terça-feira, 30 de agosto de 2016

O Grupo do Leão (3.ª parte)

António da Silva Porto (1850-1893) aparece como o chefe natural e incontestado do "Grupo do Leão", em simultâneo com a actividade de professor da aula de Pintura de paisagem na Academia Real de Belas Artes de Lisboa, desde 1879. 

Na Pastagem, Silva Porto, 1883.
Imagem: Casa dos Patudos

Assim duplamente exerce uma desejada influência e doutrinação estética, ora junto de condiscípulos, ora de alunos.

Silva Porto no seu atelier, Columbano, 1883.
Imagem: Casa dos Patudos

Renovador da pintura de ar livre, colhe a essência dessa atitude numa profunda sensibilidade que interpreta a natureza nos aspectos fundamentais, a que não é alheio um íntimo lirismo, alicerçado em sólidos conhecimentos de desenho e de estudo do natural.

José Malhoa (1855-1933) mostra-se de central importância na cultura portuguesa, pelo entendimento que transmite do seu ofício de pintar, numa obra que percorre os aspectos da ruralidade do país, desde a paisagem à realidade dos costumes e das vivências do quotidiano.

À passagem  do comboio, José Malhoa, 1896.
En voyant passer le train, gravura de Charles Baude, segundo o quadro perdido de Malhoa.
Imagem: Provocando

Assim recolhe o conteúdo autêntico dum panorama humano diversificado, a que não é estranha a compreensão da sua relação com o meio, a natureza envolvente, a paisagem que recria e humaniza. 

José Malhoa por António Ramalho (Ramalho Junior), 1882.
Imagem: Cores e cheiros

Dedica-se ainda ao retrato, quer de personagens populares, quer da burguesia citadina. Rigoroso e directo, não usa eufemismos com os modelos, exprimindo o que os seus olhos vêem e capta a sua subjectividade. 

O fado, José Malhoa, 1910.
Imagem: Wikipédia

Entretanto, o seu trabalho vai sendo atravessado por trechos de imensa frescura, de paisagem, de marinha, de recantos de jardins, transformando-os em momentos duma particular poética resultante da interpretação dos fenómenos lumínicos.

Na Praia das Maçãs, José Malhoa, c. 1926.
Imagem: MNAC

Malhoa paisagista revelar-se-á ao longo da sua carreira de artista em duas vertentes distintas e complementares: a paisagem pura, despovoada, exercício de pintura pelo prazer de pintar; e a paisagem como suporte do humano, enquadramento natural e testemunha de costumes e vivências.

A volta da romaria, José Malhoa, 1901.
Imagem: Coysas, Loysas, Tralhas Velhas...

É todo um imaginário comum que Malhoa aborda em arte de notáveis recursos técnicos e de uma atenta observação da atmosfera e luminosidade dos nossos dias, traduzindo-as com a justeza a que, por vezes, empresta a alacridade e a crueza de cor que as paisagens, as pessoas e as coisas efectivamente assumem.

António Ramalho (1859-1916) protagoniza também lugar de relevo no “Grupo do Leão”. 

Praia do Alfeite, António Ramalho (Ramalho Junior), 1882.
Imagem: YouTube


Discípulo de Silva Porto na Academia Real de Belas Artes, e beneficiando de pensionato em Paris (1882-1884), revela-se sensível paisagista e detentor de notáveis recursos na pintura de retrato.

João Vaz (1859-1931) destaca-se pelos seus dotes de paisagista, mas, muito em especial, como marinhista.

Rio Tejo, João Vaz.
Imagem: Casario do Ginjal

 Obra de João Vaz (1859-1931)Galeria de imagens no Facebookclique para aceder
Obra de João Vaz (1859-1931)
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Discípulo de Tomaz da Anunciação (1818-1879) na Academia Real de Belas-Artes, e depois seguidor de Silva Porto, atinge nas suas principais obras uma compreensão completa e profunda dos valores lumínicos, atmosféricos e espaciais.

O mais velho do Grupo é José Moura Girão (1840-1916), cuja formação, na Academia Real de Belas Artes, recaiu num tempo ainda alheio ao anúncio do Naturalismo. No entanto, adere convicta e decididamente à novidade nascente, dela deixando impregnar-se a sua vasta produção artística.

O meu primeiro ovo, Moura Girão, 1914.
Imagem: Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro

Encantado e incansável observador dos bichos de capoeira, foi um pintor muito apreciado pelo verismo e graciosidade que imprime às suas obras, com frequência cenas rurais, onde os temas animalistas assumem relevo.

