terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Os Joinville e A morte de Camões de Domingos Sequeira

O facto da ida do quadro para o Brazil encontra-se narrado por todos, diferindo somente a indicação de quem fez a oferta ao imperador.

Salão da princesa de Joinville no Rio de Janeiro, François d'Orléans 1843.
Ao centro da aguarela, A morte de Camões (1824), o quadro desaparecido de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Warburg

Segundo as informações do conde de Lavradio a Raczynski, publicadas no "Dictionnaíre" de 1847 [Dictionnaire historico-artistique du Portugal pour faire suite à l'ouvrage ayant pour titre : Les arts en Portugal], Sequeira a envoyé son tableau de la mort de Camões au Bresil à l'empereur D. Pedro". O cavaleiro Migueis, genro do artista, na carta de 1846 escreve simplesmente que o quadro existia no Brazil e foi oferecido a D. Pedro I que, em sinal de reconhecimento, nomeou o autor cavaleiro da Ordem do Cruzeiro.

Estudo para a Morte de Camões, desenho de Domingos António de Sequeira (1823-1824).
Imagem: Público

Mas já o biógrafo do "Archivo píttoresco", em 1858, repetindo idênticas informações, as liga entre si e afirma, com uma latitude diferente, que o quadro existia "segundo consta, no Brazil, tendo... sido offerecido por Sequeira ao imperador... que o agraciou por esse motivo com o habito... do Cruzeiro".

Estudo para a Morte de Camões, desenho (inversão horizontal), Domingos António de Sequeira (1823-1824).
Imagem: Público

O visconde de Juromenha em 1860 expõe quasi textualmente a mesma versão e conta que "Por fallecimento de Sua Magestade, ficou [o] painel a sua filha a. . . Infanta D. Francisca, [depois] Princeza de Joinville, que o levou para França". 

A morte de Camões, esboço de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

São preciosas estas informações de Juromenha para a história do quadro e constituem dados importantes para a pesquisa do locai onde se poderia encontrar actualmente [v. Obras de Luiz de Camões; precedidas de um ensaio biographico no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida, augmentadas com algumas composições ineditas do poeta, pelo visconde de Juromenha ].

A morte de Camões, esboço de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

Como outras a que já me referi, suponho as fornecidas, na demorada visita que fez a Lisboa em 1859, por Manuel d'Araújo Porto-Alegre, cultíssimo diplomata e escritor brazileiro, artista erudito e competente, que tinha visto e admirado o trabalho do pintor português mostrando por êle grande interesse e que, pelas situações oficiais que ocupara no seu paiz, devia ter conhecimento das circunstâncias em que a "Morte de Camões" saíra do Brazil.

Camões e o escravo Jau,  Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879).
"Aquelle cuja lyra sonorosa / Será mais afamada que ditosa"
Imagem: Blog da Biblioteca Nacional

Também forneceu mais tarde a Sousa Holstein informações sobre os quadros de Sequeira transportados para o Rio de Janeiro na Viagem de D. João VI e que ahi se conservaram, as quaes mostram à evidência o conhecimento perfeito que o antigo professor, director da Academia de Belas-Artes e das obras dos paços imperiais daquela cidade, tinha do assunto.

Charles X distribuindo as recompensas aos artistas expositores no Salon de 1824 no Louvre,
François-Joseph Heim, 1827.
Imagem: Wikimedia

A princesa D. Francisca Carolina de Bragança, 5.a filha do imperador D. Pedro I do Brazil e de sua primeira esposa a imperatriz D. Maria Leopoldina de Áustria, casou a 1 de maio de 1843 no Rio de Janeiro com o príncipe de Joinville, Francisco Fernando [François d'Orléans], 6.° filho de Luiz Filippe de Orléans e da rainha Maria Amélia de Bourbon.

Dona Francisca de Bragança, princesa de Joinville (detalhe),
Musée de la Vie romantique, Ary Scheffer, 1844.
Imagem: The Royal Forums

É para notar que, possuindo todos os Orléans um espírito muito culto e uma grande intuição artística, herdada de sua mãe que foi discípula de Angélica Kauffmann, entre eles se distinguia Joinville, porque pintava e aguarelava com talento, era um pouco escultor e desenhava constantemente, apesar da sua vida aventurosa e movimentada.

François d'Orléans, príncipe de Joinville (detalhe).
Chateau de Versailles, Franz Xavier Winterhalter, 1843.
Imagem: REPRO TABLEAUX

O príncipe visitara pela primeira vez o Rio de Janeiro em 1838 e da segunda, antes de partir casado com a princesa D. Francisca, permaneceu algum tempo na corte, tendo demora e oportunidade para conhecer e apreciar as obras de Sequeira lá existentes.

Sua esposa, levando para França como pertença própria os "Últimos momentos de Camões", segundo as afirmações de Juromenha, conservaria depois o quadro em algum dos locais habitados por ela e seu marido. 

Os filhos de Luiz Filippe, mesmo casados, habitavam com seus pais e as respectivas famílias o palácio das Tulherias. Ás Vezes revezavam-se na residência campestre de Neuilly ou nos palácios nacionais, se é que algum não ficava temporariamente no Palais-Royal, anterior residência do duque de Orléans até á revolução de julho de 1850 que o colocou no trono, palácio que êle conservava mobilado e montado como habitação particular. 

Paris, les Tuileries le Louvre et la rue de Rivoli, Charles Fichot, c. 1850.
Imagem: Wikipédia

É histórica a vida patriarcal que levava a real família e bem conhecida a descrição da sala das Tulherias com a mesa de serão da rainha Maria Amélia, em volta da qual se sentavam todas as princesas.

