sábado, 30 de agosto de 2025

Laboratorio Chimico na Margueira

Deste Laboratório-Fábrica sito na Margueira, temos notícia desde 1825, quando surgiu, pela mão de João Paulino Vergolino de Almeida, que se preparara no Curso de Física e de Química do Laboratório de Química da Casa da Moeda, trabalhando durante dois anos «debaixo das vistas e direcções do hábil Professor Luís da Silva Mousinho de Albuquerque», que pretendia avançar, nesse estabelecimento, com a obtenção em grande do óleo de vitríolo (ácido sulfúrico) que era, na altura, importado na totalidade.

Esboços de Paizages d'Mediterraneo e Lisboa, 29.
Laboratorio de Chimica no Citio da Margueira, Luiz Gonzaga Pereira, 1809.
Museu de Lisboa


Os obstáculos encontrados no respeitante à isenção de direitos das matérias-primas – condição necessária para viabilizar economicamente essa produção – que nem mesmo as vantagens da substituição de importações pareciam ter o efeito de afastar, foram atrasando o processo de concretização desta indústria no dito estabelecimento, que entretanto foi tratando de vender outras coisas (algumas produzidos localmente, outras adquiridas no estrangeiro), como preparados de chumbo, de marfim, de mercúrio, cremor tártaro, etc.

O estabelecimento de produtos químicos da Margueira só obteve a isenção desejada em 1834, porém, na falta de elementos, não podemos precisar se a ela se seguiu, ou não, o início da produção de ácido sulfúrico - certo é, porém, que a fábrica da Verdelha do Conde do Farrobo já o produzia em 1838, e em 1849 dizia-se que era o único produtor deste género a nível nacional.

O laboratório químico da Margueira foi vendido à família Serzedello, em 1844, e a sua exploração ganhou um considerável desenvolvimento a partir de 1848, altura em que – necessariamente – se deverá ter procedido a reformas tecnológicas no referido estabelecimento.

Laboratorio Chimico de Serzedello & Ca., década de 1840.
(documento do acervo de Carlos António Serzedelo Palhares, Lisboa)

É lógico pensarmos então, que o contra-mestre do estabelecimento da Margueira premiado em 1855 (premiado, portanto com competências notórias para ser distinguido), na Exposição Universal de Paris, poderá muito bem ter sido quem orientou e supervisionou as tais reformas efectuadas em finais da década de 40. Isto significa que José Alexandre Rodrigues, contra-mestre da fábrica de produtos químicos dos irmãos Serzedello já estava ao serviço da dita casa por essa altura. Como se apetrechou este homem com técnicas, conhecimentos e o know-how suficiente para o efectuar?

Serzedello & Ca., década de 1840.
Documento do acervo de Carlos António Serzedelo Palhares, Lisboa

Em 1855 o laboratório da Margueira produzia ácido clorídrico e nítrico, diversos sais de chumbo e de mercúrio, dissoluções de sais (de nitrato de cobre e de cloreto de antimónio) e nitratos (de potássio, de bismuto, de prata, entre outros), os “tártaros”, a potassa cáustica (hidróxido de potássio), etc. (1)

No dia 17 de de Março de 1883, pelas 10 horas e meia, o fogo destruía uma das maiores fabricas do Reino (fábrica de cortiça Henry Bucknall & Sons.), dando trabalho a cerca de 400 pessoas. Ocupando uma grande área, sendo a parte devorada pelo fogo aproximadamente de três mil metros. Quando chegou os socorros a bomba do navio Vasco da Gama, foi impotente para controlar o fogo que consumia um grande número de pilhas de cortiça e pondo em risco a própria fábrica.

Incendio na fábrica Henry Bucknall & Sons na Margueira
Diário Illustrado, 31 de Março 1883

Desenvolveu-se um forte ataque com todas as bombas e pessoal à medida que iam chegando, com o objectivo de salvar a fabrica, todas as atenções eram para a rua principal de Cacilhas, cujos prédios do lado do nascente se encontravam em grande risco, ao ponto da igreja chegar a ser atingida pelo fogo.

