O Barão de Catânea (detalhe). Almanak Popular para o Ano de 1849 cf. Olisipo n°93, 1961 |
Saber quem ele era e donde viera, foi trabalho de alguns investigadores. Supuseram-no italiano, à conta do seu inventado baronato, julgaram-no proveniente das terras brasílicas onde se entroncaria a sua linhagem, mas só a sua morte trouxe o conhecimento da sua origem e naturalidade.
D. José Benetti, o famigerado Curandeiro lisboeta, quase Taumaturgo na opinião de muitos, de um humanitarismo acabado, tratando de graça os robres à custa do que ganhava com os ricos estrangeiros que o procuravam amiúde, era súbdito inglês, nascido em Gibraltar no final do século XVIII.
Disse-se, no seu tempo, que um grande pesar de amor, causado por uma formosa gibraltina, o levou a deixar a terra natal. Passou a andar erradio, e acabou por ir parar ao Brasil, donde veio, em 1822, com o senhor D. João VI.
Camilo Castelo Branco, encontrando nas Memórias de Frei João de S. José Queiroz, Bispo do Grão Pará, o rasto de uma dama que se apelidava "de Catânea", e que vivia em S. Miguel de Guamá, freguesia deste bispado brasileiro, com o poder da sua imaginativa, logo a ligou ao filantrópico Barão, que assombrava a pacata Lisboa, com as suas extravagâncias de vestuário e as suas pitorescas benemerências.
Vendo na figura do célebre Curandeiro, uma fonte de curiosidades de romance, fá-lo filho de D. Cle- mência (ou D. Prudência) de Catânea, e origina da herança materna o caudal las suas liberalidades caritativas, e ainda lhe inventa duas irmãs, uma das quais põe a figurar no seu romance O Demónio do Ouro. Escusado será acentuar que tudo isto é uma das habituais fantasias camilianas.
D. José Benetti, veio realmente do Brasil, como se disse, e já em 1822, se dá como morador na Rua do Cura, anunciando na Gazeta um maravilhoso remédio para os dentes. No ano seguinte, residindo ainda na mesma rua, de novo o mesmo incipiente jornal relata uma espantosa cura por ele feita, e de aí por diante, Gazetas e Diários, não se fartam de apregoar as miríficas curas do Barão, cuja medicina não se sabe onde fora aprendida. Que ele era havido como médico, e o deixavam exercer a clínica não há dúvida.
O Barão de Alvaiázere, Físico-Mor do Reino, aceitara-lhe como boa, a documentação por ele apresentada em 1838, na qual intervinha uma licença passada por D. João VI, e o Cirurgião Aguiar seguira-lhe o exemplo. O povo não se importava com os títulos legais da profissão, e havia-o como verdadeiro pai-dos-pobres que tratava de graça e a quem muitas vezes socorria com dinheiro.
Em 1830, a sua fama já estava consolidada ao máximo. A notícia das curas que havia feito na Sicília, quando em 1814 residia em Palermo, e que ajudaram também os investigadores a supô-lo italiano, vinda na Gazeta daquele ano, propalara-se depressa. Talvez fosse de aí que se originasse o seu suposto Baronato.
Da Rua do Cura passou depois D. José Benetti a morar na de S. Francisco de Paula, n.º 37, numa casa pegada ao templo, e vizinha portanto da Rua das Janelas Verdes, moradia em ruínas, com os vidros das janelas quase todos partidos, e com um pátio onde frequentemente se acumulavam os seus doentes, entre uma chusma de pretos e pretas, e onde papagaios, macacos e outra bicharia beneficiavam da caridade do Barão.
Esse pátio era a antecâmara do seu consultório aberto a todas as horas, apetrechado de "máquinas físicas" de folha e de vidro, e de boiões e frascaria, panelas de barro e tigelas, onde se guardavam os unguentos, águas e ervas misteriosas do seu receituário. Os livros, que não sabemos se eram de ciência, arrumavam-se em barricas.
São inúmeras as curas que a imprensa da época noticia. Cegos que tinham recuperado a vista, paralíticos que passaram a mover-se e a andar, tuberculosos escapos à morte, manifestam o seu reconhecimento. D. José Benetti, não tinha um dia de descanso, e o pátio de S. Francisco de Paula enchia-se de soldados estropiados e lazarentos que saíam de lá sãos, a dar vivas a D. Maria II e a D. Pedro IV, grito de que ele gostava muito, amigo e protegido da Corte como era.
Na sua clínica abundavam os ingleses. E não só a marinhagem miúda o procurava, quando acertavam de estar no Tejo barcos britânicos. De uma vez até tratou e curou com uma taça de sangue de boi, o Almirante de uma esquadra inglesa, segundo informa Palmeirim. Os soldados dos Voluntários Franceses, aquartelados em S. João de Deus, que tinham sido atacados de cólera, quando da epidemia qu e assolou Lisboa em 1833, tiveram no Barão o seu médico e o seu salvador.
Todos estes trabalhos não impeceram a sua bossa de festeiro nos acontecimentos constitucionais e de organizador de manifestaçõ es piedosas. Mandava dizer missas pelos membros da família real, pelo senhor D. Pedro IV, pela Rainha D. Maria II , dava bodos e esmolas nos dias dos aniversários régios, e tanto era o seu afecto ao Rei Soldado, que, quando ele morreu, mandou pintar de preto a sua casa, e vestir de luto toda a pretaria que lá se abrigava.