Joinville, marinheiro dedicado á sua profissão, valoroso e de génio irrequieto, fazia prolongadas ausências. Promovido logo depois do seu casamento a contra-aimirante e nomeado par de França, tendo-lhe nascido os dois filhos, Francisca Maria Amélia em 14 de agosto de 1844 e Pedro Filippe, duque de Penthièvre, em 4 de novembro de 1845, já no meado deste ano assumiu o comando da esquadra de evolução, cruzou nas costas de Marrocos, bombardeou Tanger e tomou Mogador.

Mogador, l'affaire de la mosquée, François d'Orléans, 1844.
Imagem: Sotheby's

Promovido a vice-almirante e muito popular pela sua hostilidade ao ministério Guizot, a revolução de 1848 surpreendeu-o em Alger, onde estava com sua esposa servindo sob as ordens do irmão, o duque de Aumale, que era governador. 

La prise de Constantine, François d'Orléans, 1837.
Imagem: Sotheby's

No mesmo dia em que Luiz Filippe deposto desembarcava em Inglaterra, os príncipes saíam daquela cidade africana a caminho de Gibraltar, acompanhando assim o rei no seu exílio.

Habitando a princesa de Joinville com os sogros, natural é que o quadro de Sequeira, que lhe pertencia, estivesse nos aposentos do casal nas Tulherias, quando não em Neuilly, ou no Palais-Royal. Não é provável que o tivesse levado para qualquer dos outros palácios, ou para Alger.

Sequeira, (le chevalier de) rue du Faubourg-Saint-Honoré , n. 94
1564 — Sujet tiré de la vie du Camoens.
Ce grand homme, accablé par la maladie et par la plus affreuse pauvreté, etait mourant à l'hopital, lorsqu'un de ses amis vint lui annoncer la perte de la bataille d'Alcacer, la mort du roi Don Sébaslien, et celle de l'elite de la nation dans cette funeste journée, dont les suites devaient être la fin de la monarchie portugaise et de la patrie;"Au moins", s'ecrie le Camoens, se relevant sur sou lit de mort, "au moins je meurs avec elle."

Salon de la Princesse de Joinville... (detalhe).
Imagem: Warburg

Mas na revolução de 1848 a populaça, atacando e tentando incendiar as Tulherias que tomou de assalto na tarde de 24 de fevereiro, depois da fuga precipitada e desordenada da família real; ocupando-as até 6 do mez seguinte, pilhando, destruindo e conspurcando tudo quanto lá se encontrava; queimando por completo Neuilly na noite de 25 para 26, com tudo o que continha, como fez em Suresnes à magnífica "Vila" do barão Salomão de Rothschild, que estava cheia de objectos de arte e foi arrasada até aos alicerces; invadindo o Palais-Royal que roubou e destruiu á vontade; deve ter feito desaparecer para sempre a obra célebre do pintor português.

Lamartine devante a câmara de Paris rejeita a bandeira vermelha em 25 de fevereiro de 1848, Henri Philippoteaux.
Imagem: Wikipedia

Á pilhagem do Palais-Royal escaparam os quadros de Géricault "Officier de chasseurs à cheval de la garde" e "Le cuirassier blessé", que Luiz Filippe adquirira em 1824 na venda póstuma do autor e que, estando emprestados á "Association des Artistes" para uma exposição, não se encontravam casualmente na vivenda do soberano deposto e foram mais tarde, em 1851, adquiridos pelo Louvre, quando da liquidação dos seus bens privados.

Quanto ao que se passou com as obras de arte nas Tulherias, encontro nas memórias da época, escritas por lord Normanby, embaixador da Inglaterra junto á corte de Luiz Filippe e depois encarregado de tratar com os governos da revolução a que assistira e que historiou, comentando-a dia a dia, um depoimento completo, elucidativo e insuspeito, infelizmente confirmativo da minha asserção [A year of revolution. From a journal kept in Paris in 1848...]

Como se reconhece pelos extratos, nada supre a leitura destas paginas que ampliam as dos historiadores nacionais, Lamartine e Louis Bianc, modificando-lhes a natural parcialidade e constituindo a documentação mais impressionante do fim que deve ter levado o quadro de Sequeira, na posse da princesa de Joinville. O mesmo lhe terá acontecido se estava no Palais Royal; e o fogo o consumiu se acaso existia em Neuilly. 

Ainda na esperança de que tenha escapado ás contingências da revolução destruidora, por se encontrar em algum dos outros palácios ou propriedades não violadas dos Orléans (Arc-en-Barrois, Saint-Firmin, Eu, etc.), dificil é traçar-lhe a história subsequente e precisar elementos para a sua pesquisa actual. Só os próprios membros da ilustre família poderão fornecer as indicações necessárias.

Últimos momentos de Camões, Columbano, 1876.
Imagem: MatrizNet

Banidos do território da França pelo decreto de 26 de maio, foram-se juntando em Inglaterra, na residência de Claremont, os príncipes de Joinville e os duques de Nemours, de Aumale e de Montpensier. 

A duquesa viúva de Orléans, com os filhos, ficou algum tempo em Eisenach. Os duques de Montpensier pouco depois saíram de Inglaterra, estiveram na Holanda e Vieram residir para Hespanha. 

O rei faleceu em 1850. E por meados de 1852 separou se o duque de Aumale para Orléans-House, em Twickenham, que comprou a lord Kilmorey e que já de 1813 a 1815 fora residência de emigração para os pais, onde depois foi organisando um esplendido museu, hoje em Chantilly. 

"Morrer nos hospitaes em pobres leitos. Os que ao Rei e á Lei servem de muro."
Camões no leito de morte, lithographia Cupertino, 1861.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Mas o príncipe de Joinville, apesar da sua vida movimentada e aventurosa, fez sempre base de família em Claremont e a princesa aí se conservou com a sogra, suportando com estoicismo a vida difícil que lhe faziam as viagens e ausências do marido, atacado de surdez quasi completa, e depois as ao filho, duque de Penthièvre. 

Em 11 de junho de 1863 casou a filha Francisca Maria Amélia com seu primo o duque de Chartres, 2.° filho da duquesa viúva de Orléans, que também falecera em Claremont em 1858. A rainha Maria Amélia só faleceu em 1866.

Arte Gravura Morte de Camões Mort de Camoens Simon Guérin Louis Lellier BNP.jpg
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os bens de Luiz Filippe e de sua família, liquidados em 1851, haviam sido confiscados por Luiz Napoleão em 1852 e só depois de 1870, pela lei de abrogação, que permitiu aos príncipes exilados o regresso a França, lhes fôram entregues, em consequência do Voto da Assembleia Nacional de 23 de dezembro de 1872.

O resto é história contemporânea. Apesar das leis de expulsão de 1883, a princesa de Joinville veio a falecer em 27 de março de 1898 e o marido em 16 de junho de 1900 em Paris, residindo com seu filho, o duque de Penthièvre, na Avenue d'Antin 65, ou na vivenda de Arc-en-Barrois (Haute-Marne). 

Catálogo do Salon de Paris 1824 (excerto), Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

Os duques de Chartres habitavam na Rue Jean Goujon 27, ou na Vivenda de Saint-Firmin perto de Chantilly. Algum dos seus herdeiros ou parentes poderá dar notícia do quadro de Sequeira, se ele escapou á revolução de 1848 e resistiu ás vicissitudes que atormentaram a vida da sua dona.

Camões doente recebe anotícia da invasão de Filipe II, Domingos Sequeira.
Imagem: Hemeroteca Digital

Sabido quanto são ilustrados os Orléans das varias gerações e como possuem, em alto grau, o sentimento artístico, não lhes terá passado desapercebido o merecimento da obra do pintor português, no caso de ainda a possuírem. (1)


(1) Luis Xavier da Costa A morte de Camões..., Lisboa, 1922

Artigos Relacionados:
Príncipe de Joinville
Domingos Sequeira, Cartuxa de Laveiras, Real Quinta, Trafaria e Cabo Espichel

Leitura relacionada:
Archivo pittoresco, 2.º Ano, n.º 12, setembro de 1858
Brito Aranha, A obra monumental de Luiz de Camões..., Lisboa, Imprensa Nacional, 1888
Visconde de Juromenha, Obras de Luiz de Camõe..., Lisboa, Imprensa Nacional, 1860
Athanase Raczynski, Dictionnaire historico-artistique du Portugal..., Paris, J. Renouard, 1847
Marquis of Normanby, A year of revolution [1848]..., London, Longman..., 1857

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Modelos mulher

(não confundir com mulheres modelo), Paris, 1884

Modelo nu Victorine Meurent, Olympia, Édouard Manet, 1863.
Imagem: WikiArt

Os modelos! Escrever-se-iam volumes sobre esta variedade sui generis da espécie humana, eterno entontar do burguês. Mas sendo-nos o lugar limitado, fechar-nos-emos no quadro modesto de um esboço.

Há modelo e modelo, como em tudo. Durante a pose, o modelo é modelo tão simplesmente, — terceiro sexo, sexo neutro, se quiserem; fora da pose, é uma individualidade qualquer. A tal mulher, que se expõe in naturalibus aos olhos dos artistas, é uma excelente mãe de familia, uma dona de casa realizada.

A tal outra que posa vestida, e não quereria, por todo o ouro do mundo inteiro, mostrar ao pintor o seu pescoço, entrega a amadores, na intimidade da alcova, os tesouros que a natureza abundantemente a dotou.

No tempo em que habitava a casa onde hoje mora o embaixador de Inglaterra, Pauline Borghèse posa nua — como o discurso de um académico — perante Canova. Ecomo uma, grande dama, das suas amigas, escandalizada com essa complacência, lhe disse: — Nua! Perante um homem! Ah! Minha cara, como pôde você?

Arte Escultura Pauline Borghèse Bonaparte en Vénus Antonio Canova.jpg
Imagem: Panorama de l'art

— Bah! Respondeu a princesa, havia um fogo!

Havia um fogo. Isto diz tudo. O modelo nu não vê nem para além nem para aquém. Passeia-se como Eva, através do atelier, aquece-se ao lume, as mãos atrás das costas, assoa-se num lenço que pende nas travessas de uma cadeira, tudo isso tranquilamente, sem prestar atenção, como vestido.

De facto, está trajado duma beleza púdica
De que a Arte foi o alfaiate.


Para ele o pintor não é um homem, não mais do que ele não é uma mulher para o pintor. Artista e modelo vivem, na actualidade da pose, num mundo ideal onde os sexos não existem e onde a matéria se revela, por assim dizer, aos olhos da alma mais do que aos olhos do corpo.

Mas se um intruso bate à porta do templo, o modelo foge assustado, escondendo-se atrás de uma cortina, — ad salices. O pudor, essa virtude que dorme em toda a mulher, acorda desde que um profano aparece.

A par dos modelos que posam o nu, há os modelos que "posam o traje". Tal está deslumbrante em Parisienne de dia, tal em Louis XIV, tal em Marie Stuart. Esta aqui posa o penteado à chinesa , à Louis XV, à Romana; aquela o chapéu; uma outra a mão, uma outra o pé, uma outra enfim os ombros, o peito, as costas, as pernas. Chega-se a que, para uma só estátua, um escultor empregue sete a oito modelos, a cada um deles a sua especialidade.

Moralmente, as especialidades, são assim também tão diversas.

Eis, para começar, o modelo sério, aquele com que casamos após um estágio, mais ou menos longo, de virtude. 

Eis o modelo sentimental que, aficcionado a uns só artistas, se reserva somente para eles, e o seu antípoda, o modelo que permanece sábio nos ateliers e, à noite, em Elysée-Montmartre, gasta alegremente o seu capital.

