Modelo nu Victorine Meurent, Olympia, Édouard Manet, 1863. Imagem: WikiArt |
Os modelos! Escrever-se-iam volumes sobre esta variedade sui generis da espécie humana, eterno entontar do burguês. Mas sendo-nos o lugar limitado, fechar-nos-emos no quadro modesto de um esboço.
Há modelo e modelo, como em tudo. Durante a pose, o modelo é modelo tão simplesmente, — terceiro sexo, sexo neutro, se quiserem; fora da pose, é uma individualidade qualquer. A tal mulher, que se expõe in naturalibus aos olhos dos artistas, é uma excelente mãe de familia, uma dona de casa realizada.
A tal outra que posa vestida, e não quereria, por todo o ouro do mundo inteiro, mostrar ao pintor o seu pescoço, entrega a amadores, na intimidade da alcova, os tesouros que a natureza abundantemente a dotou.
No tempo em que habitava a casa onde hoje mora o embaixador de Inglaterra, Pauline Borghèse posa nua — como o discurso de um académico — perante Canova. Ecomo uma, grande dama, das suas amigas, escandalizada com essa complacência, lhe disse: — Nua! Perante um homem! Ah! Minha cara, como pôde você?
Arte Escultura Pauline Borghèse Bonaparte en Vénus Antonio Canova.jpg Imagem: Panorama de l'art |
— Bah! Respondeu a princesa, havia um fogo!
Havia um fogo. Isto diz tudo. O modelo nu não vê nem para além nem para aquém. Passeia-se como Eva, através do atelier, aquece-se ao lume, as mãos atrás das costas, assoa-se num lenço que pende nas travessas de uma cadeira, tudo isso tranquilamente, sem prestar atenção, como vestido.
De facto, está trajado duma beleza púdica
De que a Arte foi o alfaiate.
Para ele o pintor não é um homem, não mais do que ele não é uma mulher para o pintor. Artista e modelo vivem, na actualidade da pose, num mundo ideal onde os sexos não existem e onde a matéria se revela, por assim dizer, aos olhos da alma mais do que aos olhos do corpo.
Mas se um intruso bate à porta do templo, o modelo foge assustado, escondendo-se atrás de uma cortina, — ad salices. O pudor, essa virtude que dorme em toda a mulher, acorda desde que um profano aparece.
A par dos modelos que posam o nu, há os modelos que "posam o traje". Tal está deslumbrante em Parisienne de dia, tal em Louis XIV, tal em Marie Stuart. Esta aqui posa o penteado à chinesa , à Louis XV, à Romana; aquela o chapéu; uma outra a mão, uma outra o pé, uma outra enfim os ombros, o peito, as costas, as pernas. Chega-se a que, para uma só estátua, um escultor empregue sete a oito modelos, a cada um deles a sua especialidade.
Moralmente, as especialidades, são assim também tão diversas.
Eis, para começar, o modelo sério, aquele com que casamos após um estágio, mais ou menos longo, de virtude.
Eis o modelo sentimental que, aficcionado a uns só artistas, se reserva somente para eles, e o seu antípoda, o modelo que permanece sábio nos ateliers e, à noite, em Elysée-Montmartre, gasta alegremente o seu capital.
Eis o modelo "bom rapaz" que junta à beleza das formas um excelente carácter e todos os instintos da mulher de limpeza, limpa o pó ao atelier, acende o fogo, cose os fundilhos das cuecas.
Tal como esta grande rapariga de longos cabelos castanhos, Marie G., honesta tanto como modelo no mundo, mas que não sabe nada recusar ao artista, é a sua amante para o não vexar, a criada por economia, o seu modelo porque ela tem o necessário para isso, — não incomodativa, de uma exactidão cronométrica, chegando à hora, retirando-se ao primeiro sinal e retomando os peúgos entre duas poses.
Eis, enfim, o modelo pretensioso [parece-nos uma referência, pouco fundamentada, a Rosalie Tobia], que não vai senão aos grandes pintores, ou pelo menos aos medalhados. Aquela não posa somente, ela aconselha. Se há algum aluno no atelier do mestre, ela admoesta-o com azedume, e, se ele protesta: — Eu conheço-me, diz ela, a Virgem de Bouguereau, meu pequeno, fui eu que a posei!
Temos, no público, o preconceito do "belo modelo". Imaginamos que ele deva ser o tipo de beleza perfeita. Não é nada disso. Os pintores — assim como os escultores — prezam igualmente à perfeição das formas, a arte de posar, o savoir-faire, a elegância do gesto, a harmonia do conjunto, a profissão, numa palavra. À bela rapariga "posando como uma grua" — é o termo técnico — não há um que não prefira o velho modelo posando bem "os movimentos".
