Vista da Grande Procissão do Auto de Fé da Inquisição. Vue de la grande Prossession de Lo to da fé ou l'on voit les Criminels Jugés par l'Inquisition à Lisbonne. Cabral Moncada Leilões |
A procissão saia do palácio do Rossio, para a praça da Ribeira, onde tinha lugar a cerimonia. Vinham a frente os carvoeiros, armados de piques e mosquetes para olhar pelas fogueiras; depois um crucifixo alfado, e os frades de S. Domingos, nos seus habitos e escapularios brancos, com a cruz preta, levando o estandarte da Inquisiçao, onde numa bandeira de seda se via a figura do santo, tendo numa das maos a espada vingadora, na outra um ramo de oliveira: Justitia et Misericordia.
Vista da Grande Procissão do Auto de Fé da Inquisição (detalhe). Vue de la grande Prossession de Lo to da fé ou l'on voit les Criminels Jugés par l'Inquisition à Lisbonne. Cabral Moncada Leilões |
Após os frades, seguiam as pessoas de qualidade, a pé; familiares da Inquisiçao, vestidos de branco e preto, com as cruzes das duas cores, bordadas a fio de ouro.
Depois vinham os réus, um a um, em linha; primeiro os mortos, depois os vivos: fictos, confictos, falsos, simulados, confitentes, diminutos, impenitentes, negativos, pertinazes, relapsos — por ordem de categoria dos delitos, a começar nos mortos e pelos contumazes.
Vista da Grande Procissão do Auto de Fé da Inquisição (detalhe). Vue de la grande Prossession de Lo to da fé ou l'on voit les Criminels Jugés par l'Inquisition à Lisbonne. Cabral Moncada Leilões |
Em varas erguidas como guides, que os homens de samarra e capuz de holandilha preta levavam, penduravam-se as estatuas dos condenados ausentes, vestindo as carochas e sambenitos; e se a estátua representava o morto, outro verdugo seguia após dela com uma caixa negra pintada de demónios e chamas, contendo os ossos para serem lançados aos pés da estátua na fogueira.
Mais de uma vez se queimaram esqueletos desenterrados de pessoas que, imunes durante a vida, foram julgadas e condenadas depois de mortas.
Em seguida vinham os reus vivos, por ordem crescente de gravidade dos crimes, sem distinçao de sexos, um a um, com o padrinho ao lado, ou com o confessor dominico, se iam a queimar. Os homens vestiam um fato raiado de branco e preto, com as maos, a cabeça e os pés nus; as mulheres apareciam em longos habitos da mesma fazenda.
Vista da Grande Procissão do Auto de Fé da Inquisição CML 01 Wikipédia |
Traziam todos tochas de cera amarela na mão e o baraço ao pescoço. Insígnias diferentes distinguiam os que iam ao fogo, dos penitentes e dos confessores. Estes vestiam o sambenito, especie de casula branca, com as cruzes de Santo André, vermelhas, no peito e nas costas; e levavam a cabeça descoberta.
Os que depois da sentença tinham obtido perdão da fogueira, levavam samarra, uma casula parda; e carocha, uma mitra de papelão; e numa e noutra, pintadas, linguas de chama invertidas, o fogo revolto, a indicar a sua sorte.
Lisboa, Rossio, Palácio dos Estaús, Procissão do Auto de Fé, Pieter Vander Aa, rep. c. 1707. Histórias de Lisboa, Tempos Fortes |
Os condenados a morte, quer para serem estrangulados primeiro, quer não, os destinados, vivos ou mortos, à queima, levavam na samarra e na carocha o retrato pintado, ardendo em chamas, com demonios pretos pelo meio, e o nome escrito, e o crime por que padeciam.
Depois da estirada procissao, no couce, vinham os alabardeiros da Inquisiçao, e, a cavalo, os oficiais do conselho supremo, inquisidores, qualificadores, relatores, e mais sequazes da corte. Os sinos dobravam pausadamente nas torres das igrejas.
Diverses figures de ceux qui sont conduits aux Autos da Fé, Juan Alvarez de Colmenar(Pieter Vander Aa). Museu de Lisboa |
A turba apinhava-se nas ruas, insultando os pacientes com palavras desonestas e atirando-lhes pedras e lama.
Cordões de tropa impediam que o povo invadisse, na praça, o recinto reservado ao Auto. Havia ali, para um lado, afastadas, as pilhas de madeira, retangulares, com o poste erguido ao centro e um banco; e no meio da praça um espaço reservado com o estrado e as tribunas.
Na da esquerda estava o rei, D. Joao III, piedosamente satisfeito na sua fé, como espirito duro, mas sincero e forte; estavam a rainha e a corte; e, ao lado do monarca, o condestavel com o estoque desembainhado.
Na outra, da direita, levantavam-se o trono e dossel do cardeal D. Henrique, depois rei, e agora infante inquisidor-mor, ladeado pelos membros do tribunal sagrado, nos seus bancos.
A meio do tablado ficava o altar, com frontal preto, banqueta de cera amarela, e um crucifixo ao centro. Em frente, num plinto, erguia-se o estandarte da Inquisição. A um lado tinha o púlpito; ao outro a mesa dos relatores das sentenças, coalhada de papeis com selos pendentes; e os padecentes, em linhas, ficavam de pe, voltados para o altar, para o pulpito, para o tribunal.
Disse-se missa. O inquisidor-mor, de capa e mitra, apresentou ao rei os Evangelhos, para sobre eles jurar e defender a fé. D. Joao III e todos, de pe e descobertos, juraram com solenidade sincera. Depois houve sermao; e finalmente a leitura das sentenças, começando pelos crimes menores.
