segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A sahida da última nau portuguesa

Raiou, emfim, o dia 8 de março de 1849, dia em que a nau Vasco da Gama ia, por algum tempo, abandonar o seu ancoradouro no Tejo, e em que eu deixava também Lisboa, cuja barra só devia tornar a entrar no dia 31 de maio de 1865, a bordo do paquete inglez Paraná.

Busto do almirante Vasco da Gama usado como carranca da nau homónima em exposição no Museu de Marinha.
Revista da Armada

O sol, dardejando seus raios dourados por sobre todas as imminencias que, n'uma e n'outra margem, dominam o crystalino Tejo, deixava-nos admirar as mil variadas paisagens que as tornam tão pittorescas, e dão ao nosso porto, a merecida fama de um dos mais formosos da Europa.

No próprio Tejo, a vista aprazível do azul de suas aguas, que centenas de pequeninas embarcações iam sulcando, mui brilhantemente contribuía também para o magnifico aspecto que, de ordinário, offerece o porro de Lisboa, e que, n'este dia da nossa despedida, parecia ter mais poesia e maiores encantos.

O vapor  Mindello que, desde a véspera fundeara ao lado da nau, fazia já ouvir os agudos silvos da sua machina, por cuja chaminé também já sahiam grossos novellos de fumo.

A bordo da nau tudo se dispunha para a partida.

Lisboa Nau Vasco da Gama (1841-1872).
Arquivo Histórico da Marinha

A lancha foi collocada dentro. do navio, a meia-nau; os escaleres foram todos accommodados, como para não servirem tão cedo, e a canoa branca do commandante balouçava-se já nos turcos da popa, encimando a varanda da primeira camara.

Desde muito que, de terra, estava chegando um grande numero de botes conduzindo famílias que vinham d'ali despedir-se, ou dos officiaes ou de quaesquer outros indivíduos d'entre as 700 praças que compunham a guarnição da nau.

Uma grande superfície se achava coalhada d'esta vistosa quantidade de embarcações que não podiam atracar, mas que, d'ali mesmo, os seus passageiros, fallando, agitando lenços, e alguns enchugando lagrimas que fingiam occultar, offereciam ao espectador indifferente, um quadro maravilhoso de tristeza e saudade, á mistura com ditos chistosos e de verdadeira animação.

Entretanto, a bordo, começara um movimento extranho para mim.

Tratava-se de postar gente para a manobra, safar cabos: braços, bolinas, escotas e amuras; desenvergava-se o panno, e punha-se todo o velame em acção de manobrar; postava-se gente ao cabrestante e ás abitas; ditava-se desde a tolda até ao bailéo; e os officiaes, n'uma roda viva, andavam do tombadilho para o castello de proa, e d'aqui para ali, examinando tudo, e observando como mestre e guardiões eram obedecidos.

Lisboa Nau Vasco da Gama (1841-1872).
Arquivo Histórico da Marinha

O commandante, de porta-voz em punho, e com o olhar já mais carregado, passeava de um para outro lado do tombadilho, parando ás vezes a meio da varanda, e olhando para baixo, como que indagando, se já lá estava á roda do leme o marinheiro a quem prestes ia dar ordens.

De repente, ouviu-se uma voz de mando, que não percebi. A musica foi tomar o seu logar ao lado da força do Naval que formara na tolda, e para o tombadilho foi toda a officialidade postar-se ao lado do commandante.

Eram uns escaleres que largavam do arsenal, conduzindo o ministro da marinha, o major-general da armada, e outros ofíiciaes de graduação superior, que se dirigiam para o Mindello, d'onde vinham honrar o bota-fora da Vasco da Gama.

Chegada a Lisboa do Vapor Mindelo, João Pedroso, 1857 (Coleção da Fundação da Casa de Bragança).
A revoluçao industrial, Lisboa marítima e a marinha de guerra... por Paulo Santos

Largada então a amarração, começou de desfraldar-se o panno; o navio principiou a mover-se, e as lagrimas rebentaram-me dos olhos.

Momentos depois, as velas foram enfunando-se, a musica tocava, a nau seguia rio abaixo, e as fortalezas e navios de guerra salvavam, tendo estes, nas vergas, a marinhagem que... enthusiasticamente, saudava os que iam em busca do naufrágio e da febre amarella!

Deixávamos já pela popa a grande cidade, a famosa conquista de Affonso Henriques, que, sem mesmo possuir ainda as bellezas e melhoramentos, que ha quarenta annos lhe vem trazendo o progresso não era por issa menos bella, nem menos histórico e impor tante o seu vasto porto, antigo empório do commercio do Oriente, e que hoje, por seus importantes melhoramentos e pelas vantagens de sua situação geographica, está destinado para um dos melhores portos do mun do, ou... como já alguém disse — para ser o Caes da Europa.

Praça do Commércio de Lisboa em 1848, leque Verissimos Amigos.
Museu de Lisboa

Agora passávamos em frente de Alcântara, em cuja ribeira a 25 de agosto de 1580, o duque d'Alba, derrotando o Prior do Crato, deu começo ao captiveiro em que Portugal jazeu por 60 annos.