Foi através dos esforços do pessoal na defesa dessas propriedades, e principalmente dos marinheiros da armada, em preservar as ruas Direita de Cacilhas e Oliveira, cujos telhados das casas foram fustigados pela força destruidora do fogo. Ás 2 horas da tarde ardiam os moinhos, vinhas, matos, arvoredo, num cenário horroroso. Pelas 4 horas da manhã a preocupação era as casas próximas do laboratório químico da Serzedello & Cia. que sofreu bastantes danos nas estruturas de madeira. (2)


(1) Isabel Cruz, Preparadores de química da Escoma Politécnica (1837-1856)
(2) Diário Illustrado, 31 de Março 1883

Artigos relacionados:
Laboratorio de Chimica no Citio da Margueira
A casa da Quinta da Oliveira
Serzedello & Ca., Laboratorio Chimico na Margueira
O laboratório químico da Margueira
Indústria química

Leitura relacionada:
RELATORIO GERAL DA EXPOSIÇÃO DE PRODUCTOS DE INDUSTRIA PORTUGUEZA, SOCIEDADE PROMOTORA DA INDUSTRIA NACIONAL, EM 22 DE JULHO DE 1838

International exhibition, 1876 at Philadelphia, Diário Illustrado

Mais informação:
"Janêllos" da História: Os Serzedello

domingo, 24 de agosto de 2025

Dom Francisco Manuel de Mello (1608-1666)

Em 19 de Novembro de 1644, quando tudo parecia sorrir-lhe, é preso como suposto instigador dum crime de homicídio. Um tal Francisco Cardoso tivera relações amorosas com a mulher dum criado de D. Francisco Manuel, chamado João Vicente, a quem o escritor havia despedido.

Dom Francisco Manuel de Mello


Cardoso é assassinado, e dois dos criminosos declararam que tinham perpetuado o crime por mandado de D. Francisco Manuel. Preso a pedido do pai do morto, foi D. Francisco encerrado no Castelo, donde depois o transferiram para a Torre de Belém, e mais tarde para a Torre Velha, na margem esquerda do Tejo.

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt, técnica mista, 1794.
Instituto Geográfico do Exército

O juiz dos Cavaleiros condena-o a degredo perpétuo para a Africa. Na segunda instância, é condenado a degredo, mas para a Índia e com privação duma Comenda que lhe havia sido concedida. A terceira instancia mantém o degredo, mas para o Brasil (1650).

Esta sentença só foi mandada executar em 1652, mas só passados mais três anos é que D. Francisco segue para o exílio. Era em 1655, onze anos depois da prisão [...] (1)

De consoada a uma S. P. [F. P. no original]:

Que vos hei de mandar de Caparica,
de que vós, prima, não façais esgares?
Porque de graças e benções aos pares,
disso, graças a Deus, sois vós bem rica...

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço,
a velha catedral e o castelo de S. Jorge, J
oseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
MAGNOLIA BOX


Mel e açúcar? São cousas de botica.
Coscorões? São piores que folares.
Perus? Não, que são pássaros vulgares.
Porco? Só de o dizer nojo me fica,

Mandara-vos o sol, se desta cova
m'o deixaram tomar; mas é fechada
e inda o é mais para mi a rua nova.

Pois, se há de ser de nada a consoada,
mandar-vos hei sequer, prima, esta trova,
que o mesmo vem a ser que não ser nada.