Eis o modelo "bom rapaz" que junta à beleza das formas um excelente carácter e todos os instintos da mulher de limpeza, limpa o pó ao atelier, acende o fogo, cose os fundilhos das cuecas.

Tal como esta grande rapariga de longos cabelos castanhos, Marie G., honesta tanto como modelo no mundo, mas que não sabe nada recusar ao artista, é a sua amante para o não vexar, a criada por economia, o seu modelo porque ela tem o necessário para isso, — não incomodativa, de uma exactidão cronométrica, chegando à hora, retirando-se ao primeiro sinal e retomando os peúgos entre duas poses.

Eis, enfim, o modelo pretensioso [parece-nos uma referência, pouco fundamentada, a Rosalie Tobia], que não vai senão aos grandes pintores, ou pelo menos aos medalhados. Aquela não posa somente, ela aconselha. Se há algum aluno no atelier do mestre, ela admoesta-o com azedume, e, se ele protesta: — Eu conheço-me, diz ela, a Virgem de Bouguereau, meu pequeno, fui eu que a posei!

Temos, no público, o preconceito do "belo modelo". Imaginamos que ele deva ser o tipo de beleza perfeita. Não é nada disso. Os pintores — assim como os escultores — prezam igualmente à perfeição das formas, a arte de posar, o savoir-faire, a elegância do gesto, a harmonia do conjunto, a profissão, numa palavra. À bela rapariga "posando como uma grua" — é o termo técnico — não há um que não prefira o velho modelo posando bem "os movimentos".

Permitam que vos apresente alguns modelos à vista.

Victorine Meurent, tipo de modelo antigo, posou para Stevens, Manet, Clairin, Gervex. Ruiva de cabelos. É tingida de literatura. Diz a cançoneta agradavelmente. 

Victorine Meurent, Le chemin de fer, Édouard Manet, 1872-73.
Imagem: Wikipedia

Existência das mais agitadas, partilhada entre os grandes ateliers e os pequenos teatros, — os Folies-Marigny foram o seu berço. Tornou-se pintora à força de frequentar os artistas. Pinta os cães das prostitutas elegantes, é a sua especialidade. Habita em Asnières, onde tem, num tapeceiro vizinho ao teatro, uma exposição permanente das suas obras.

Madame Bertha [Berthe Morisot, ela mesmo artista de mérito] uma grande mulher muito elegante. Posa vestuário nos ateliers dos pintores "parisienses" [Jean] Béraud, [Alfred] Stevens, [Jean-Louis] Forain, Robert [Rosenblum], etc. Muito "boulevardière".

Berthe Morisot com um bouquet de violetas, Édouard Manet, 1872.
Imagem: Wikipedia

Louise, uma bonita loura, grande como tudo, mas constituída como a Vénus de Milo. Plena de graças — com algumas virtudes.

Emma [Dupont], modelo sábia, encontra as suas poses ela própria; posa neste momente em casa de Gérôme.

Emma (collection madame Emma Dupont), estudo de Jean-León Gérôme, c. 1876.
Imagem: Marc Verat

Fernande [não confundir com Fernande Olivier (1881-1966)], como Victorine, tipo de modelo antigo. Não posa mais do que raramente, mas mostra-se ainda nos ateliers. Frequenta uma cervejaria da rua [Pierre] Fontaine. Tem o seu museu, rua Lepic. Quase todos os modelos têm o seu museu. Qual o pintor que recusaria um esquisso, um croqui, à bela rapariga que a ele se mostrou, durante várias horas, fora de todos os seus véus?

Anna! Chorem, meus olhos, deitou no casamento, a soberba criatura com a sua tez de bistro, os seus grandes olhos negros e a a sua admirável correcção de traços! Mas ela tinha um vício, uma serpente sob essas flores, ela estava quase sempre numa situação interessante. 

Então, adeus à pose! Durante os entre actos, ela servia nas cervejarias do Quartier Latin, na Sherry-Gobler, entre outras, esse "bouchon" minusculo, hoje desaparecido, cuja história faria "pendant" ao Roman comique, e de onde partiram todos os "jovens" desse tempo, Richepin, Maupassant, Paul Bourget, Catulle Mendès, Villiers de l'Isle-Adam, Bouchor, Moynet, Sapeck, etc.

Um dia que Anna tremia de febre, o ilustre Sapeck tomou-se de piedade, levou-a para o sol, tratou-a, curou-a e, por excesso de originalidade, esqueceu-se de a fazer sua amante. Anna regressa a Paris.

Um poeta instala-a como florista, rua de Amsterdam; faz negócios lamentáveis e torna-se modelo. Ei-la, agora, esposa e mãe. Chorem, meus olhos!

Existe, entre as modelos do bairro de Montparnasse e as da avenida de Villiers, um eterno antagonismo, que degenera por vezes em brigas de arranhar a cara e arrancar os cabelos. E é fácil de entender. Lá em baixo, no Luxembourg, é a primeira etapa, frequentemente cruel; aqui, no parque Monceau, é o apogeu. 

Modelo nu Victorine Meurent, Déjeuner sur l'herbe, Édouard Manet, 1863.
Imagem: WikiArt

É aí que encontramos uma multidão de gente muito bem, amadores apaixonados dos quadros, que nem sempre se contentam com a cópia, e se anexam por vezes ao original. E qual o modelo que não acarinhou esse sonho!