Os actos de filantropia e de bondade natural des~se estranho Barão, não foram todavia suficientes para se lhe evitarem algumas sensaborias. Em 1838 houve uma campanha contra ele, julgamos que dos clínicos da capital, e não sabemos se teria sido esta a razão por que esteve preso algum tempo na cadeia de Belém.
Os seus actos humanitários não se cingiam só ao tratamento dos doentes, inteiramente gratuito. O Barão manifestava o seu bom coração, não só fazendo uma constante propaganda a favor da paz entre os portugueses, mas ainda acudindo a qualquer desgraça dos seus semelhantes.
A três pretinhos que lhe tinham nascido em casa, tratava-os como filhos, e quando um deles morreu, mandou-lhe fazer um enterro pomposo, enterro que ele acompanhou, numa sege, vestindo a sua farda melhor que deveria ser péssima, dado que a sua guarda roupa era toda uma farraparia miserável. Aos outros dois negrinhos, nomeou-os seus herdeiros. Charnavam-se José e Ezequiel. Não chegaram, porém, a herdar coisa alguma.
Quando D. José Benetti arrancou da vida, nenhum sucessor nos seus bens apareceu. Só muito mais tarde se deu conta da existência de um tipo, alto, magro e estrábico, que tocava flauta pelos botequins alfacinhas e se dizia filho do excêntrico Barão. Nunca, porém o provou.
Foi na madrugada de 6 de Agosto de 1850 que se deu a morte de D. José Benetti. A nova correu depressa. As autoridades foram à moradia da Rua de S. Francisco de Paula para verificar e arrolar o espólio do falecido, e os curiosos não faltaram a bisbilhotar aquele pardieiro.
A cama, era uma enxerga podre sobre dois bancos de pinho, dois cobertores esburacados e um lençol quase negro. Num cabide penduravam-se roupas velhíssimas que se amontoavam também aos cantos do compartimento. Entre elas estava a farda das ocasiões solenes, decorada com uma comenda, roupas estas que o Juiz da freguesia avaliou em dezoito tostões.
Num baú, bem fechado, escondido entre trapo s, achou-se um saco atestado de bons cruzados novos e de outras moedas, somando este recheio mais de oitocentos mil-réis; e dentro de uma panela três galinhas cozidas, com cujo caldo se alimentava o excêntrico Barão. Inventariados foram igualmente, dois carneiros, um bode, duas galinhas e dois gatos. Os pretos e pretas que eram seus familiares, como não tinham de entrar no inventário, não se contaram.
Apesar do seu feitio dadivoso, D. José Benetti, não consumiu em generosidades toda a sua fazenda. As autoridades tiveram de arrolar três prédios, um na Rua das Trinas, outro na Rua do Noronha, e o terceiro na Rua dos Remédios, propriedades estas de que o Barão nunca pagou décima pela simples razão que as lava de graça a quem as queria habitar.
O funeral custou apenas vinte e nove mil-réis que se foram buscar ao saco que lhe fazia de cofre forte. O resto da herança, foi penhorado e arrematado em praça. D. José Benetti, amortalhado num hábito roxo, numa sege preta, levou à sua última morada um considerável acompanhamento, onde a negraria não faltou.
Lisboa perdeu com ele uma das suas figuras mais típicas. Quando saía da sua baiuca, e vinha à rua, a caminho do Hospital Inglês, onde, ao que parece, dava consultas, ou nas suas deambulações caritativas, os alfacinhas paravam para vê-lo melhor e divertirem-se uns, e admirarem-se outros, da picaresca silhueta que ele e o cavalo formavam, quase fazendo um todo único do mais extravagante aspecto.
O Barão de Catânea. Almanak Popular para o Ano de 1849 cf. Olisipo n°93, 1961 |
O cavalo, era uma alimária de um branco sujo, escanzelada e mal se tendo nas pernas. Havia-o com- prado num "esfola" por doze vinténs, e outro tanto lhe custara o frete. Curou-o das mazelas e fez dele o seu companheiro inseparável.
A "toilette" do Barão estava de acordo com tudo isto. Nas ocasiões solenes, como foi na morte do pretinho e nas festividades e cerimónias que prómovia, vestia uma farda de pano azul, com dragonas, botões amarelos e peitilho encarnado, e, ao peito, uma comenda que ninguem soube o que representava; nos dias vulgares envergava fraque preto, calça de ganga, um chapéu alto inverosímil, carregado para a nuca, e, debaixo do braço, um guarda-chuva com que animava a andadura do rocinante.
Continuam a haver excêntricos em Lisboa, mas excêntricos beneméritos e, ao mesmo tempo, pitorescos, como este barão gibraltino, nunca mais apareceu nenhum . (1)
(1) Gustavo de Matos Sequeira, Olisipo n°93, 1961
Leitura relacionada:
Camilo Castelo Branco, O Demónio do Ouro
Luís Augusto Palmeirim, Os Excêntricos do meu tempo
Feira da Ladra, Tomo III, 1931
David Soares, Morrer Ridículo, Viver Honrado: Como o Barão de Catânia segredou e sobreviveu na lisboa de Oitocentos