Responde a um amigo [...]:

Casinha desprezível, mal forrada,
furna lá dentro, mais que inferno escura;
fresta pequena ; grade bem segura;
porta só para entrar, logo fechada;

Torre Velha ou Torre de S. Sebastião da Caparica, Francisco de Alincourt, técnica mista, 1794.
Instituto Geográfico do Exército

cama que é potro; mesa destroncada;
pulga que por picar faz matadura;
cão só para agourar ; rato que fura;
candeia nem co'os dedos atiçada;

grilhão, que vos assusta eternamente;
negro boçal e mais boçal ratinho,
que mais vos leva que vos traz da praça;

sem amor, sem amigo, sem parente,
quem mais se doi de vós diz : — "Coutadinho"
Tal vida levo. Santo prol me faça. (2)

Desgraça, enveja de tudo:

Junto do manso Tejo, que corria
para o mar que nos braços o esperava,
jaz um pastor, que no semblante dava
mostras da dor que o coração cobria.

Embouchure de la Rivière Du Tage, Nicholas De Fer, 1710


Falava o gesto quanto n'alma havia,
que quiçá por ser muito ela o calava;
mas, vencido do mal que o atormentava,
sem licença do mal assi dizia:

Cidade e Castelo de Bellisle [Belém, ilhéu] no rio Tejo; o palácio do rei;
Lisboa está atrás deste ponto.
John Thomas Serres (desenho), Joseph Constantine Stadler (gravura), 1801.
Biblioteca Nacional de Portugal

"Corre alegre e soberbo, ó doce Tejo,
pois vives sem fortuna, de que esperes
que encaminhe teu passo a teu desejo.

Vás e tornas é irás como vieres.
Ditoso tu, que vês o que eu não vejo;
ditoso tu, que vás adonde queres" (3)


(1) Francisco Manuel de Melo, O Poeta Melodino, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1921

Artigos relacionados:
Líricas de Melodino
Lisboa e o Tejo em 1650 ou A armada do parlamento (ou do British Commonwealth)

Leitura adicional:
Edgar Prestage, D. Francisco Manuel de Mello... Coimbra, Imprensa  da  Uníversidade, 1914 
M. Rosário Pimentel e M. Rosário Monteiro(org.), D. Francisco Manuel de Melo, O Mundo é Comédia, isboa, ed. Colibri, Dezembro de 2011

Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras de Francisco Manuel de Melo

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O príncipe, por Taunay e Goya

Por razões diversas, hoje no Palácio Nacional de Queluz... continua sem fazer sentido que Taunay em 1816 tenha pintado um retrato póstumo do Príncipe da Beira, D. António Pio (1795-1801).

Retrato póstumo do Príncipe da Beira, D. António Pio
ou D. Sebastião de Bourbon e Bragança
atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816
Parques de Sintra

Estamos em crer, que o retrato acima, de facto, represente o Infante de Portugal e Espanha, filho da infanta Maria Teresa de Bragança (filha mais velha de D. João VI) e do infante Pedro Carlos de Bourbon, o príncipe D. Sebastião de Bourbon e Bragança (1811-1874).

Retrato do Príncipe Dom Sebastião de Bourbon e Bragança
Infante de Portugal e Espanha
Francisco Goya, 1822 (acervo particular)

A Terra de Santa Cruz

O infante nasceu no Palácio de São Cristóvão no Rio de Janeiro, em 1811.


Artigos relacionados:
A familia do rei Clemente

Mais informação:
A Terra de Santa Cruz

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Irmãos desavindos (I de III)

Pelo que toca aos dois irmãos, Pedro e Miguel, o capricho da má fortuna accentua-se salientemente no facto de um, o vencedor, ter morrido logo após a victoria, e o outro, o vencido, ter sobrevivido á derrota durante longos annos de exilio. (1)

Kssssse! Pédro - Ksssse! Ksssse! Miguel! 
"Ces deux capons là ne feront jamais grand mal"
Honoré Daumier, 1833
Biblioteca Nacional de Portugal

Parafraseando uma luta de galos, com a legenda: "Kssssse! Pédro - Ksssse! Ksssse! Miguel! Estes dois capões (galos castrados) nunca farão grande mal", na gravura de Daumier aparecem, D. Pedro apoiado pelo rei dos franceses, Louis-Philippe (regime parlamentar) e D. Miguel, apoiado pelo csar Nicolau I° da Russia (autocrata).