Manuel Henrique Pinto (1853-1912) perfila-se como paisagista e pintor de género ao gosto naturalista. Cursa a Academia Real de Belas Artes e aí encontra como mestres Anunciação, Joaquim Prieto (1833-1907) e José Simões de Almeida (1844-1926).

O Convento, Figueiró dos Vinhos, Manuel Henrique Pinto.
Imagem: Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos no Flickr

 Obra de Manuel Henrique Pinto (1853-1912)Galeria de imagens no Facebookclique para aceder
Obra de Manuel Henrique Pinto (1853-1912)
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Os aspectos da vivência rural constituem as linhas principais da expressão da sua pintura, apoiado pelo exercício do desenho de atenta observação, sensibilidade e rigor.

Armando aos pássaros, Manuel Henrique Pinto.
Imagem: Cabral Moncada Leilões
Manuel Henrique Pinto (1853-1912) e José Vital Branco Malhoa (1855-1933), ainda quase meninos, encontram-se pela primeira vez na Academia Real das Bellas Artes de Lisboa. Um vinha de Cacilhas, do outro lado do Tejo, num tempo sem cacilheiros, e nos primeiros anos faltava muito às aulas, por isso se mudou para a cidade. O outro, parece que com uma perna partida, veio das Caldas da Raínha para casa do "mano Joaquim" a fim de curar a mazela e abraçar vida nova. Acabaram por se juntar nas aulas e corredores de S. Francisco e fizeram-se amigos para toda a vida.

Alunos da Academia das Belas Artes, precursores do Grupo do Leão, 187?.
Da esquerda para a direita em cima, João Rodrigues Viera, José Moura
Girão, Veríssimo José Baptista, Manuel Henrique Pinto e João Vaz.
Em baixo, José Malhoa.
Imagem: Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos no Flickr
Dos professores que ali tiveram, sem esquecer Thomaz José da Anunciação (1818-1879) e Miguel Ângelo Lupi (1826-1883), dois houve que mais os marcaram – Joaquim Gregório Nunes Prieto (1833-1907) e José Simões d’Almeida júnior (1844-1926).

in Provocando
João Ribeiro Cristino (1858-1948), o mais moço dos artistas do “Grupo do Leão”, cursou a Academia Real de Belas Artes, assumindo a sua carreira artística acentuada importância como gravador.

Palácio e Quinta Real do Alfeite, João Ribeiro Cristino, in Occidente Revista Illustrada, março, 1887.
Imagem: Hemeroteca Digital

Todavia, a influência de Silva Porto determina a estreia de Cristino como paisagista, que, desde a "Exposição de Quadros Modernos" de 1881, apresenta óleos, a par de provas de gravura em madeira.

Lago do Antelmo — Alfeite, João Ribeiro Cristino, 1883.
Imagem: Veritas leilões

João Rodrigues Vieira (1856-1898) é discípulo de Anunciação na Academia Real de Belas Artes; encontra os seus temas preferidos na paisagem e na natureza-morta, género em que é apreciada a frescura que imprime a frutos e flores.

Leilão de pesca, Praia da Nazareth, João Rodrigues Vieira.
Imagem. Palácio Nacional da Ajuda no Facebook

No fim do mercado (Leiria), João Rodrigues Vieira.
Imagem: Internet Archive

José Joaquim Cipriano Martins (1841-1888), aluno de Miguel Ângelo Lupi (1826-1883) e de outros mestres, na Academia Real de Belas Artes; é um paisagista, mas sobretudo retratista de merecimento, que deixa obras dignas do Grupo e do movimento que integra.

Paisagem, José Joaquim Cipriano Martins.
Imagem: Manuel Henrique Pinto no Facebook

O retrato é a expressão essencial da obra de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), que também se compraz na composição de naturezas-mortas e na pintura monumental, além de escassas paisagens de tonalidades discretas e húmidas.

Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Uma segura técnica, que continuamente aperfeiçoa e desenvolve, não só através do óleo, mas ainda no desenho e nas subtilezas do pastel e da aguarela, suporta a coesa e determinada progressão da carreira de Columbano.

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908
Imagem: Pintar a Óleo

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) revelou-se um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua intervenção atenta e crítica à vida portuguesa.