Permitam que vos apresente alguns modelos à vista.
Victorine Meurent, tipo de modelo antigo, posou para Stevens, Manet, Clairin, Gervex. Ruiva de cabelos. É tingida de literatura. Diz a cançoneta agradavelmente.
Victorine Meurent, Le chemin de fer, Édouard Manet, 1872-73. Imagem: Wikipedia |
Existência das mais agitadas, partilhada entre os grandes ateliers e os pequenos teatros, — os Folies-Marigny foram o seu berço. Tornou-se pintora à força de frequentar os artistas. Pinta os cães das prostitutas elegantes, é a sua especialidade. Habita em Asnières, onde tem, num tapeceiro vizinho ao teatro, uma exposição permanente das suas obras.
Madame Bertha [Berthe Morisot, ela mesmo artista de mérito] uma grande mulher muito elegante. Posa vestuário nos ateliers dos pintores "parisienses" [Jean] Béraud, [Alfred] Stevens, [Jean-Louis] Forain, Robert [Rosenblum], etc. Muito "boulevardière".
Berthe Morisot com um bouquet de violetas, Édouard Manet, 1872. Imagem: Wikipedia |
Louise, uma bonita loura, grande como tudo, mas constituída como a Vénus de Milo. Plena de graças — com algumas virtudes.
Emma [Dupont], modelo sábia, encontra as suas poses ela própria; posa neste momente em casa de Gérôme.
Emma (collection madame Emma Dupont), estudo de Jean-León Gérôme, c. 1876. Imagem: Marc Verat |
Fernande [não confundir com Fernande Olivier (1881-1966)], como Victorine, tipo de modelo antigo. Não posa mais do que raramente, mas mostra-se ainda nos ateliers. Frequenta uma cervejaria da rua [Pierre] Fontaine. Tem o seu museu, rua Lepic. Quase todos os modelos têm o seu museu. Qual o pintor que recusaria um esquisso, um croqui, à bela rapariga que a ele se mostrou, durante várias horas, fora de todos os seus véus?
Anna! Chorem, meus olhos, deitou no casamento, a soberba criatura com a sua tez de bistro, os seus grandes olhos negros e a a sua admirável correcção de traços! Mas ela tinha um vício, uma serpente sob essas flores, ela estava quase sempre numa situação interessante.
Então, adeus à pose! Durante os entre actos, ela servia nas cervejarias do Quartier Latin, na Sherry-Gobler, entre outras, esse "bouchon" minusculo, hoje desaparecido, cuja história faria "pendant" ao Roman comique, e de onde partiram todos os "jovens" desse tempo, Richepin, Maupassant, Paul Bourget, Catulle Mendès, Villiers de l'Isle-Adam, Bouchor, Moynet, Sapeck, etc.
Um dia que Anna tremia de febre, o ilustre Sapeck tomou-se de piedade, levou-a para o sol, tratou-a, curou-a e, por excesso de originalidade, esqueceu-se de a fazer sua amante. Anna regressa a Paris.
Um poeta instala-a como florista, rua de Amsterdam; faz negócios lamentáveis e torna-se modelo. Ei-la, agora, esposa e mãe. Chorem, meus olhos!
Existe, entre as modelos do bairro de Montparnasse e as da avenida de Villiers, um eterno antagonismo, que degenera por vezes em brigas de arranhar a cara e arrancar os cabelos. E é fácil de entender. Lá em baixo, no Luxembourg, é a primeira etapa, frequentemente cruel; aqui, no parque Monceau, é o apogeu.
Modelo nu Victorine Meurent, Déjeuner sur l'herbe, Édouard Manet, 1863. Imagem: WikiArt |
É aí que encontramos uma multidão de gente muito bem, amadores apaixonados dos quadros, que nem sempre se contentam com a cópia, e se anexam por vezes ao original. E qual o modelo que não acarinhou esse sonho!
Moralidade: — não há! (1)
(1) Parisis (Emile Blavet), La Vie parisienne..., Paris, L. Boulanger et P. Ollendorff, 1885-1890
Informação relacionada:
Ellen Andrée. Modèle à Montmartre. (Manet, Degas, Renoir...)
Quando pittore fai rima con amore
Informação adicional:
Catalogue illustré du Salon [de Paris]... (28 numéros disponibles, 1879-1907)
Salon des Refusés (1863)
Société anonyme des artistes peintres, sculpteurs et graveurs (1874-1886)
Salon des indépendants (depuis 1884)
Leitura adicional:
Dictionary of Artists' Models
Charles Virmaître, Portraits pittoresques de Paris
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