(1) Alberto Pimentel, A ultima côrte do absolutismo em Portugal, Lisboa, Liv. Férin, 1893

Ligações:
D. Pedro IV (1798-1834), Google Arts & Culture
D. Miguel I (1802-1866), Arquivo Municipal do Porto
Miguel (D.), Dicionário histórico

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Irmãos desavindos (II de III)

Comtudo, mesmo assim os realistas sustentavam o combate, e ainda depois de alguns tiros de artilheria e descargas de fusilaria mandou Telles Jordão dar uma segunda carga de cavallaria; foi porem esta mais infeliz do que a primeira, porque grande parte dos cavalleiros foram aprisionados ou se entregaram, assim como quasi toda a artilheria. Immediatamente se introduziu o panico na divisão, e principiou a desorganizar-se. Uns renderam-se, outros fugiram para o interior da Outra-Banda, e para o castello d'Almada, que se entregou no dia seguinte ás 7 horas da manhã, e o resto começou a retirar sobre Mutella.

Bailarico em Cacilhas
(possível original de A. E. Hoffman sobre a celebração da vitória liberal de 1833, c. 1835)
Alberto de Souza, Alfacinhas, Os Lisboêtas do passado e do presente, Lisboa
edição de Fernando Souza
.

Ora, proximo desta povoação, justamente d'onde parte a estrada para Almada, havia uma cortadura com artilheria. Ahi fez Telles Jordão alguma resistencia; mas sendo vencido, tomou pela estrada fóra com o grosso da columna em direcção a Cacilhas, sempre perseguido pelas tropas do duque, que o não deixavam resfolegar um só instante.

Quando isto acontecia viu-se cortarem o ar alguns 4 foguetes, cujo estrepito se confundia como tiroteio, mas que não escaparam ao gordo capitão, commandante dos voluntarios (realistas) de Cintra (major João António da Moita), que retirava no meio de uns 30 dos seus; o resto tinha ficado estirado no campo.


Ao ouvil-os, o capitão olhou para um atentado sargento que o acompanhava, o qual lhe fez um ligeiro aceno de cabeça. O capitão correspondeu-lhe com outro e disse comsigo: "É meu irmão. Ah excellente irmão!" — Ávante, bradou elle, sacudindo a cabeça, como se quizesse afastar as balas que lhe zumbiam aos ouvidos.


A retirada quasi se tornou em debandada. Telles Jordão lá ia com os restos da sua divisão, com o inimigo na rectaguarda sem lhe dar descanço, e perdendo immensa gente, até que chegando junto do poço de Cacilhas tentou fazer alto e resistir desesperadamente, para proteger o embarque que tinha começado; mas não conseguiu senão demorar o inimigo um momento.

Então outros foguetes romperam os ares, e bem os percebeu o capitão de Cintra. Telles Jordão olhou em roda de si desorientado, e de todos os seus officiaes só viu o gordo cintrão com a gola da farda de todo aberta, e cheia do sangue que lhe corria de uma leve ferida na face.

Cacilhas vista do Tejo, gravura xilográfica, João Pedroso, 1846
O Panorama, n° 18, 1847
Hemeroteca Digital de Lisboa

— General! disse-lhe o capitão baixando a voz e rodeando-o com o seu magote de realistas. Temos feito o nosso dever, mas tudo está perdido. Meu pae foi seu camarada e amigo, quero salval-o. A meio da rua de Cacilhas ha uma casa deshabitada. Meu irmão está ali e espera-me. Já duas vezes me fez signal com foguetes. Venha comigo e está salvo.
— Sr. capitão! respondeu o general. O meu dever era matal-o por me propôr que fuja; mas seria uma grande ingratidão, porque as suas intenções são de um leal amigo, que se portou hoje como bravo. Salve-se, que eu fico.
— General, venha comigo! Á noite estaremos em Lisboa. Pelo triumpho da boa causa lhe peço que me acompanhe!
— Não.
— Por Deus e pela boa sorte da sua familia!... Ao menos renda-se.
— Desgraçado! E pensa que me poupavam a vida?!...


Neste momento a multidão levou-os para junto da casa.

— Uma ultima vez lhe peço, general — disse o capitão com as lagrimas nos olhos — siga-me. Mas aquelle homem de ferro cravou os olhos no capitão e disse:
— Não, mil vezes não. Ou hei de ser o ultimo a embarcar com a minha tropa, ou hei de morrer. O capitão calou-se, deixou pender a espada do fiel e gritou — Alto! Os cintrões pararam, e enfileiram-se ao longo da parede, ficando atras d'elles o seu capitão. Então abriu-se uma porta e tomou-se logo a fechar, tendo por ella desapparecido o gordo official. — Armas no chão! disse o sargento para os seus voluntarios.


Dentro da casa, o piloto do Conceição Flôr de Maria abraçava seu irmão — Estás ferido! gritou elle assustado, vendo á luz de uma lanterna o sangue que lhe manchava todo o pescoço e gola da farda. — É uma ferida leve na face. — Toca para o esconderijo! diz (Joaquim de Jesus, por alcunha) Espanta-maridos, porque era elle quem tinha deitado as foguetes, correndo, não sem perigo de vida, pelas quintas proximas á estrada.

A casa toda fechada só era alumiada pela lanterna de Espanta-maridos. No interior havia um quarto que tinha por cima um sotão para onde se subia por escada de mão. Subiram todos tres, recolheram a escada, e deixaram cair o alçapão, ficando o tecto tão regular que não era possivel perceber que por cima havia aquelle esconderijo.

— Estamos seguros — disse Espanta-maridos. Nem o diabo aqui dava comnosco.
— E depois? perguntou o capitão limpando a ferida.
— Depois, respondeu-lhe o irmão, Espanta-maridos descerá em estando tudo acabado, irá pela estrada ao Caramujo, achará o escaler na praia, remará para uma pequena enseada proxima ao Pontal e levar-nos-ha para bordo do Flôr de Maria.
— Eia, o que lá vae fóra! Exclamou o capitão aproximando-se de uma fresta, que só podia ser vista do telhado, mas d'onde se podia ouvir distinctamente o rumor do combate.


Os cintrões tinham-se entregado. Telles Jordão continuou a marchar no meio dos fugitivos até ao cáes.

Ali, coadjuvado pelos soldados de que o forte de Cacilhas estava cheio, e que faziam fogo dos parapeitos, quiz metter em ordem os que o seguiam; mas o inimigo estava junto d'elle, de tal sorte que, alucinado, dirigiu-se a dois officiaes de caçadores contrarios, cuidando que eram dos seus, e gritando-lhes: — Que vergonha esta, srs. officiaes! Ajudem-me a formar estes miseraveis carneiros! Começava a escurecer, e os officiaes, que o não conheceram, e que estranharam a ordem, perguntaram-lhe quem era.

Infelizmente para elle, respondeu: "Sou Telles Jordão. Pois já não conhecem o seu general!..." Então um dos officiaes disparou-lhe uma pistola á queima-roupa, o outro acutilou-o, e uni cabo trespassou-o com a baioneta.


O general, ferido mortalmente, inclinou-se para trás, e caiu desamparado sobre a lage. Estava tudo acabado. O forte da praia entregou-se logo, bem como a pouca tropa que ainda resistia sobre o cáes, e alguns tiros de artilheria, dados com as proprias peças do inimigo, fizeram render os ultimos barcos cheios das suas tropas que fugiam fazendo fogo.

23 de julho de 1833 — Derrota dos Miguelistas em Cacilhas
Cartas das vitórias liberais, litografia Manuel Luiz, 1835
Biblioteca Nacional de Portugal

Já noite fechada, o corpo de Telles Jordão, todo crivado de feridas e com a cabeça horrivelmente mutilada, foi arrastado para fóra do cáes de Cacilhas, e ahi enterrado na areia. E no outro dia o Tejo mandava á praia os cadaveres de muitos soldados, que haviam caido no rio ao embarcarem, e tinham morrido afogados.

Quando Espanta-maridos chegou ao Caramujo, foi testemunha de uma dolorosa scena, que lhe causou vivissima dor, e que o demorou alguns momentos mais do que elle pensava.

A familia de Antão Diniz, acompanhada de Chrysostomo, Jeronymo, e Pedro Marques de Faria, tinha estado com o oratorio aberto, rezando porque Deus valesse a tão grande calamidade, quando para o fim do combate, uma bala perdida, partindo um vidro da janella, entrou no quarto, e foi atravessar o peito ao Faria, que encostado a uma cadeira espreitava para a rua.

Tocando-lhe a bala o coração, a morte foi instantanea; e effectivamente a casa do oratorio de Antão Diniz encontrou-a Espanta-maridos convertida em camara funebre, não para o duque da Terceira, como um official miguelista tão desastradamente dissera, mas para um pobre velho completamente inoffensivo, e que nada tinha com as coisas da guerra. (1)


(1)  António Avelino Amaro da Silva, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Irmãos desavindos (III de III)

No tempo da guerra civil, das lutas entre liberais e miguelistas, o avô materno (Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício van Odyck), partidário de D. Miguel, e o irmão daquele, o tio José Dionísio (Telles de Castro Aparício van Odyck), fiel a D. Pedro IV, haviam gasto rios de dinheiro pelas respectivas causas, vendendo aqui, hipotecando além, fanáticos, apaixonados, adorando-se como irmãos, odiando-se como adversários políticos.

Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910.
Fotografia de Ramon Bayó
cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987

Alternadamente no exílio, a caminho da América ou da Inglaterra o avô António Feliciano fizera as campanhas do Rio da Prata, o tio José Dionísio estivera em Plymouth com Palmela e daí embarcara clandestinamente para os Açores — haviam sido forçados a trocar vinho e cortiça por bolsas de libras que a mãe, a avó Ana Francisca (Telles de Castro Rolim van Odick), lhes mandava às escondidas por emissários embuçados e fiéis.

Uma vez, contava-o com orgulho, chegara mesmo a ir a bordo, disfarçada de vendedeira de ovos, levar dinheiro ao filho mais novo, passageiro clandestino de um veleiro, que, aclamado D. Miguel, ia esconder nos nevoeiros de Londres a sua amarga desilusão.

Depois, quando tudo serenara, quando, assinada a Convenção de Évora-Monte, D. Miguel embarcara para Génova, quando, por morte de D. Pedro IV, subira ao trono D. Maria II, amnistiando os presos políticos, pondo fim às lutas fratricidas, o avô António Feliciano enterrara-se na Quinta e procurava salvar os destroços do naufrágio.

O irmão, desiludido de uma liberdade que permitia desmandos e abusos de toda a espécie, declinou honras e favores a que tinha direito e refugiou-se igualmente na velha casa familiar.

Os dois irmãos, morta a paixão política, abraçaram-se e fizeram as pazes. Trataram então de desenterrar as pratas, de vender aqui para resgatar além, de percorrer a cavalo matas e olivais, de afirmar direitos sobre velhos foros, de visitar rendeiros e feitores.

A casa, desmantelada, começou a reviver, como árvore doente a que o sacrifício dalgumas ramadas restitui o vigor. Sem tornar a ser o que fora nos tempos de oiro da avó Ana Francisca, senhora de extensas matas de cortiça, a fortuna da casa parecera equilibrar-se, permitindo à família um desafogo, um bem-estar que havia muito não conhecia.

A casa cor-de-rosa, ilustração de Manuel Lapa, 1945, para o livro de Fernanda de Castro,
Maria da Lua, história de uma casa, 3.a edição, 1960, Livraria Tavares Martins
prémio Ricardo Malheiros, 1945

Voltaram então a ter carruagem, criados, mesa posta para amigos e parentes. Depois, a morte levara a avó Ana Francisca, e a fortuna, ainda mal refeita do abalo que sofrera, não resistira a desequilíbrio provocado pelas partilhas.

