a característica gorra, e a do lado direito, a cabeça, voltada para a primeira, de um frade que pelo hábito parece um dominicano.

Para não me alongar em pormenores, direi apenas que essas duas figuras representariam, uma o governador Francisco Barreto, que mandou prender Camões, e a outra um desses "alvitreiros ou novelheiros", o frade de S. Domingos, que teria contribuido para a prisão.

O mercado de Goa, Joannes van Doetecum, década de 1580
Itinerario de Linschoten
Wikipedia

Como a técnica usada é a da cartografia e iluminura, pensa Maria Antonieta Soares de Azevedo que o autor podia ter sido qualquer dos dois cartógrafos contemporâneos do poeta na Índia, Fernão Vaz Dourado ou Lázaro Luís, inclinando-se a crer que fosse o primeiro, que, além de cartógrafo e iluminador, foi também navegador e guerreiro, tendo possivelmente travado relações de amizade com Camões em Goa. Não no-lo diz ela, mas Fernão Vaz Dourado era filho de pai português e mãe indiana. (1)

Mostra um Camões arruivado, de guias do bigode assimétricas, sentado a uma mesa, segurando uma travessa na mão direita e uma pequena peça escura na esquerda. Estará prestes a trabalhar num dos cantos de Os Lusíadas, o décimo para Maria Antonieta Soares de Azevedo (que revelou o retrato na revista "Panorama", Lisboa, n°s. 43-44, IV série, Set. 1972).

Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões
Museu Nacional de Arte Antiga
MeisterDrucke

O poeta parece dispor de um certo «conforto intelectual»: vemos vários cartapácios na parede, pode consultar uma carta geográfica que tem perto de si, certamente para verificar qualquer afirmação ou referência do poema. Mas o gibão está roto na manga esquerda e a comida representada não parece abundante, não se percebendo bem que objecto mostra na mão esquerda.

Pode confirmar-se que ele está a trabalhar no Canto X exatamente por ter aquela carta geográfica aberta para consulta. Isto porque, n' Os Lusíadas, na descrição geográfica da Europa, feita no Canto III (6-20), não faria qualquer sentido serem representadas as embarcações que ali são figuradas.

Não assim na longa descrição geográfica da Ásia feita no  Canto X (10-73), entremeada com as profecias dos feitos dos portugueses. Embarcações semelhantes às representadas nessa carta, movidas à vela (com a cruz de Cristo) e a remos, podem ver-se desenhadas no Roteiro do Mar Roxo (fustas, galés), de D. João de Castro (...)

Fusta com pavilhão português, Joannes van Doetecum, década de 1580
Itinerario de Linschoten
Wikipedia

No cartão que constitui a parte de trás do retrato, informa-se o seguinte, em letra que pode ser do século XVI: «Luis de Camões prezo e tendo aos pés quem quis perdelo. Pintado nas Indias e foi do propio.»

E mais abaixo, em letra de fins do século XVIII, está colada a tarjeta dizendo que o «painel pertenceu a Sr. Marquez de Sande é hoje de Joze Antonio de Salda e Sousa, Conde da Ponte (...).»

Por sua vez, a nota que se encontra no verso, «Luís de Camões preso e tendo aos pés quem quis perde-lo», permite deduzir que o borrão que impede se reconheça «quem quis perdê-lo» só ocorreu posteriormente à feitura de tal inscrição. (2)


(1) Carmo Azevedo, Retratos de Camões: os três feitos em Goa
(2) Vasco Graça Moura, Camões na prisão, 09 de outubro de 2013

Artigos relacionados:
Os Joinville e A morte de Camões de Domingos Sequeira

Leitura relacinada:
Pedro de Mariz, Ao estudioso da lição poética in Os Lusiadas (...)
Maria Antonieta Soares de Azevedo, Quando Camões fala de si... 1981
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, Sociedade Portuguesa de Autores/editora Guerra & Paz, 2014
Colóquio Letras nº 55, maio 1980
Luís de Camões (1524?-1580), Os Lusiadas, Lisboa, em casa de Antonio Gõçaluez, 1572
Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten