E vou até à Calçada dos Caetanos (hoje Rua João Pereira da Rosa), no Bairro Alto, entre o Conservatório e a Rua do Século, a antiga Rua Formosa. Aí moraram Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Ferro e Fernanda de Castro. E estes chamaram-lhe "o soviete dos Caetanos", onde tudo se partilhava, desde o sal e o pão até ao teatro, à poesia e à arte. Vejamos como e porquê.
Rua do Século (antiga Rua Formosa), Lisboa Velha de Roque Gameiro. (à direita o acesso antigo à Calçada dos Caetanos). roquegameiro.org |
No primeiro andar, moraram meus tios-bisavós, Vitória e Joaquim Pedro, tendo o andar sido arrendado depois da morte de minha tia ao jovem casal Ferro, que aí instalou a família, teve um teatrinho e animou um centro intelectual onde outrora se encontravam os "Vencidos da Vida"; no segundo andar viveram Ofélia e Bernardo Marques, Fred Kradolfer, José Gomes Ferreira e a sua primeira mulher, Ingrid, e nas águas-furtadas Ramalho Ortigão, que indicou a casa a Oliveira Martins quando este veio para Lisboa, em 1888.
As placas na fachada do n° 6 da Calçada dos Caetanos (hoje Rua João Pereira da Rosa), no Bairro Alto. getLISBON |
Quando os Ferros arrendaram a casa em 1922, ainda moravam no 2.º andar as senhoras Campos, que tinham sido aias dos príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel. E sobre esse tempo, Fernanda de Castro confessa em Ao Fim da Memória (Verbo, 1986):
"Não tínhamos cheta, ninguém tinha um tostão. Fazia-se café e chá, o Leitão de Barros trazia coisas de casa, eu comprava seis bolos de arroz que cortava em fatias e servia em pratas da Índia. Era deslumbrante! As reuniões literárias, as leituras de peças e de poemas eram um encanto (...) Ninguém pensava em dinheiro, havia então essa superioridade de espírito, os valores dominantes eram os da honradez, os de não nos aproveitarmos das coisas públicas." (1)
Um dia, porém, grande reboliço no meu prédio, e o António chegou a casa dizendo: — “Sabes quem vem cá para cima? O Bernardo e a Ofélia, o José Gomes Ferreira e a Ingrid.” (...) A verdade é que, pela escada, subiam e desciam moços carregados com móveis, malas e caixotes, cavaletes e estiradores.
Retrato, Ofélia Marques, c. 1930. Museu Amadeo de Souza Cardozo |
Habituada ao silêncio um pouco lúgubre do prédio, onde, no 2.° andar, moravam apenas, nos últimos meses, as duas criadas, muito velhas e muito surdas das senhoras Campos (aias da realeza, dos príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel), o contraste era de molde a provocar verdadeira estupefacção nas pessoas que vinham a minha casa e nos que subiam às águas furtadas (...)
As senhoras Campos morreram uma após a outra, e as criadas, tão velhas ou mais do que elas, morreram por sua vez e a casa ficou triste, vazia, povoada apenas por recordações, saudades e, quem sabe?, por invisíveis presenças. Foi então, Bernardo, que vocês chegaram, expulsando os fantasmas com a vossa alegria, também, o casal Ingrid Hestnes (1904-1947) e José Gomes Ferreira muito bem-vinda jovialidade, num prédio onde perdurava um «silêncio um pouco lúgubre» (...)
— Deus me livre! Era só o que me faltava (pintar mais)! Uma vez pintei um retrato da mulher do Olavo, caí na asneira de o mandar para uma exposição do SNI, e veja lá o que me aconteceu: deram-me logo o Prémio Souza-Cardoso e nunca mais me deixaram em paz!
Retrato de Luísa d'Eça Leal, Ofélia Marques. (Prémio Amadeo de Souza-Cardozo, 1940) Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de arte |
Encomendas, telefonemas, entrevistas, um horror! Deixem-me em paz, que é o que eu quero; quando pinto ou quando desenho é para mim, para me divertir, e não quando eles querem! Então e a minha liberdade?
Um dia perguntei-lhe a rir: — Ó Ofélia, isso não dá com as suas ideias ditas avançadas. O seu talento não é só seu, deve pertencer a todos, beneficiar todos. Como explica a sua atitude egoísta que me parece paradoxal? E ela, sem se desmanchar, com um sorrisinho ao canto do olho: — Que é que você quer, benefício do péssimo estado de coisas.
Criança, Ofélia Marques, c. 1940. Centro de Arte Moderna Gulbenkian |
A senhora Dona Ofélia morreu! Fiquei tonta, desmoralizada e perguntei-lhe: — O quê?! Quando? Como? A Jacinta, com muitas pausas e muitas hesitações, acabou por me dizer: — Foi a Maria que a encontrou. Ela tem as chaves da casa e quando entrou à hora habitual e levou o café à senhora, viu logo que ela estava morta, porque estava gelada e não respirava (...)