O tio José Dionísio, liquidada a herança, fora viver para a Beira, one a administração das propriedades da mulher exigia a sua presença. E o avô António Feliciano, que estava longe de possuir as qualidades de administrador do irmão — a prudência, a moderação, o equilíbrio — vira-se forçado a consentir o casamento da filha com o cunhado (Francisco Liberato e Silva), trinta anos mais velho, a fim de assegurar a educação dos quatro filhos varões, que destinara à carreira das armas.

Sem deixar de lamentar a mãe, casada aos dezasseis anos com um homem de quase cinquenta que nunca deixou de tratar por «tio», a tia Emiliana admirava secretamente aquele avò autoritário que, para salvar a casa, o prestígio do nome, não hesitara em sacrificar a filha.

No íntimo do seu coração, o avô era o seu modelo, o seu conselheiro invisível. «Que faria o avô, se fosse vivo?». E o avò, do fundo do seu silêncio, do alto do seu orgulho, não deixava nunca de lhe responder.

Naquela manhã, emoldurado de talha dourada, com o seu belo fardamento de lanceiros, olhou-a com uns olhos agudos e disse-lhe: — «Na nossa família nunca ninguém vendeu nada. Não comece a menina por vender o que não tem preço: a dignidade, o orgulho...» (...)

ooOoo

A sala onde se encontravam era a mais espaçosa da casa. Tinha duas janelas de peito e duas sacadas com grades verdes e cortinas de renda nas vidraças. Um piano de cauda, de camurças gastas, ocupava um dos cantos da sala. Uma alcatifa cobria o chão e abafava o ruído dos passos. Reposteiros de seda verde, puídos e desbotados, escondiam as portas.

Em casa de Maria Maurícia Telles de Castro e Silva/Liberato Telles, c. 1910.
Fotografia de Ramon Bayó
cf. Alexandre Flores, Almada antiga e moderna, freguesia de Cacilhas, 1987

Sobre as mesas, as consoles, as étagères, álbuns de retratos, jarras com flores de seda, miniaturas, bibelots de Saxe. A mobilia Império, hirta e rebarbativa, alternava com esses sofás, essas cadeiras, essas mesas sem estilo que o tempo nobilita, parentes pobres da casa, adoptados pelo hábito. Numa das paredes, um fogão de sala ladeado por duas poltronas de peluche verde. Na parede oposta, um espelho com a sua moldura de talha dourada.

Sobre a chaminé, um brasão bordado a oiro e a vermelho, caprichosa mistura de dragões e de flores de lis, e dois retratos a óleo: o trisavò Marechal e o avô miguelista que, no tempo do Senhor D. Pedro IV, andara a monte e tivera de emigrar para Inglaterra.

E, finalmente, junto de uma das sacadas, o «canto da avó», com a sua poltrona de molas cansadas e a sua mesa de profundas gavetas. (1)


(1) Fernanda de Castro, Maria da Lua, Lisboa, 1945

Artigos relacionados:
Maria da Lua (Conceição Lamosa)
Ao fim da memória
Liberato Teles
Ofélia

Leitura adicional:
Fernanda de Castro, Ao fim da memória,  Memórias (1906-1939), Porto, Verbo, 1986
Paula Morão, "'Ao Fim da Memória / Memórias' de Fernanda de Castro", Colóquio/Letras, n.º 181, Set. 2012, p. 102-116
Voies du paysage: représentations du monde lusophone cf. Fernanda de Castro, Ao fim da memória, Porto, Verbo, 1986

Informação adicional:
Antonio Feliciano Telles de Castro Aparício (Google search)
José Dionísio Telles de Castro Aparício (Google search)
Fernanda de Castro (Fundação António Quadros))
Revista Colóquio/Letras n° 98 (julho 1987)
Atlântico n.º 5, 1944, Maria da Lua, por Fernanda de Castro, duas ilustrações de Ofélia Marques



Fernanda de Castro (1900-1994) descreve-nos a casa pombalina da sua bisavó, Maria Maurícia Telles de Castro e Silva casada com Francisco Liberato e Silva [ref. no Arquivo Distrital de Setúbal], 2.° comandante da Guarda Municipal, pais de Francisco Liberato Telles de Castro e Silva (1842-1902), nascido em Cacilhas [v. artigo dedicado].