Moralidade: — não há! (1)


(1) Parisis (Emile Blavet),  La Vie parisienne..., Paris, L. Boulanger et P. Ollendorff, 1885-1890


Informação relacionada:
Ellen Andrée. Modèle à Montmartre. (Manet, Degas, Renoir...)
Quando pittore fai rima con amore

Informação adicional:
Catalogue illustré du Salon [de Paris]... (28 numéros disponibles, 1879-1907)
Salon des Refusés (1863)
Société anonyme des artistes peintres, sculpteurs et graveurs (1874-1886)
Salon des indépendants (depuis 1884)

Leitura adicional:
Dictionary of Artists' Models
Charles Virmaître, Portraits pittoresques de Paris

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Val de Pereira

Em sessão da Câmara Municipal de 26 de março de 1866, propôs o vereador Isidoro Viana que a azinhaga chamada de Vale do Pereiro passasse a ter a denominação de travessa de São Mamede, por estar no seguimento da mesma travessa, dando-se-lhe maior largura. Para isto bastava expropriar uma terra de semeadura e umas barracas velhas e insignificantes. Foi a proposta discutida e em seguida enviada a informar à Repartição Técnica. Até hoje.

Lisboa vista da Quinta da Torrinha Val Pereiro, gravura de William James Bennett sobre desenho de L. B. Parlgns.
Imagem: Museu de Lisboa

Esta azinhaga de Vale do Pereiro começava no Salitre e ia acabar no caminho ou rua daquele nome em frente da quinta de Santo António, apertada entre os muros da do Cordoeiro, à direita, e do casal da Carvoeira, à esquerda. 

Aproximadamente seguia a directriz da nova rua de Rodrigo da Fonseca que serve de testa ao Bairro Barata Salgueiro.

Da quinta do Cordoeiro, pouco sei; do casal alguma coisa pude apurar. Ficava encravado entre o Salitre, a estrada e a azinhaga de Vale do Pereiro, e constava de casas e outras dependências, terras de semear, olival, vinha e poço de engenho. A carvoeira que lhe deu o nome chamava-se Nazaré e era a proprietária das terras. Em 1820 e tantos pertencia o casal ao súbdito alemão Bento Guilherme Klingelhoefer.

Lisbon, published under the superintendence of the Society for the Diffusion of Useful Knowledge.
Drawn by W B  Clarke, engraved and printed by J Henshall Published by Baldwin & Cradock 47 Paternoster Row, 1833.
Imagem: Lisboa de Antigamente

Falecido este em 1841, os administradores liquidatários da herança puseram o casal em praça e foi arrematado, não sei por quem, nesse mesmo ano.

No estremo dele vê-se hoje o respiradoiro do túnel do Rocio. 

A designação de Vale do Pereiro ou de Pereira e Val de Pereiro é vulgar de sul a norte do país. A corografia do Baptista cita numerosos locais desse nome, com variantes na grafia e no género. 

Lissabon von der Quinta da Torrinha - Val de Pereiro. Umgebunge von Lissabon.
Aus der Geographischen Graviranstalt des Bibliographischen Instituts zu Hildburghausen, Amsterdam, Paris u. Philadelphia.
Author: Meyer, Joseph (1796-1856) Society for the Diffusion of Useful Knowledge (Great Britain), 1844.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O nosso Vale de Pereiro, às abas de Lisboa, remonta ao século XV, pelo menos, e é de crer provenha ainda de mais vetustas épocas. 

Em um dos livros da Mitra Patriarcal, colecção recentemente entrada na Torre do Tombo, encontram se três documentos referentes a este local, os quais passo a analizar.

É o primeiro uma escritura de emprazamento feita pelo arcebispo de Lisboa D. João, em três vidas, a Gil Martins do Poço, de uma vinha e olival em Vale do Pereiro. Está datada de 22 de março de 1442.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Diz o documento muito precisamente: huma vinha e olival que son no Val de Pereira asima danda Luçus (Andaluz) asêrca da dita cidade que son de sua Meza Arsebispal e partem da parte do fundo do Soão (sul) com olival de Cathelina Feya que hora é de Bertholomeu Fernandes e da parte do Aguião (norte) com caminho Velho e deshy tornando através com olival de João Esteves créligo rasoeiro de São Lourenço e deshy entestar da parte do aguião (norte) por Marcos e cómaros e como se vay asima com olival e vinha de João de Lisboa mercador e deshy como se vay em redor e com vinha do Cabbido que ora traz Pêro Soayres Mercador e deshi como se torna arredor da parte da travesia com caminho de Éreos (herdeiros) junto com herdade de São Dominguos que foi do Berton, que chamam... e deshi como se torna afundo da parte do avrego (sul) com herdade que foi de dito Bertholomeu Feyiiandes e deshi mais afundo com vinha do Titulo da Conezia de Pêro Domingues, filho de Dominguo Annes, criado de El-Rey e vai-se accabar no dito olival de Cathelina Feya...

S. Sebastião da Pedreira, Largo do Andaluz e St.a Marta, vista tirada de Vale do Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O segundo documento é um instrumento de que consta pagar-se ao referido arcebispo quinhentos e setenta e dois reais brancos, de foro da referida propriedade. Isto é, o mencionado Gil Martins do Poço, como trazia arrendada a um tal João Vasques, escrivão da Távola do Conde de Ourém, uma quinta que possuía em Vale do Pereiro (ou Val de Pereira) e este lhe estava em dívida ainda de rendas anteriores, transferia para êle, emquanlo lhe durasse essa obrigação, o pagamento do foro, da tal vinha e olival, ao arcebispo de Lisboa.

O estromento, datado de 2 de março de 1448 reza assim:

Saibam os que este estromento pirem que na era do Nascimento de Nosso senhor Jesus Christo de mil quatrocentos e quarenta e oito annos dous dias do mes de março, yia cidade de Lisboa no paço dos Tabelliaens, pareceo hy Gil Martins do Poço morador na. dita cidade e dice que hera verdade que elle tinha huma quinta em termo da dita cidade onde chamam Val de Pereira arrendada por nove anos a João Vasques, escrivão da Tavola do conde dourem, (morador ?) na Judiaria dessa mesma por dez escudos douro em cada hum anno de renda pagados em duas pagas, segundo era contheudo no estromento do dito arrendamento, a qual quintaa com todas suas pertences o dito Gil Martins deu e aconteceo em partilhas a Gomes e Annes de Óbidos, escudeiro do Senhor Regente, marido de Catherina de Serpa, seu neto por parte da dita sua molher e que porem a elle Gil Martins aprazia como logo aprouve e mandou que o dito João Vaz da dita renda de dei escudos dê e pague ao arsebispo de Lisboa em cada hum anno, por dia de Páscoa quinhentos e settenta dous reaes brancos que o dito senhor arsebispo hade haver de foro de huma vinha e olival e herdades que com a dita quinta andafn e o que sobrar se pague a Gomes Eanes de Óbidos. . . etc. 

Lisboa, St.a Marta vista tirada de Vale do Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O recibo de pagamento do foro aludido feito por João Vás ao arcebispo de Lisboa em 6 de Julho de 1451, constitui o terceiro documento.

Como se viu pelas transcripções feitas, o território de Vale de Pereiro achava-se, naquele tempo, retalhado em quintas, olivais e vinhas, umas da Mitra Patriarcal — grande proprietária no termo de Lisboa — , e outras de particulares.

Segundo me parece da leitura atenta das complicadas confrontações, conclue-se ficar a propriedade da Mitra ao norte da azinhaga de Vale do Pereiro, onde, em 1755 e anteriormente mesmo, ficavam as terras fragmentadas dos Congregados do Oratório, hoje inclusas no ainda projectado Parque Eduardo VII. O caminho velho que ficava da parte do norte, bem poderia ser a estrada de Palhavã.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Fiquemos nisto. A designação de Val de Pereira ou de Vale do Pereiro, é antiquíssima; a Mitra possuía ali propriedades, assim como o Cabido; Gil Martins do Poço tinha uma quinta e o resto retalhava-se em vinhas e olivais de diversos donos.

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O plantio da vinha era muito comum aqui às abas de Lisboa desde remotos tempos. E ver as Memorias para a Historia das Inquirições nos primeiros reinados de Portugal, publicadas em 1815, por João Pedro Ribeiro, numa inquirição feita — é de supor durante o reinado de D. Afonso III — a quantidade de vinhedos mencionados como pertencentes a várias ordens reli- giosas e militares. Os frades de São Vicente, entre muitos bens, possuíam uma vinha in Anduluzes (em Andaluz), outra in loco qui dicitur Alvaladi, e outras muitas no Lumiar, Charneca, Chelas, Leceia, Telheiras, Carnide, etc. Os frades de Calatrava tinham uma vinha in Arrujos (Arroios) e os de São Tiago e os Hospitalares, cada um a sua. Foram elas que forneceram até o século XVI o apreciado vinho do termo, então chamado de Campolide.

Pelo espaço de quatrocentos anos que de alterações se não fizeram!

Lisboa, rua do Salitre, vista tirada de Vale de Pereiro, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quantos emprazamentos, quantas vendas, quantas mudanças de proprietários!  De Andaluzes à Cotovia e a Campolide, por todo esse vasto trato de terreno, passou o vendaval dos séculos. Vale do Pereiro cem vezes transmudou a sua face matizada de vinhedos, de olivais e de searas verdejantes, cortada de azinhagas e de carreiros, esmaltada de muros de defesa, de cômoros e de marcos divisórios. Assente a poeira dos des troços produzidos nesse largo período, é que vamos agora examinar o arrabalde. 

Lisboa, panorama tirado de Vale de Pereiro para a Avenida da Liberdade, Francesco Rocchini, c. 1881.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Era assim este sítio pela ocasião do terremoto, e foi-o ainda por muito tempo. Entrando na rua pelo lado do Salitre ficavam à esquerda as terras dos padres da Congregação do Oratório, que acabavam junto ao muro da quinta de Santo António, cujos restos ainda conheci e cuja casa de larga portada seiscentista, de cantarias boleadas, ainda hoje faz razoável figura entre os caixotões aparelhados à moderna, no troço que sobrevive da rua arrabaldina. 

Lisboa (Vale do Pereiro), estado actual das obras na Avenida da Liberdade, Ribeiro Cristino em O Occidente, julho de 1885.
Imagem: Hemeroteca Digital

Seria esta quinta aquela que, nos princípios do século XVIII, aparece denominada de Vale do Pereiro nos registos paroquiais de São Sebastião da Pedreira?

Nesses prestáveis e por vezes tão mal tratados informadores, vi que tal propriedade pertencia em 1708 ao padre Frei Pedro Borges, do hábito de Aviz, o qual nela faleceu em 6 de março desse ano, e que, em 28 de março de 1713, nela falecera também, José da Nóbrega Botelho, filho de Francisco da Cruz Nóbrega e de Andresa de Sousa Botelho.

O sítio de tal nome é já apontado em 1603 no assento de óbito de uma Margarida do Rio, mulher de um tal Pedro Fernandes, e a primeira vez que toma a designação de rua é em 1731, em igual documento respeitante a Marta de Almeida, viuva de D. João Maldonado.

Noutro assento de 1702, da paróquia de São José, fala-se em casas novas junto a Vale do Pereiro, sinal de que o subúrbio se começava a povoar.

Lisboa Arte Pintura Paisagem e animais [vista do Vale do Pereiro], João Cristino da Silva, 1859.
Imagem: MatrizNet

Pegada às casas da quinta de Santo António, via-se a ermidinha de Nossa Senhora da Mãe de Deus e dos Homens, de que já se falou, ao tratar de São Mamede, e depois mais terras dos Congregados até à azinhaga da Torrinha, cortadas a meio por um caminho (chamado beco de Santo António em 1833), que dava serventia à propriedade.

Entre esse beco e a quinta é que, mais tarde, se construiu, por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo,o abarracamento de Vale de Pereiro, para quartel de um dos regimentos da província, chamados em 1755 para policiar a cidade, e zelar pela segurança dos seus habitantes.