Raphael Bordallo Pinheiro, A Parodia-Comedia Portugueza, Vinte Annos Depois, 1879 - 1903 (detalhe).
Raphael Bordallo Pinheiro — O Caricaturista
Raphael Bordallo Pinheiro — O Ceramista
Imagem: Internet Archive

Permanecem de surpreendente actualidade os seus comentários à política, à economia, à sociedade da época, nas revistas de caricatura e humor que editou, atitude que não raro reflectiu na cerâmica que, a partir de 1884, logra revitalizar na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.

Moringue Gonzaga Gomes, Museu Rafael Bordalo Pinheiro.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Expõe com o Grupo, enquanto as revistas que edita – "O António Maria" e os "Pontos nos ii" – inserem comentários caricaturais às obras dos companheiros.

Cena da galeria da Paixão de Cristo, Rafael Bordalo Pinheiro.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

É, pois, na época do "Grupo do Leão" que Rafael Bordalo Pinheiro se fixa nas Caldas da Rainha e dá novo incremento de modernidade à cerâmica tradicional, aí criando também a galeria da "Paixão de Cristo" (1887-1899), obra única de cerca de sessenta figuras de estatuária de terracota à escala humana, distribuídas por nove cenas, recriação de extraordinária expressividade e valor plástico e iconográfico, que se pode apreciar em galeria própria, no Museu José Malhoa.


(1) Matilde Tomáz do Couto, O "Grupo do Leão" (1881-1889), Jornal da Caldas, 16 de setembro de 2014
cf. revista LION, ed. junho/agosto de 2014


Leitura relacionada: 
Zacarias d'Aça, Lisboa moderna , Lisboa, Tavares Cardoso, 1906
Margarida Elias, O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro, Revista de História de Arte n.° 5, 2008

Nuno Saldanha, O Leão d'Ouro e a Génese do Naturalismo na Pintura Portuguesa 1885-1905
do Porto e não só: Apontamentos sobre a pintura em Portugal na esquina dos séculos 19 e 20 (I parte)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O Grupo do Leão (2.ª parte)

Corria o ano de 1880 e tivera lugar a penúltima exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes, à qual concorrem alguns dos artistas que viriam a integrar o agrupamento e que logo se manifestam insatisfeitos com o carácter já obsoleto desses salões.

Grupo de artistas e fundadores da Sociedade Promotora das Belas-Artes (1861-1901), c. 1862.
Zacarias d'Aça (1839-1908), escritor; José Maria Alves Branco (Fl. 1862), médico; Joaquim Pedro de Sousa (18??), artista plástico; Francisco Lourenço da Fonseca (1848-1902), pintor (1818-1906); José Ferreira Chaves (1838-1899), pintor;Luís Ascêncio Tomasini (1823-1902), pintor; José Rodrigues (1828-1887), pintor; Júlio de Castilho (1840-1919), 2º visconde de Castilho, escritor e olisipógrafo; Francisco de Assis Rodrigues (1801-1877), escultor; Domingos de Sousa e Holstein Beck Borges Coutinho (1897-1969), 5º duque de Palmela [?]; Carlos Krus. Fl. 1862, artista plástico; Joaquim Nunes Prieto (1833-1907), pintor;  José Gregório da Silva Barbosa (Fl. 1862).
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A Cervejaria Leão d’Ouro, na antiga Rua do Príncipe, hoje Rua 1º de Dezembro, em Lisboa, é o ponto de encontro, o cenáculo onde se reúnem artistas e literatos, convivendo e animadamente debatendo as ideias e as doutrinas que chegam de França, através de revistas sempre alvo de particular atenção ou dos pensionistas de regresso.

Des glaneuses dit aussi Les glaneuses, Jean-François Millet (1814-1875).
Imagem: profondeurdechamps

Assim se verifica em torno de Silva Porto, o "divino mestre", como jovialmente o distinguem com amizade e admiração, perante as almejadas novidades estéticas que personaliza; delas se impregnam e duma doutrina que profundamente os interessa, na predisposição que aspira à mudança e à ruptura com esquemas do passado.

A Charneca de Belas, a introducção do Naturalisno em Portugal, Silva Porto, 1879.
Imagem: MNAC

É o advento do Naturalismo introduzido [por Silva Porto e Marques de Oliveira, tendo o primeiro, mais tarde, feito parte do] pelo "Grupo de Leão" e traduzindo-se num verdadeiro movimento, fundamentado na teoria positivista que aponta a experiência directa como princípio e a imitação da natureza e do quotidiano como objecto da arte.

Marques de Oliveira  Praia de Banhos, 1884.
Imagem: MNAC

Nesta perspectiva, o artista procura recriar a realidade, em função da ideia que concebe do seu conteúdo, e estabelecer as relações e dependências das partes, de modo a extrair os caracteres do todo; assim alcança as qualidades universais e permanentes para as fixar e valorizar.

O Naturalismo pictórico assume esta filosofia, por via duma vivência de ar livre [que se deve ao desenvolvimento da invenção de John Goffe Rand, em 1841, a bisnaga com tinta], que colhe os motivos do natural e os transpõe para o suporte.

Dame en blanc sur la plage de Trouville, Eugène Boudin, 1869.
Imagem: Musée d'art moderne André Malraux

Reformula-se o entendimento de todo o visível, numa atitude que visa a posse da verdade, pelo estudo coerente e firme da cor e da forma.

José Malhoa, Paisagem, 1889.
Imagem: MNAC

Os valores lumínicos encontram-se no cerne desta plástica; definem e motivam a pesquisa do "Grupo do Leão", a sua compreensão da atmosfera e do sol, dos contrastes de sombra-luz, os cambiantes, os matizes e transparências que ressaltam e, porque não, o raro divisionismo permitido.

A aliança da luminosidade e da cor é extraordinariamente coesa nos percursos que o naturalismo investiga e desbrava. com frequência, se revelam indissociáveis estes aspectos fundamentais da pintura, numa ambivalência que desvanece os limites da matéria e fazendo surgir a luz e os valores cromáticos como factores comuns do mesmo fenómeno, quantas vezes dum imenso lirismo.

Colheita ou Ceifeiras, Silva Porto, 1893.
Imagem: Wikipédia

A apreensão da forma vem a resultar destas conquistas, ora errante, ora sensual ou documental, mas quase sempre apaixonada e cruel, ao pretender apoderar-se do verismo imediato e do carácter concreto que transparece nas coisas e nos seres.

Nesta panorâmica cultural e estética se insere e se perfila o “Grupo do Leão”, inicialmente contando com Silva Porto, José Malhoa, António Ramalho [ou Ramalho Junior], João Vaz, Moura Girão, [Manuel] Henrique Pinto, [João] Ribeiro Cristino, Rodrigues Vieira, Cipriano Martins e o entalhador Leandro de Sousa Braga (1839-1897), apoiados por Alberto de Oliveira (1861-1922), grande entusiasta do Grupo.

Grupo do Leão 1883-1884,
ferrotipo (espólio de Columbano, Museu do Chiado), 1883-1884.
Imagem: Margarida Elias, O Grupo do Leão...,
Revista de História de Arte n.° 5, 2008

Columbano, bolseiro em França, junta-se-lhes em 1883 e Rafael Bordalo Pinheiro em 1885.

A maior parte destes pintores encontra-se representada no Museu José Malhoa, num discurso em que se destacam as temáticas que a cada um mais atraiu e onde sobressai a sua expressão artística, seja a paisagem, o retrato ou a pintura animalista, seja a marinha, a natureza-morta ou as cenas de género.

Dois artistas pintando à beira-mar (Roque Gameiro e Mamia na Praia das Maçãs),
José Malhoa, 1918.
Imagem: Bombeiros Voluntários de Almoçageme

Sublinhe-se ainda a contextualização de Bordalo na cerâmica das Caldas, desafio que abraçou na época do “Grupo do Leão”. (1)


(1) Matilde Tomáz do Couto, O "Grupo do Leão" (1881-1889), Jornal da Caldas, 16 de setembro de 2014
cf. revista LION, ed. junho/agosto de 2014


Leitura relacionada: 
Zacarias d'Aça, Lisboa moderna , Lisboa, Tavares Cardoso, 1906
Margarida Elias, O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro, Revista de História de Arte n.° 5, 2008

Nuno Saldanha, O Leão d'Ouro e a Génese do Naturalismo na Pintura Portuguesa 1885-1905
do Porto e não só: Apontamentos sobre a pintura em Portugal na esquina dos séculos 19 e 20 (I parte)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O Grupo do Leão (1.ª parte)

O grupo chamou-se do Leão, por causa de um café da rua do Principe [hoje 1.° de Dezembro], onde ás noites iam cavaquear e beber cerveja, artistas n'elle incorporados, e o seu advento nas exposições do Commercio de Portugal e trepidação de um hausto novo na maneira portugueza de pintar.

O Grupo do Leão, Columbano Bordalo Pinheiro, 1885.
Representados, da esquerda para a direita: em fundo, João Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, criado Manuel, Columbano, criado António, Braz Martins; sentados, em segundo plano, Manuel Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro; em primeiro plano, José Malhoa, Moura Girão, João Rodrigues Vieira.
Imagem: MNAC

Annos depois de organisado o grupo do Leão, bolorencias inherentes à natureza pantanosa d'este género de sociedades, levaram alguns artistas a se separarem d'elle, e a incorporarem-se-lhe outros, e a nova confraria a alargar-se num programma mais íngreme de letras e artes, com saraus, banquetes, exposições e regalos, que, pela vida periclitante da nova milí­cia, intitulada Grémio Artístico, não chegaram a cabal execução, à parte as exposições, decaídas, que o profissional hoje evita, e que a invasão do furioso amador quasi tornou fastidiosas. (1)

Cervejaria Leão de Ouro, 1885.
Imagem: Hemeroteca Digital

O "Grupo do Leão" surge numa conjuntura que lhe permite protagonizar um significativo momento de viragem no panorama artístico português. Emergia uma geração de pintores cheios de talento e de criatividade e também plenos de juventude e de frescor.

Exposições de Quadros e d'Arte Moderna (1881-1889)
Catálogos Illustrados
Publicados por Alberto d'Oliveira
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Paralelamente, desaparecem os velhos românticos e a escola que acarinham manifesta-se desgastada e desajustada à era moderna, enquanto bolseiros portugueses se detêm em França – Paris e Barbizon – e daí chega a novidade de outros caminhos pictóricos mais vibráteis e arrojados.

O Bando de S. Jorge, José Malhoa, 1885, apresentado na 6.a Exposição d'Arte Moderna, em 1886.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Neste contexto de convergência factual, onde ainda avultam as consideráveis transformações da mentalidade cultural que vêm ocorrendo, se afirma o "Grupo do Leão", pujante de vitalidade e veiculando todo um articulado de conceitos de notável avanço para o caso nacional. (2)


(1) Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos,
Illustrações de Casanova & Ramalho, Pref. de Fialho de Almeida, 1896, Livraria Ferin, Lisboa.

(2) Matilde Tomáz do Couto, O "Grupo do Leão" (1881-1889), Jornal da Caldas, 16 de setembro de 2014
cf. revista LION, ed. junho/agosto de 2014


Leitura relacionada: 
Zacarias d'Aça, Lisboa moderna , Lisboa, Tavares Cardoso, 1906
Margarida Elias, O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro, Revista de História de Arte n.° 5, 2008

Nuno Saldanha, O Leão d'Ouro e a Génese do Naturalismo na Pintura Portuguesa 1885-1905
do Porto e não só: Apontamentos sobre a pintura em Portugal na esquina dos séculos 19 e 20 (I parte)

sábado, 13 de agosto de 2016

Geração de 70 e Quinta da Rabicha

Ramalho Ortigão tem phisionomia e não a perde nunca. Fomos de uma vez á horta da Rabicha: elle, Anthero do Quental, Jayme Batalha Reis, Alberto de Queiroz, João Burnay, Oliveira Martins... 

Geração de 70, o Grupo dos Cinco: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro.

O nome de Oliveira Martins é hoje conhecido no paiz; áquelle tempo não pôde dizer-se que o fosse: havia produzido apenas um livro sobre Camões e a sua obra em relação á sociedade portugueza e ao movimento da renascença, editado no Porto, com o titulo de Camões e os Lusíadas.

O publico não conhecia nem o passado d'esse escriptor nem o seu género de estudos, nem a originalidade do seu methodo. Em vez de viver na intimidade dos livros de litteratura amena, que andam mais em uso, e se encontram por ahi em todas as estantes e livrarias, entregára-se sempre esse moço ás obras severas dos pensadores, estudando-as era boa ordem, annotando-as, nunca as deixando meio exploradas, e adquirindo grande abundância de conhecimentos. Talento reflexivo, philosophico, averiguador.

Coisa singular: tão dissimilhanles como eram as nossas predilecções litterarias, cntretinhamo-nos muito conversando de letras. Sabia o Proudhon na ponta da língua, e entrava pelos philosophos e políticos d'essa família; mas, de vez em quando apparecia, de manhã, em minha casa, e nunca encontrei espirito que melhor sentisse o folhetim do que elle.

Os Vencidos da Vida: António Maria Vasco de Melo César e Meneses, Luís Augusto Pinto de Soveral, Carlos Félix de Lima Mayer, Francisco Manuel de Melo Breyner, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Carlos Lobo d'Ávila, Bernardo Pinheiro Correia de Melo, Eça de Queirós e J. P. de Oliveira Martins
Imagem: Wikipédia

Sempre guardei lembrança d'isso, e, como podem calcular, a minha estimação por elle tornou-se mais affectuosa. É um philosopho e ao mesmo tempo um artista. Oliveira Martins; tem grande e alto raciocínio, e ao mesmo tempo sensibilidade de poeta. Com que amor elle estudou os Lusíadas, e a vida venturosa, romantica, heróica, do Camões, lucta do talento contra a riqueza e a tolice!

Mas, emfim, n'aquella tarde da Rabicha, sinceramente se lhe figurou que, épico por épico, não ficasse a dever nada ao outro quem compozesse uma caldeirada em seis cantos — que tantos eram os que iam saudar, cantando-a ás auras e aos Arcos das Aguas Livres — a canto, por talher! — essa obra que emprehendi.

João Burnay havia mandado conduzir para alli, não sei se n'uma padiola se n'um omnibus, um roast-beef. Pela minha parte, para não deixar na sombra esse clarão de meu engenho, cumpre-me dizer-lhes que havia tomado perante Deus, elles, a Rabicha, e a minha consciência, o encargo glorioso de confeccionar lá mesmo a caldeirada das caldeiradas.

O ponto de reunião era na rua da Piedade, á Praça das Flores, — onde morava então Anthero do Quental. Alli nos juntámos n'um dia de verão esplendido, e partiu a caravana ao meio dia. Estava um sol de rachar. Poucos passos adeante ia resolver-se mandar buscar seges, mas ouviu-se uma voz sahir de um kiosque apostrofando-nos:

— Que! Seges?! Qual diabo! Vamos a pé!

Era Ramalho Ortigão, que assim exprimia as suas convicções por baixo de um panamá; mas um panamá, façam-me favor! digno emulo d'aquella couve heróica, que de uma vez deu sombra ao exercito de Napoleão! Encontrámos a guarda, — parou o official, pasmado, e os soldados iam cahindo de pasmo...

Na Rabicha a impressão foi profunda. Ramalho, alegre, risonho, ousado, explicou ao dono da fazenda, homenzarrão intrépido e de alta e antiga fama de valente com os homens e terno com o femeaço, pimpão reformado, a quem uma bala levara o braço direito, que, apesar de maneta, tinha a linha.

Ao principio aquelle homem não percebeu bem isto; mas, quando de iá sahimos, ás oito horas, havendo alli chegado ás quatro, já elle próprio, maneta, explicava ás criadas da horta, qual d'ellas tinha a linha, e qual d'ellas não tinha a linha.


Anthero do Quental, que já chegara aos annos, não por certo do retiro e do silencio, mas da meditação severa, horas da madureza melancholica em que um homem, ao fazer a comparação do caminho que já andou com o que tem para andar, cuida avistar o segundo mais curto que o primeiro, parecia outro n'esse dia, tão juvenil e espontâneo era o contentamento em que estava.

Os Vencidos da Vida (com excepção de António Cândido) fotografados por Augusto Bobone em 1889, no jardim da casa do conde de Arnoso, na Rua de S. Domingos à Lapa: marquês de Soveral (Luiz Pinto de Soveral, 1850-1922), Carlos Lima Mayer (1846-1910), conde de Sabugosa (António José de Mello Cezar de Menezes, 1854-1923), Oliveira Martins (1846-1894), Carlos Lobo d’Ávila (1860-1895), Eça (1845-1900), Ramalho Ortigão (1836-1915), Guerra Junqueiro (1850-1923), conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de Mello, 1855-1911) e conde de Ficalho (Francisco Manoel de Mello Breyner, 1837-1903).
Imagem: Lisboa Desaparecida

Oliveira Martins, vivamente sensibilisado pelos resultados obtidos, esteve a ponto de chorar de gosto ao ver a graça com que Ramalho ajudava a criada de Bournay — visto como Bournay mandara ir, além do roast-beef, uma criada franceza, ou á franceza pelo menos, isto é, de touquinha branca, saia curta e o avental de algibeirinhas consagrado pelas melhores vinhetas do Bertall — a pôr a mesa.