Lisbonne, Ports de Mer d'Europe, Deroy, Turgis Jne, c. 1840.
Frame

Depois, viamos o caes de Belém, hoje praça de D. Fernando, onde em 1759 embarcaram os jesuitas para o desterro. 

Vista geral dos jardins e palácio de Belém em1886.
Hemeroteca Digital

Mais adeante, foram avolumando-se e extaziando-nos esses outros padrões de mais antigas glorias: a praia do Restello, ponto de partida dos descobridores da índia; o mosteiro dos Jeronimos, superior ao Escurial na phrase de Filippe II, e esse caprichoso trabalho architectonico, a que se chama Torre de S. Vicente ou de Belém, e que, a antepassados e vindouros, nacionaes e estrangeiros, tem por missão recordar os áureos tempos Manuelinos.

Rio Tejo e Torre de Belém, Alexandre-Jean Nöel, 1789.
Pertence ao Ex.mo Senhor Dr. Ricardo do Espírito Santo Silva.
Arquivo Municipal de Lisboa

Seguiam-se depois, acompanhando-nos: Oeiras, solar do grande Pombal; Paço dArcos, pátria feliz do grande heroe — salva-vidas — o benemérito patrão Joaquim Lopes, depois ainda outras até Cascaes, florescente villa, formosa bahia, e encantadora estação balnear, hoje cada vez mais attrahente pela sua proximidade com as bellezas artistico-naturaes do Mont'Estoril, e pela commodidade de uma estação terminus, que a liga a toda a rede de caminhos de ferro portuguezes.

Era alli, nos reaes aposentos da linda cidadella de D. João II, que, passados quarenta annos, a 19 de outubro de 1889, se havia de finar o rei D. Luiz I — aquella mesma creança loura, e fardada de guarda-marinha, que na véspera da nossa partida, viramos, com a maior disposição para vir a ser, como depois foi — o brioso e intrépido commandante do brigue Pedro Nunes, e da corveta Bartholomeu Dias.

E tudo isto n'essa poética linha que, desde Lisboa vem estendendo-se ao oceano, sempre matizada de verdejantes culturas, e admirável em vários pontos pela opulência de soberbos palácios, e caprichosa architectura de elegantes chalets e kiosques, que n'esta margem tanto abundam como faltam na margem esquerda.

D'este lado, além de Cacilhas, Almada, Caparica, Porto Brandão e a Trafaria — hoje tão completamente transformada n'uma das mais aprazíveis praias das proximidades de Lisboa — só viamos a Torre Velha que, com o Bugio, foi já defensa do porto, e agora ia servir de cárcere incommodo, com prosapias de Lazareto, para os primeiros quarentenários do Brazil, emquanto se não completava a fabrica d'esse novo presidio, que, pela abundância de vexames com que e distingue e desacredita, pôde, em vez de Lazareto, denominar-se com mais propriedade — o primeiro fiscal ou aferidor do ouro brazileiro suspeito de febre amarella.

Torre Velha, Lisbonne, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Sotheby's

Chegávamos, emfim, á barra, ou antes, seguiamos entre Torres por uma das barras por onde outr'ora entraram as galés das grandes armadas dos Cruzados, e mais tarde as naus da índia e do Brazil, que, ou traziam á pátria vastissimos reinos e impérios novos para gloria do Venturoso D. Manuel, ou vinham com riquissimos carregamentos de ouro e pedrarias alimentar a magnanimidade de D. João V.

Por alli sahiu lambem a frota, que a seu bordo levou D. Sebastião, para em Alcácer Quibir. a 4 de agosto de 1578, ir sepultar-se com os nossos brios e independência. 

Foi por alli que em 1588, já sob o jugo de Philippe II, sairam as naus portuguezas que aquelle monarcha compromctteu no desastre total da armada de 135 navios, chamada Invencivel, e que um temporal, no mar da Mancha, destruiu completamente.

E finalmente, por alli sahiu também, em 1807, toda a corte portugueza, deixando a pátria entregue aos furores dos generaes do primeiro Napoleão, e exposta depois á tyrannia do inglez Beresford!

Íamos, pois, passando ao som das musicas e de atroadoras salvas, entre as duas sentinellas do nosso porto, que se chamam — Torre de S. Lourenço ou do Bugio, e Torre de S. Julião.

É horrivel a historia d'esta ultima, que já alguém chamou — Mordaça da Liberdade. 

Torre de S Julião da Barra, João Christino, c. 1855.
Biblioteca Nacional de Portugal

Aquella torre foi aproveitada por Filippe I, Pombal, Beresford e D. Miguel, pelo seu carrasco Telles Jordão, para alli aferrolharem em negras masmorras todos os que contrariavam os seus tenebrosos planos de feroz despotismo.

Foi alli na explanada d'aquella torre que o tenente general Gomes Freire de Andrade, vendo acceza a fogueira que havia de reduzir-lhe o corpo a cinzas, expiou na forca o feio delicto de pugnar pela liberdade da pátria!!...