O António acabava de acordar e a Jacinta já lhe dera a triste notícia. Assim que me viu, perguntou-me, ansioso: — Então?! É verdade?! Está morta? Não há nada a fazer? Não a levaram para o hospital? Disse-lhe que não, que a família dela já lá estava, assim como o médico e alguns amigos.
O António, completamente transtornado, dizia inexplicavelmente: — A culpa foi minha, devia ter compreendido, devia ter compreendido! Contou-me então que na véspera, ao voltar do S.N.I (...) encontrara a Ofélia sentada num dos degraus da escada, tão visivelmente transtornada que a levara para dentro de casa e estivera a conversar com ela até perto das 3 horas da manhã.
Então, com visível esforço, ela levantou-se, despediu-se e subiu as escadas, deixando a impressão de sentir-se terrivelmente só e infeliz. E continuou, aterrado: - Então vão ter que lhe fazer uma autópsia. Que horror! E para quê? Não foram os comprimidos que a mataram, foi a solidão! (...) nessa altura, ela e o Bernardo já estavam separados há imenso tempo (...)
Não teve pois nada que ver com o Bernardo o suicídio da Ofélia, assim como não teve nada que ver com Ofélia o suicídio do Bernardo, ocorrido algum tempo depois (1962) e com o qual algumas pessoas sensacionalistas tentaram estabelecer ligação (...) (2)
A Ofélia tinha a loucura da praia e você, Bernardo, fingia ter o mesmo amor, o que estava longe de ser verdade. Então, em qualquer pedacinho de papel branco, desenhava o mar, a praia, as barracas dos banhistas, o homem dos barquilhos e punha por baixo uma enorme interrogação.
Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930. A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça (1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969) , Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret). Casa Comum |
A Ofélia recebia o bilhete e apressava-se a responder, desenhando a Estação do Cais do Sodré, o comboio e um enorme relógio em que o número 12 estava sublinhado duas ou três vezes, limitando-se a escrever por baixo: Domingo. Assim, no Domingo seguinte, ao meio dia em ponto, lá estavam os dois no Cais do Sodré (...)
A Ofélia tinha um gato. Lembra-se, Bernardo, do nome que ela lhe pôs? “O Pintam”. Quando eu lhe perguntei a razão desse nome bizarro ela respondeu-me, com naturalidade: — “Todos o acham medonho, mas olhe que não é tão feio “como o pintam!” (...)
(...) um belo dia, ninguém sabe como nem quando nem porquê a vida meteu-se irremediavelmente de permeio entre vocês os dois. Você, Bernardo, saíu de casa, mal ou bem a Ofélia refez a sua vida, a Ingrid e o José Gomes desapareceram, assim como o Fred Kradolfer, cuja passagem por sua casa tinha sido relativamente efémera.
Retrato de Raúl Hestnes Ferreira, Ofélia Marques, 1936. (Colecção da família de José Gomes Ferreira) Silêncios e Memórias |
No 2.° andar da Calçada dos Caetanos ficou só a Ofélia com o seu gato e a sua fiel Maria, que vinha todos os dias algumas horas ajudá-la no serviço da casa. Para onde fora a alegria, o entusiasmo, o bom humor que até então enchiam de sol o velho casarão pombalino? Não morreu ninguém, mas a casa estava de luto.
As janelas fechadas, o silêncio total porque os gatos não fazem barulho. A Ofélia saía todos os dias e voltava tarde, muitas vezes depois da meia noite. Andava pálida, sem alegria mas também sem tristeza visível: indiferente.
A si, Bernardo, passei anos sem o ver (...) Um dia vieram dizer-me: — “Sabe, o Bernardo casou.” —“Casou?! Com quem?” Só alguns meses mais tarde você me apresentou a Maria Elisa. Já não me lembro bem nem quando nem onde.
Retrato imaginado enquanto criança, Fernanda de Castro. Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian |
Além do gato havia uma Maria, espécie de mulher-a-dias do casal Bernardo-Ofélia e esta Maria era a mãe daquela criança triste, de grandes olhos negros que a Ofélia desenhou e pintou em alguns dos seus melhores trabalhos (...) (3)
(1) Guilherme d’Oliveira Martins, O soviete dos Caetanos, DN 15 de março de 2021
(2) Fernanda de Castro, Ao fim da memória, cit. em A. Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952)...
(3) Fernanda de Castro, Cartas para além do tempo, cit. em A. Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952)...
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Mais informação:
Manuel Mendes, revista Ler, Um álbum inédito de desenhos de Ofélia Marques
Manuel Mendes, Ofélia Marques e os seus amigos quando jovens, revista Eva nº 1149, Natal de 1967
Emilia Ferreira, Desenhos do silêncio (cf. catálogo da Exposição sobre Ofélia Marques, em 2002, na Casa da Cerca, Centro de Arte Contemporânea)
Ana Luísa Vilela, Fabio Mario da Silva e Maria Lúcia Dal Farra, O feminino e o moderno, 2017
Andreia Filipa Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952): mulher artista no modernismo português. A menina Ophelia Cruz que é hoje Ofélia Marques
Ofélia Marques, biografia (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
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