Lisboa, Aqueduto das Águas Livres. Retiro da Quinta da Rabicha encerrado, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Elle ia á quinta colher as flores mais variadas, elle as enfeixava em bem armado ramilhete, elle estabelecia os desenhos mais interessantes, mercê da disposição gentilmente matizada d'ellas ; depois, vendo-me deante do grande tacho destinado á ceremonia solemne da caldeirada, perguntou-me tremulo de ternura:

— Já estás refugando, Júlio?

Eu não dizia nada. Mas Jayme Batalha Reis, que, durante aquelle acto, não tirava os olhos de mim, respondia com commoção:

— Já; já está a refugar !
— Quantas cebolas, Júlio? — perguntava Ramalho.
— Vinte e uma! — dizia Jayme. — Vinte e uma! — Cebolas verdes, em quartos!...
— Est-ce possible?! — exclamava a criada franceza, ou á franceza, consultando Ramalho Ortigão com o olhar.
— Je m'égare!... — retrucava Ramalho — E, (voltando-se para mim) que mais lhe deitaste?...

Eu não dizia nada. Alberto de Queiroz, debruçando-se brandamente, propunha-se metter o nariz no tacho. A tanto pôde a sede do saber, e quiçá uma juvenil ambição, acredora de estima, conduzir a mocidade!

Alberto de Queiroz era então um adolescente. Entrava na vida curioso de conhecer as luctas e difficuldades, ou sadias e revezes do destino dos escriptores e dos artistas. Dotado de uma percepção rara, e de uma avidez de estudar que ninguém combinaria facilmente com os ares de dandysmo com que elle passeava ao sol ou á chuva o seu janotismo, os que o viam, sem o conhecerem bem, consideravam apenas n'elle um rapazinho rendido a dois coquetismo, o coquetismo da elegância e o das le- tras, na idéa de que elle não quizesse d'ellas senão o que essas santas comadres offereçam de commodidade momentânea á existência de um rapaz, — a saber, os bilhetes de entrada nos theatros, os convites para bailes, para regatas, para as inaugurações de linhas férreas; e para as varias festas em que a vaidade ou a especulação do mundo, no habito em que estão de viverem colladas á publicidade dos reclamos, como a santola ao costado dos navios, recorrem aos que tiverem uma columna de jornal a disposição da patacoada humana.

Mas não. Levava-o para as letras o amor sincero que lhes tinha; ficava contente do seu dia, quando um trabalho de outrem lhe dava ao espirito a doce satisfação de apreciar; e, prova não só da aptidão das suas faculdades, mas da generosidade do seu coração, tudo era como que desempenhar-se de um empenho que houvesse contrahido comsigo mesmo de não se limitar á estimação silenciosa, e tirar, da comprehensão brilhante e fácil de que a natureza o prendara, a consolação mais útil e benéfica para os que trabalham, qual a de não se limitar a aprecial-os de si para si, mas abrindo a janella que dá para a rua. por assim dizer explical-os ao publico, convidal-o a prestar a sua attenção ás producções d'elles; e, mercê do talento e da generosidade de animo, empregar em os fazer sobresahir, em lhes dar luz, a diligencia que os egoistas e os mediocres tanto applicam e de tão boa gana a pôr os outros na sombra.

— Que mais lhe deitaste ? — tornava o Ramalho a perguntar.

Ramalho Ortigão (1836 - 1915).
Imagem: Wikipédia

Jayme Batalha Heis, que, a titulo de eu o conhecer desde pequeno, e haver sido um dos primeiros a maravilhar-me da rara lucidez do seu espirito, merecera da minha benevolência o tel-o ao meu lado, recitou n'estes termos:

— Salsa, pimenta, sal, cabeça de safio e de eirós, coloráo, caril! tudo ás voltas, na fritura do refugado, um pouco antes de se lhe atirar com dezoito tomates grandes! em pedaços! três colheres de vinagre, oito de azeite! lulas e ostras, além de peixe de sete qualidades: ruivo, tainha, chocos, saíio, eiroz, peixe-gallo, xarroco!...

Porque os convivas, ao ouvirem isto, estivessem a ponto de se torcerem e retorcerem todos de commoção, em gentis ataques nervosos motivados pelas sensações d'este dia, resolveu-se, como medida de prudência, emprehender um passeiosinho de distracção, para não estarem alli concentrando por mais tempo uma attenção illimitada no tacho, em que tantos e tão extraordinários acontecimentos se estavam passando.