Estávamos, emfim, fora da barra. Mais algumas milhas singradas, e o Mindello, virando de bordo, despedia-se de nós, no enthusiasmo de calorosos vivas de parte a parte. Pouco depois o vapor desapparecia-nos, magicamente, por efteito das velocidades oppostas, e breve foi confundir-se com a cor já fumada e pouco distincta da nossa costa.

Portuguese paddle steamer [Vapor Mindello] off Belem Castle, 1846.
Royal Museums Greenwich

Momento solemne, capaz de arrancar lagrimas ao mais experimentado marinheiro.

Então a Vasco da Gama que já largara ao vento outras velas, começou a sua derrota com rumo á Ilha da Madeira.

Já perdíamos de vista o píncaro da altiva e pittoresca Serra de Cintra, e pouco a pouco, foi também desapparecendo-nos o resto da negra ondulação das cordilheiras da nossa costa. Depois... mais nada! Ceu e mar!

Como era agora magestoso e sublime o quadro que á nossa vista se offerecia, em quanto a nau, velejando a meia bolina, ia deixando apoz si, larga e espumosa esteira que, na ondeante superficie d'um mar immenso, o leme desenhava caprichosamente!

Substituindo toda a fulgurante gala com que o crystalino Tejo parecia ter se enfeitado para a nossa despedida, e o panorama surprehendente, que em todo o seu trajecto nos encantara, tínhamos agora o respeitável e imponente espectáculo da vastidão oceânica, d'essa soberba amplidão, onde quantas mais milhas o navio avança, mais os horisontes parecem abrir-se-lhe!

Portugese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
BBC Your Paintings

O sol transpozera ha muito já o Zenith, e, em caminho do occaso, ia, em breve mergulhar seus raios lá na longínqua linha onde o oceano se extrema do firmamento.

Entretanto o vento refrescava; e o commandante, aproveitando-o, mandava soltar todo o panno.

Foi então para mim maravilhosamente bello contemplar a gigante e altiva mastreação de uma nau com todas as suas velas desfraldadas ao vento. Era, deveras, cousa admirável para a minha ignorância, ver como um navio de tão superior grandeza, seguia, sereno, cortando as aguas, sem mais ruido que nos ferisse o ouvido do que o que faziam as vergas gemendo e as ondas que, feridas pelo talhamar, marulhavam espumosas sob a roda de proa.

Como tudo alli corria sob o mais vigiado e rigoroso dever de disciplina!

Nem aquelle caracter nada expansivo, aquelle olhar sombrio e carregado de Pedro Alexandrino da Cunha, permittiam ou consentiam outra cousa.

A barquinha fora já lançada ao mar por duas vezes, e o commandante depois de ouvir o homem do leme, disse-lhe, com aquella trovejante voz que todos respeitavam: 

— Andar assim, que é bom andar. 

Nau Vasco da Gama (1841-1872) entrando no porto do Rio de Janeiro em 6 de Maio de 1849.
Instituto Moreira Salles

E o sol desapparecera de todo lá no fundo do horisonte. (1)


(1) Theodoro José da Silva, A ultima nau Portugueza, Lisboa, Eduardo Cardoso & Irmão, 1891

Leitura relacionada:
Revista da Armada n.° 240, fevereiro de 1992

Informação relacionada:
Ships and ways of other days



A nau "Vasco da Gama", de 80 peças, foi lançada à carreira do Arsenal da Marinha em 24 de Junho de 1824 e ao mar em 2 de Setembro de 1841. 

Foi construída por Manuel Clemente de Barros e Joaquim Jesuíno da Costa. 

A figura de proa era um elegante busto do seu patrono Vasco da Gama. No Museu da Marinha ainda se conserva o modelo da carranca do navio.

As suas principais características eram: comprimento (quilha) - 61.48 m, boca - 14.70 m, pontal - 12.43 m, arqueação - 2261.72 metros cúbicos, tonelagem - 1829 toneladas; armamento - 74 peças; lotação em 1842 - 650 homens.

Foi depósito de marinhagem de 22 de Dezembro de 1845 até 5 de Outubro de 1846. Achou-se no bloqueio de Setúbal em Abril de 1847. 

A nau passou novamente a depósito de marinhagem, servindo ao mesmo tempo no registo da barra de Lisboa em Junho de 1847. 

Em Março de 1847 largou para o Brasil em missão de cortesia e de protecção dos súbditos portugueses ali residentes. 

Em Outubro de 1858 largou para Luanda conduzindo a expedição militar para combater a revolta do indígena do Congo e o novo padrão para o Zaire. 

Em 29 de Julho de 1863, foi mandado estabelecer a bordo da nau "Vasco da Gama" uma escola de artilharia, a que se deu o nome de Escola Prática de Artilharia Naval. 

Em 1868 recebeu, sob prisão, os amotinados da expedição contra o Bonga.

Tendo sido julgada por inútil para o serviço da Armada, foi mandada vender por despacho de 16 de Agosto de 1873.

cf. Arquivo Histórico de Marinha