Parada militar no quartel de Vale do Pereiro, Paulo Guedes, 1906.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não sei qual dos regimentos, mandados vir nessa ocasião iria ocupar o abarracamento, após os bivaques dos primeiros meses, se o de dragões de Évora, se o de Cascais, se o de Peniche, se o de Setúbal ; o certo é que, em 1784, estava aqui albergado o de Infantaria do conde de Aveiras, em 1799, o de Lencastre, em 1834 o de infantaria 2 e ultimamente o 2 de caçadores que saiu para a Cova da Moira onde esteve até à sua extinção. O quartel de Vale do Pereiro ficou então servindo para quaisquer dependências de serviços de administração, e assim foi apodrecendo, como está sucedendo ainda ao de Campo de Ourique, manchando o bairro com o seu aspecto miserável. 

Creio que foi um litígio complicado, que obrigou o município a ter suspensa durante muito tempo a demolição do quartel pombalino. Os terrenos onde êle assentava pertencem, ou pertenciam, aos herdeiros da falecida condessa de Gamarido, cujos possuidores, a esse tempo, o cederam para aquele fim exclusivo, com determinadas cláusulas. Foi uma destas cláusulas que durante anos susteve de pé o vetusto casarão.

Primitivamente constava apenas de dois barracões postos a par, paralelamente à rua. Em 1784 fizeram-se-lhe obras. Repetiram-se estas em 1798, no sentido de alargar-lhe os cómodos que eram poucos. Em 1804 já se achava concluído, como se vê da planta levantada nesse ano pelo engenheiro Fava. 

Carta topographica de Lisboa e seus suburbios..., Duarte José Fava, reprodução de 1807.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em 5 de junho de 1908, como tal litígio se augurasse longe ainda de solução satisfatória, entendeu o quartel começar a demolir-se por iniciativa própria. Na madrugada desse dia desmoronou-se com estrépito, parte do edifício.

Hoje nada resta do velho pardieiro, e o alinhamento da avenida de Braamcamp está concluído. O prolongamento da rua de Rodrigo da Fonseca é que parece, ignoro porquê, estar ainda para demora, apezar de, em 15 de dezembro de 1914, se ter feito, por sessenta contos de réis, à senhora condessa de Foz de Arouce, a expropriação da parte da quinta dos Arciprestes ne- cessária para tal fim.

Aí por 1770 e tantos abundavam por aqui os militares em moradias junto do quartel. Furriéis, tambores-mores, cabos e soldados, albergavam-se nas casas abarracadas que enxameavam no local. Escusado será dizer qual seria a maior percentagem da população feminina.

Quando constou em Lisboa, na segunda quinzena de março de 1817, que el-rei D. João VI, escolhera para receber o preito da corte do Rio de Janeiro, pela sua subida ao trono, o dia 6 do mês seguinte, sábado de aleluia, os comandantes dos regimentos da guarnição da cidade resolveram dar um público testemunho da sua calorosa adesão a tão fausto acontecimento. Soube-se, que na véspera do dia festivo sairia o bando do Senado da Câmara determinando uma iluminação geral para a noite seguinte e, eis a oficialidade dos regimentos lisboetas, entusiasmada a preparar as luminárias dos quartéis.

Depois da parada no Terreiro do Paço, Rocio e ruas comunicantes, de todas as tropas de linha e milicianos, Guarda Real de Polícia, Atiradores e Voluntários Nacionais, e da revista e marcha que se lhe seguiu, retiraram para os seus aquartelamentos e principiaram os fogos de artifício e a pasmaceira das iluminações. Um dos regimentos que mais luziu no desempenho da sua vistosa homenagem, foi o de Vale do Pereiro, o bravo 16 de Infantaria.

Sigamos a descripção do prospecto segundo a notícia da Mnemosine Lusitana.

No corpo central da ornamentação luminosa que cercava a porta principal do abarracamento, figurava uma latada sobre um fundo de buxo e de loiro, de que se recobriam as paredes nesse ponto da fachada. Por cima corria uma balaustrada coroada de trofeus militares, entre os quais avultavam dois escudos com os dizeres "Amor" e "Gratidão", sobrepujados, estes, de um grupo de nuvens, que na ocasião da inauguração se abriram para patentear o retrato de el-rei.

Sob o retrato lia-se esta quadra:

Immune Portugal hum Deus promette, 
Campo d'Ourique ouvio seu Santo Brado; 
As promessas de hum Deus mudar não podem 
O Tempo, a Morte, nem Desgraça, ou Fado.

Entre os quatro pilares da latada que suportavam a balaustrada, de cada lado da porta, liam-se estas:

A Pátria de seus Filhos Amor pede, 
Dos Vassalos o Rei Fidelidade: 
Juramos defender em todo o tempo 
A Fé, a Pátria, as Leis, a Magestade.

Sois Monarcha, Senhor, dos fieis Lusos, 
Que não sabem curvar-se a extranho Dono; 
E quando por Sob'rano vos aclamão 
Em cada coração vos dão hum Throno. 

As entradas da dupla rampa de acesso ao portão, estavam ornamentadas com arcos de buxo, rematados por um leão, das garras do qual pendiam fitas com o dístico:

Perseverando, Lisboa. Regimento n.° 16

O muro da rampa revestido de ramos de loiro, terminava, em cada uma das extremidades, junto ao arco, por duas figuras, imitando mármore, toucadas de um cocar de plumas, e sopesando escudos, nos quais se lia, em um: 

Do insigne Regimento, audaz, temido, 
As batalhas tu vês, nas quaes, ó Lusos, 
Vencedor sempre foi, nunca vencido.

e noutro:

Ás Lusas Legiões soube dar Glória 
Beresford imortal, e em sua frente 
As conduzio ao Templo da Memória.