Ribeira de Alcântara na zona da Rabicha, José Artur Leitão Bárcia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Assim foram pela quinta adeante até á estrada de Campolide. Andavam trabalhadores a arranjar a estrada.

— Vossemecês são das Obras Publicas? — perguntou-lhes Ramalho.
— Sim, senhores! — respondeu um d'elles, que se achava a contas com uma pedrinha, procurando com arte o melhor modo de a encravar no chão...


Elle chamou os companheiros e entretiveram-se a contemplar aquelle espectáculo.

— É curioso! — ponderou. Qual fosse o fim do trabalhador ao pegar n'aquena pedrinha, bem o comprehendiam elles; porém, com que habilidade elle se desempenhava de tal missão!

Piscava um olho...
Piscava o outro...
Mirava a pedrinha d'aqui, mirava-a d'alli...
Punha-a ao direito...
Olhava para ella bem, — e punha-a atravessada...
Apalpava-a...
Assoprava-a...
Espreitava-a e admirava-a, como faz um ourives a uma pedra preciosa, que se lhe figure de boa agua e com grande vida...

Depois, com geitos de observação que fariam honra a um mathematico, encanastrava-a em cima de outras, como quem está a fazer a caminha para uma creança, devagarinho, com extremos de quem sabe amar maternalmente, porque assim digamos...

Ramalho, tirando da algibeira do peito o seu lenço de assoar finíssimo, dirigiu-se áquelle trabalhador das Obras Publicas, pediu-lhe para que o attendesse, conferenciou com elle mysteriosamente; depois, voltando-se para os companheiros:

— Segurae nas pontas d'este lenço! Todos seguraram o lenço pegando-lhe pelas pontas, de forma que não deixassem cair o que elle continha, e assim voltaram em procissão até á Rabicha.

A caldeirada estava prompta. Eu passeava agitado. Aquelles instantes pareciam-me de um comprimento excessivo... Tinha a imaginação sobrexcitada por idéas de gloria... Haveria querido n'aquelle momento ler alli á mão algumas paginas de leitura austera que me puzessem em afinação de modéstia... Mas, não se poderia arranjar isso n'aquelles sítios.

Puz-me a meditar as palavras do Ecclesiasta: Vaidade das vaidades... Nada me acalmava. Parava machinalmente deante do tanque, via-me na agua e comprimentava-me a mim próprio, como elle, esperava eu, teriam de comprimentar-me pela caldeirada... Oh! Essa idéa fazia-me empallidecer... Ouvi-lhes as vozes. De cabeça erguida e attitude altiva esperei-os, firme.

Lisboa Aqueduto das Águas Livres Ponte da Rabicha, Ferreira da Cunha, antes de 1938.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

— Está prompta a caldeirada! — bradei. 
E o echo dos arcos das Aguas Livres repetiu: — Caldeirada!...

Jayme Batalha Reis dirigiu-me a palavra:
— Que dirias de Sócrates, se ai ém de philosopho, fosse industrial? Eu ia dizer... Anthero do Quental deu um passo á frente:
— Que dirias de Napoleão, se, além de guerreiro fosse pianista insigne?


Eu já, por um triz, ia a fallar... Oliveira Martins, pondo-me a mão no hombro, contemplando-me longamente:

— Que dirias de Thomaz de Carvalho, se, além de tudo que sabemos d'elle, fosse também capitão de navios?

Já a resposta me ia pela lingua adeante...

— Que diremos de ti, querido amigo, — proferiu Ramalho commovido — que, além das occupações do teu officio, te propões ser o que ha mais sublime entre as diversas espécies do saber humano, — cosinheiro!

À tua dedicação á humanidade é sem limites; o teu amor ao trabalho é digno do espirito scientifico de um grande século... Aqui te trazemos um presente!

Tens ouvido fallar no suor do povo?
— Muitas vezes. 
— É uma curiosidade rara, mas encontra-se. Pedimos um pinguinho d'isso a um trabalhador das obras publicas, que anda alli adeante na estrada, e eil-o aqui...

Entendemos que aquelle pinguito de suor do povo podia, mercê de que a raridade augmente o valor ás coisas, constituir o mais glorioso baptismo de um cosinheiro voluntário...

Lisboa Ponte da Rabicha Eduardo Portugal.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E, soluçando de jubiloso enternecimento:
— Para a mesa, amigos !
— Para a mesa!... (1)


(1) Júlio César Machado, A vida alegre..., Lisboa, Editora de Mattos Ferreira & C.a, 1880