A autora nasce do casamento de Ana Isaura Codina Teles de Castro da Silva (1879-1914), filha de Liberato Telles, com João Filipe das Dores de Quadros (1874-1943), Capitão-Tenente da Marinha e Comendador da Ordem Militar de Avis.

Do casamento de Fernanda de Castro em 1922 com António Ferro, nasceram António Quadros, filósofo e ensaísta, e Fernando Manuel de Quadros Ferro. A escritora Rita Ferro é sua neta.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Sopa de Arroios por Henri l`Évêque

Na epocha em que foi erigido o padrão (ou cruzeiro de Arroios) era o sitio um arrabalde de Lisboa, que tirava o nome, segundo referem alguns auclores antigos, de umas hervas que alli cresciam em abundancia, a que chamavam arroyos, e das quaes falia o auctor da Luz da Medicina como planta medicinal. Com o andar dos tempos foi crescendo a cidade por fóra da sua velha cêrca de muros, até abranger dentro em si aquelle sitio, que se povoou de casaria; e cujo nome ficou ao largo acima referido, á rua que n'elle termina, lendo começado no terreiro de Santa Barbara, e á calçada, que vae d'aquelle largo até ás barreiras do Arco do Cego.

À l'approche de l'armée de Masséna sur Lisbonne, les habitants des provinces quittent leur maison pour se réfugier, escortés des anglais dans la capitale, 1810,
Henri l'Évêque
MutualArt

Do mesmo largo d'Arroyos parte a estrada de Sacavém, que conduz ao norte da Estremadura do reino. E celebre o largo d'Arroyos na historia moderna de Lisboa pelas scenas populares de que foi theatro, por occasião da invasão franceza em 1810. (1)

No anno de 1837 o município de Lisboa no douvavel intuito de desobstruir a capital de tudo que a pejasse, embaraçando o transito, mandou desfazer este monumento, que era um specimen bastante valioso da esculptura porlugueza no primeiro quartel ou metade do século XVI. Por este critério, os futuros munícipes de Lisboa mandarão talvez remover, senão todos, a maior parle dos monumentos, que adornam as nossas praças. Felizmente, o vandalismo não chegou a ponto de destruir o padrão de Arroyos, limitando-se a mandal-o remover para a visinha parochial de S. Jorge, onde se póde contemplar actualmenle.

Sopa de Arroios, população portuguesa deslocada durante a Guerra Peninsular em 1810,
des. Domingos António de Sequeira,  grav. Gregório Francisco de Queiroz, 1813.
Biblioteca Nacional de Portugal

O Largo de Arroyos foi o scenario de um d’esses episodios lancinantes que o illustre pintor Sequeira perpetuou com o seu lápis e que um discípulo de Bartolozzi, o nosso compatriota Gregorio Fernandes de Queiroz, reproduziu n’uma bella e grande gravura que é hoje muito apreciada. Ahi se vê o padrão de Arroyos, lai qual elle era, com o seu competenle resguardo. (2)


(1) Ignacio de Vilhena Barbosa, Monumentos de Portugal... Lisboa, Castro Irmão, 1886
(2) Boletim de architectura e de archeologia da Real Associação dos Architectos Civis e Archéologos Portuguezes, 1876

Ligações adicionais:
Campaigns of the British Army
Costume of Portugal
Henri l'Evêque, c. 1814
Henri l'Evêque, c. 1814

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Mais informação:
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Travessa das freiras a Arroios
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