A adoração das imagens, questão debatida nos concilios, dava lugar a muitas faltas. Outros iam ali por terem recusado beijar os santos dos mealheiros, com que os irmaos andavam pelas ruas pedindo esmola. Outros por irreverencias, outros por falta de cumprimento dos preceitos canónicos; muitos por coisa nenhuma; a maxima parte, vitimas de delações perfidas ou interessadas.
A inquisição em Portugal. Alain Manesson Mallet, Description de l Univers, 1683. Internet Archive |
Os relatores iam lendo as sentenças, os condenados gemendo, uns, e chorando; outros exultando por se verem soltos do carcere, livres da tortura, prometendo a si para consigo serem de futuro meticulosamente hipócritas.
Chegou-se finalmente aos condenados a morte, no fogo: eram três mulheres por bruxas, e dois homens, cristaos-novos, por judaizarem, mais um por feiticeiro.
O relator, imperturbavel, leu as sentenças, onde se narravam os crimes. Os cristãos-novos comiam paes azimos; e um deles, quando varria a casa, chamava nomes a um crucifixo, fazia-lhe caretas, e dava-lhe tantas unhadas quantos eram os golpes de vassoura no chao.
Estes crimes vinham envolvidos em frases horrorosas e generalidades tremendas; e a corte, o clero e o povo, ao ouvirem tao grandes sacrilegios, pasmavam de odio contra os desgraçados.
A feiticeira nao os impressionava menos. Cristãos-novos e bruxos, que lançavam maleficios e olhados, eram a causa das pestes, das fomes e dos naufragios das naus da India. Sobre as cabefas dos desgrafados caiam as maldições de uma popuIação aflita.
Ninguem duvidava da verdade dos crimes, que muitas testemunhas afiançavam. O diabo aparecera a um, e ensinara-lhe as curas infernais, pelo livro de S. Cipriano. Sangrava os doentes na testa, com alfmetes. Estou picado e enfeitiçado: Jesus! nome de Jesus! despicai-me e desenfeitiçai-me! — dissera uma vitima a um padre da Beira.
Os diabos, para se vingarem, foram a casa do padre e quebraram-lhe toda a louça. Um caso terrivel era esse; e o povo olhava com horror para o médico de S. Cipriano, que tinha a Ioucura evidente na face. — As bruxas o diabo aparecia de dia sob a forma de um gato preto, e de noite, de forma humana de homem pequeno; assim o dizia gravemente a sentença, com o depoimento das testemunhas.
A bruxa saia com o demónio e iam juntos a um rio, onde as outras estavam com outros demónios; e depois de se banharem tinham coito com circunstancias lascivas e abominaveis; a sentença enumerava-as, e a devassidao da corte e do povo percebia-as, comentava-as. De volta ao sabbath, de madrugada, as bruxas entravam invisivelmente nas casas, perseguindo as familias honestas e piedosas.
Terminada a leitura, absolvidos os penitentes, os cristaos-novos e as bruxas foram relaxados ao braço secular, para serem queimados. O rei, a corte, o inquisidor retiraram-se; e os sinos continuavam a dobrar, pausada e funebremente.
Os carvoeiros de alabardas, os verdugos de capuzes, e os frades de escapulário e crucifixo na mão, ficaram junto dos condenados para os queimar.
Execução dos condenados acusados pela Inquisição (orig. gravura óptica inv.). Executions des Criminels Condamnées par l'Inquisition. Cabral Moncada Leilões |
O povo cercou em massa o lugar das pilhas quadrangulares de lenha, com os olhos avidos, e a cabeça cheia de cóleras contra esses réus das suas desgraças. Todos, menos o bruxo, morreram piedosamente, garrotados, depois de queimados.
O medico de S. Cipriano, porem, tinha culpas maiores e fora condenado a ser queimado vivo. Junto da pilha, o frade, com as maos postas, pedia-lhe que, por Deus, se arrependesse; mas ele, com o olhar esgazeado do louco, virara a cara e zombava. Largando a correr pela escada, subia a pilha, e do alto, sentado no banco, fazia esgares e visagens irreverentes.
O frade batia nos peitos, a plebe rugia colerica. Os verdugos amarraram-no ao poste, e os carvoeiros acenderam a fogueira, que principiou a crepitar. Os rapazes e as mulheres da Ribeira, salteando-o com paus e garrunchos, arrancaram-lhe um olho. Atiravam-lhe pedras, pregos e tudo; e faziam-lhe feridas por onde escorria sangue: tinha a cabeça aberta e um beiço rasgado.
Entretanto, a chama começava a romper por entre os toros; e ele com as mãos estorcendo-se, dava no fogo, querendo apaga-lo; e quando via, com o olho que lhe restava, vir no ar uma pedra, fazia rodela ou escudo com a samarra, para se livrar. Do vão do outro olho escorria pela face um fio de sangue. Isto já durava por mais de uma hora e divertia muito o povo — agora que tinha a certeza de ver morrer o seu inimigo.
Lisboa, Terreiro do Paço, Maneira de queimar os que foram condenados pela Inquisição, Pieter Vander Aa, rep. c. 1707. Histórias de Lisboa, Tempos Fortes |
Mas o vento, que soprava rijo do poente, da banda do rio, arrastava consigo as chamas; e por nao ter fumos que o afogassem, o condenado ficou tres horas vivo, a torrar, agonizando, contorcendo-se, em visagens, e gritando — ai!... ai!... ai!...
Prolongara-se o suplicio pela tarde; e, no paço, a familia real comentava o sucedido, acusando todos com furia os cristaos-novos e os feiticeiros. (1)
(1) Oliveira Martins, História De Portugal