Na extensão do parapeito do muro, achavam-se disseminados vários medalhões, contendo os nomes e as datas de todos os combates, batalhas, sítios, bloqueios e assaltos em que o 16 tomara parte, desde o combate de Albergaria, em l0 de maio de 1809, até o sítio de Bayona, que durou desde 27 de fevereiro a 28 de abril de 1814.

No centro do parapeito da meia laranja, fronteira à porta do quartel, avultavam as armas reais de Portugal por baixo das quais se lia, num transparente, esta quadra:

Do Tejo ao Ganges sem temor levadas 
Dando Fama aos Annaes da Antiguidade 
Desde o Tejo ao Garona as conduzimos 
Fazendo temer Gallia em nossa idade.

Um grande número de luzes abrilhantava esta ornamentação, e bom seria que assim fosse para desviar as atenções do povinho, dos malíssimos versos que, como amostra do estilo literário da época de D. João VI, ofereço à curiosidade do leitor.

Tais foram as festividades feitas pelo regimento de Vale do Pereiro, em 1817.

Continue-se a descripçao de Vale do Pereiro ao tempo do terremoto.

Planta do terreno compreendido entre a linha de cumeada da Cotovia, Rato, Amoreiras e Arco do Carvalhão e a linha de talveg de S. José, St.a Marta e S. Sebastião da Pedreira, feita em 1756, pelos Carlos Mardel, Eugénio dos Santos, Elias sebastião Poppe e António Carlos Andreis; acrescentada com o traçado conjectural das ruas do bairro de Pombal e a baixa da Cotovia [nota: o topo da imagem indica o lado nascente].
Imagem: Internet Archive

A azinhaga da Torrinha, atravessava o chamado, hoje, Casal Mont'Almeida até à circunvalação e prolongava-se ainda depois até Campolide. A planta inserta no primeiro volume desta obra elucidará melhor o leitor do que todas as minhas indicações.

Lisboa, Avenida da Liberdade, comemorações do IV Centenário da Índia, Feira Franca.
Litografia de Ribeiro Cristino e Roque Gameiro, 1898.
Imagem: PAM

Depois da azinhaga, ficava a quinta do mesmo nome, em cujo âmbito se erguia a torrinha octogonal, que, por tanto tempo, alindou com o seu ar um tanto ou quanto misterioso, aquele local.

Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 01 Paulo Guedes AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Nesta, quinta esteve em 1804 um colégio de que era director e proprietário, o professor Luís Maigre Restier. Nesse mesmo ano se mudou para Xabregas e, mais tarde, em 1833, estava, ainda com o mesmo nome, na travessa das Mónicas. Tempo depois ocupou, as casas e o torreão, uma fábrica de velas de estearina de que era sócio ou corrector de vendas o conhecido Castelani. Não era raro vê-lo agenciando a sua vida por estas paragens, dando regabofe aos ga rotos que se compraziam em trazê-lo às vaias, chacoteando do seu bigode ruivo e da sua figura ridícula.

A torrinha, sacrificada às exigências do progresso, começou a demolir-se em sexta feira santa, 20 de abril do ano findo, após uma comprida e porfiada resistência ao camartelo municipal do seu último morador, o francês Gustavo Mathieu, que ali tinha instalada uma oficina metalúrgica e onde demorava há mais de 25 anos.

Vi desaparecer com pena a simpática torrinha que era tanto da fisionomia daquele sítio, e comigo decerto muitos lisboetas sentiram a mesma pena.

Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 02 Benoliel AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Esculápio, no Século de 21 de abril do ano último, fez, como extremado amigo da cidade, o seguinte epicédio ao pobre torreão setecentista do dr. José de Sousa Monteiro:

"Vetusto monumento de fé republicana de outras eras, anda o camartelo municipal a derruí-la, para dar seguimento ao parque Eduardo VII, que já se desenha esplendoroso ao cimo da Avenida, coroando a rotunda e o lugar onde, para as calendas gregas, se há-de erguer a tão falada estátua ao Marquês de Pombal. O leitor amante das antiguidades de Lisboa que vá vê-la nos seus derradeiros momentos, a célebre Torrinha onde se faziam dantes os comícios republicanos e onde os janízaros da municipal se fartaram de espadeirar o povo e os propagandistas da ideia nova. Faz pena vêr a Torrinha a cair aos bocados, em holocausto ao progresso e ao aformoseamento da plástica citadina!"

Dão-te a morte; coitadinha,
E tu morres fria e calma 
Torrinha que eras "Torrinha", 
Do teatro da minha alma.


Lisboa Parque Eduardo VII casal da Torrinha 03 Bárcia AML 04.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Seguia-se à Torrinha a casa e quinta de Manuel de Jesus, que há pouco também foi a terra e onde residiu desde as ultimas expropriações municipais, o sr. António Fernando Silva, chefe do serviço dos jardins da Câmara. Sobre o portão desta moradia, que ficava a cavaleiro da avenida de Fontes Pereira de Melo, avultava (julguei eu, por muito tempo, que fosse um brazão) um ornato feito de alvenaria com certa elegância decorativa. Na demolição lá se foi também.

Este Manuel de Jesus, que suponho um pequeno proprietário arrabaldino, era casado com uma tal Isabel Francisca que faleceu, em i5 de dezembro de 1737, nesta sua casa do Vale de Pereiro.

Lisboa Pintura a óleo do Parque Edurdo VII Vale do Pereiro 03 AML.jpg
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A esta casa seguia-se um pedaço da quinta das Lagens que se prolongava para o norte-poente, e depois dependências muradas da propriedade, a esse tempo, de Domingos Ferreira de Aguiar, a qual tornejava para o pitoresco largo de Andaluz [...] (1)


(1) Matos Sequeira,   Depois do Terremoto, Volume II, Academia das Sciências de Lisboa, 1917

Leitura adicional:
Ruy Travassos Valdez, A Quinta da Torrinha ao Vale do Pereiro